Lula no JN: domínio da cena
Raramente vi um político aproveitar tão bem uma sabatina na TV. Lula aproveitou, com domínio e classe, escreve a jornalista Tereza Cruvinel
Por Tereza Cruvinel, 247 - "O senhor não deve nada à Justiça". Quando William Bonner disse essa frase a Lula, na entrevista ao JN, veio-me à cabeça um discurso que, no início da perseguição da Lava Jato, avalizada pela mídia, Lula fez numa reunião do Diretório Nacional do PT em Brasília, em 29 de outubro de 2015. Lá pelas tantas ele disse:
- Serão três anos de pancadaria, mas eu vou sobreviver. Se tem uma coisa que aprendi na vida foi a enfrentar a adversidade. Podem ficar certos: eu vou sobreviver. E eles, terão a credibilidade que imaginam?
Ele falava em três anos porque deveria ser candidato em 2018 mas a pancadaria foi além. Seria preso e politicamente inabilitado naquele ano, seria solto apenas em novembro de 2019 e recuperaria os direitos políticos em abril de 2021. Seis anos de massacre, demolição moral e humilhação. Um controlador de vôo sugeriu que "aquele lixo" fosse jogado do avião que o levava a Curitiba.
Recordo isso porque, a meu ver, mais que em qualquer outro momento depois que deixou a prisão, na entrevista ao JN Lula confirmou a própria profecia. Sobreviveu e venceu. Estava ali altivo, sem arrogância e sem rancor, sem fugir das questões, olhando nos olhos o povo brasileiro pelas mesmas câmeras da Globo.
E eles, terão a credibilidade que imaginam"? Os da Lava Jato estão com a credibilidade enterrada, assim como alguns falsos moralistas da política. Na mídia, busca-se hoje o jornalismo perdido na correnteza do antipetismo. A própria entrevista traduziu isso: perguntas duras e necessárias, mas sem a hostilidada verbal e até gestual do passado. Sem o tubo de esgoto dos tempos da Lava Jato.
Mas tudo isso é detalhe, uma diáfana luz de fundo. Ele foi ao JN para demonstrar, com lucidez, segurança e sem se irritar, que representa o melhor caminho para o Brasil. O que buscou foi consolidar seu favoritismo, para conquistar eleitores que ainda não estão com ele, para enfiar de vez uma estaca no coração de Bolsonaro, do fascismo, do risco e do retrocesso que ele representa. E entre os eleitores que ainda não decidiram votar em Lula estão aqueles que se lembram das acusações que ele sofreu e dos casos de corrupção ocorridos nos governos petistas.
Ao dizer que ele nada deve à Justiça, o próprio Bonner falou aos eleitores recalcitrantes, talvez porque todos os dias lêm ou ouvem os bolsonaristas o chamarem de Lula ladrão. Acredito que Lula conquistou eleitores indecisos com a entrevista, e seguirá perseguindo isso no horário eleitoral. As pesquisas dirão em breve. As redes já indicavam isso ontem.
Quanto à corrupção na Petrobrás, Lula admitiu que "não se pode dizer que não houve", se os próprios diretores corruptos confessaram, e ao fazerem delações, ainda ganharam o direito de ficar com uma parte do dinheiro roubado. Que a corrupção só aparece e pode ser combatida quando é denunciada pela imprensa livre, combatida por Ministério Público e PF independentes, com outros instrumentos, como alguns que os governos petistas criaram.
Algumas manchetes da noite disseram que ele driblou as perguntas. Não vi assim. Ao invés da promessa demagógica de que não permitirá a corrupção, foi franco. Ela é uma praga, estará sempre onde há dinheiro e poder. Precisa é ser denunciada, combatida e punida, sempre.
Só acho que faltou Lula dizer que sua defesa já derrubou 26 ações na Justiça em que ele era acusado de algum tipo de corrupção. Não foram só os casos triplex e Atibaia. Foram muitos outros, todos arquivados.
Passo, pois, a outros pontos da entrevista. Renata Vasconcelos perguntou sobre o critério de escolha do próximo Procurador-Geral da República. Até agora, Lula não se comprometeu com a escolha de um dos indicados em lista tríplice pelos próprios procuradores. "Para deixar uma pulguinha na orelha deles". Ela insistiu mas não arrancou o compromisso. Lula quer rediscutir os critérios, mas foi enfático, sem citar Augusto Aras: não quer um engavetador, não quer amigo protetor no cargo. Lembrou ter reconduzido um procurador que estava investigando Pallocci e nunca ter interferido na PF, nem mesmo quando seu irmão teve a casa invadida e foi preso por crime nunca demonstrado. Nem chegou a falar da devassa na vida dos filhos.
Da mesma forma, Bonner não conseguiu que ele beijasse a cruz na questão das contas públicas, prometendo uma nova âncora fiscal. Lula desfiou dados econômicos sobre como recebeu o governo em 2003, tendo a seguir recolocado a inflação na meta, reduzido a dívida pública, gerado as reservas cambiais que até hoje protegem o Brasil, promovido o crescimento e ainda ter feito o maior programa de inclusão social que o país já conheceu.
Bonner contrapôs os resultados do período Dilma, perguntando se a receita econômica, em eventual novo governo, seria a dela ou a do governo dele. Lula admitiu que algumas medidas de Dilma - como o controle do preço da gasolina ou a busca do crescimento pelas desonerações - foram equivocadas. Mas defendeu-a com ênfase, lembrando que quando ela quis corrigir a rota, Eduardo Cunha e Aécio Neves comandaram a sabotagem ao governo no Congresso, com pautas bombas que agravaram a situação fiscal.
Entre uma resposta e outra, Lula intercalou referências a seu vice Geraldo Alckmin, enaltecendo sua experiência, acenando ao centro ao falar em governo dos dois. A rejeição de setores do PT? Minimizou . "O PT já aceitou o Alckimin de corpo e alma". Os críticos de fato já reconhecem o acerto da estratégia e se calaram.
Renata trouxe o assunto da governabilidade. Como vai se relacionar com o Congresso sem negociar barganhas com o Centrão? Lula, que conhece o sistema político, ao contrário de Moro, e mais ainda de Bolsonaro, que prometeu governar sem os políticos, para depois se entregar ao Centrão, foi franco novamente: vai acabar com o orçamento secreto, esta "excrescência", negociando com o Congresso. Não com o Centrão, mas com os partidos. Com o orçamento secreto, Bolsonaro virou o "bobo da corte", não manda nada. Assim são as coisas, com o sistema político-partidário que temos.
Por que o agronegócio é contra ele? "Porque nós defendemos a Amazônia e o Pantanal, porque combatemos o desmatamento...". Mal Renata começou a a réplica, ele evitou a generalização: "Nem todos: os que exportam são sérios, querem a preservação ambiental, mas alguns querem mesmo a devastação, e gostam do armamentismo de Bolsonaro. Da mesma forma não generalizou quando fez críticas ao Ministério Público e à PF. Hábil, não fechou portas, não comprou brigas.
Política não pode ter ódio, disse mais de uma vez. Isso não é chavão. É importantíssimo desintoxicar o Brasil, e isso precisa ser meta do sucessor de Bolsonaro, o odiento.
Em política externa, defendeu que cada país cuide de seu nariz, mas acho que não precisava ter citado China e Cuba para dizer que nestes países não existe alternancia no poder. Não era essencial dizer isso.
Tenho um reparo, feito também por Hildegard Angel em nossa live de ontem na TV 247 após a entrevista: só no minuto final ele falou de algumas coisas muito concretas para o povo que está sofrendo: renegociação das dívidas dos inadimplentes, bandeira de Ciro Gomes, a retomada da ênfase na educação, um governo para "cuidar do povo". Antes havia dito que o povo precisa recuperar o direito a um churrasquinho com cerveja.
Na verdade, milhões de brasileiros nem sonham com o churrasquinho, arroz com feijão já estaria bom demais. Mas para falar disso Lula terá o horário eleitoral a partir deste sábado. Havia a limitação do tempo. Raramente vi um político aproveitá-lo tão bem. Com domínio e classe.
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