Lula tem razão: onde está a “comunidade internacional”?
Em recentes falas, o ex-Presidente Lula tem chamado a atenção para a necessidade de reuniões urgentes no âmbito do G7, do G20 ou até mesmo no âmbito da Assembleia Geral da Organização (AG) das Nações Unidas (ONU). Na verdade, o que Lula está perguntando, indignado, é “onde está a comunidade internacional”, que deveria estar unida diante da pandemia??
O alerta do ex-Presidente está absolutamente correto, e sobretudo em relação a ONU, que é considerada, de forma geral, como a mais importante organização internacional da atualidade, e em torno da qual gravitam as principais instituições multilaterais.De fato, a ONU tem negligenciado seu papel. Entre os propósitos previstos em seu tratado constitutivo, está expressamente o de buscar “cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário [...]”, além do grande objetivo de manter a paz e a segurança internacionais. A pandemia “apocalíptica” de SARS-CoV2 (Covid 19), conforme foi classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), constitui sem dúvidas alvo de preocupação e ação por parte da Organização, e exige a coordenação de uma guerra sanitária.A AG é o órgão democrático da Organização, no qual todos os 193 Estados-Membros tem assento, bem como direito a voto. Entre suas competências, a Carta da ONU dispõe que o órgão “poderá discutir quaisquer questões ou assuntos que estiverem dentro das finalidades da presente Carta [...] e poderá fazer recomendações aos Membros das Nações Unidas ou ao Conselho de Segurança (CS) ou a este e àqueles, conjuntamente, com referência a qualquer daquelas questões ou assuntos”. Ademais, poderá fazer recomendações destinados a “promover cooperação internacional nos terrenos econômico, social, cultural, educacional e sanitário (...)”.
Isso significa que a AG está legitimada a discutir a situação da pandemia e inclusive recomendar medidas a serem tomadas pelos Estados-Membros e também pelo CS. A Carta ainda prevê que a AG “reunir-se-á em sessões anuais regulares e em sessões especiais exigidas pelas circunstâncias”, de sorte que não há impedimento para que o Secretário-Geral (SG) António Guterres convoque reunião extraordinária virtual, a qualquer momento, e a pedido da maioria dos Membros das Nações Unidas. É certo que a AG já se reuniu e já adotou resoluções relativas à pandemia, mas até agora essas medidas não produziram resultados adequados.
Por outro lado, há ainda que se qualificar a situação da pandemia como ameaça à paz e à segurança internacionais, pois a preservação de ambas é o principal objetivo da ONU. Nessa temática, a AG “poderá discutir quaisquer questões relativas à manutenção da paz e da segurança internacionais”, podendo inclusive fazer recomendações relativas a quaisquer destas questões ao Estado ou Estados interessados, ou ao Conselho de Segurança (CS) ou a ambos.”
O grande problema aqui diz respeito ao evidente declínio do multilateralismo nesse momento histórico, demonstrado no silêncio quase que ensurdecedor do CS da ONU, que só se manifestou sobre a pandemia tardiamente, e de forma ineficaz. Quem conhece a atuação do CS, o principal órgão para as questões de paz e segurança internacionais, sabe que essa oportunidade de se manifestar de maneira assertiva normalmente não seria perdida. Nesse sentido, existe até um precedente importante: pela resolução 2.177, de 2014, o CS qualificou a crise sanitária causada pelo Ebola como ameaça à paz e segurança internacionais. Tal precedente confirma a penetração das questões de saúde entre as questões de paz e segurança internacionais, causando estranhamento em relação ao que acontece no momento atual.
O próprio SG António Guterres se manifestou diversas vezes, reconhecendo que as Nações Unidas enfrentam um dos maiores desafios de sua história, alertando a comunidade internacional para o caráter global da crise, pedindo um cessar-fogo global a fim de concentrar os esforços na “guerra” contra o vírus, e ainda encampando um “Plano de Resposta Humanitária Global Covid-19” que lançou um apelo por fundos de 2 bilhões de dólares para lutar contra a doença. Os especialistas sabem que ao fazer uso da retórica da guerra, o SG está tentando provocar uma ação do CS, que diferente da AG, pode adotar decisões de natureza coercitiva caso encontre uma ameaça à paz e à segurança internacionais. Embora de forma residual a AG possa remediar o fracasso do CS, apenas este último tem o poder institucional e as ferramentas legais para organizar uma resposta global verdadeiramente forte a esta pandemia, se houvesse condições políticas para isso. Dentre os diversos meios de ação possíveis, o CS poderia, ao menos no campo teórico, determinar critérios para a produção e distribuição de vacinas, impor corredores para a entrega de equipamentos médicos, e coordenar a ação das diversas organizações que lutam contra a pandemia. A pífia atuação do CS, todavia, expôs de maneira cruel suas mazelas internas. Munidas do poder de veto das decisões neste órgão, EUA, China e Rússia tornaram impossível a discussão eficaz das saídas para a crise sanitária sem trazerem à tona suas rivalidades históricas, geopolíticas e geoeconômicas.
Por outro lado, a paralisia do CS é tanto mais inquietante quanto é preenchida pelo discurso e pela ação de outros atores internacionais, como por exemplo os fóruns econômicos, que foram além das discussões puramente econômicas que caracterizam suas cúpulas, inclusive comprometendo-se com a luta global contra a pandemia. Tanto o G7 quanto o G20 se reuniram por videoconferência e emitiram declarações, no caso do G20 inclusive mediante apelo do SG para o estabelecimento de um plano de ação internacional de “tempo de guerra” para suprimir o vírus – pois é... chegamos ao ponto em que o SG pediu ajuda ao G20, diante da inação do CS!!! Desde os primeiros casos da Covid-19, as respostas estatais foram antes unilaterais: repatriação de nacionais, declarações de estado de emergência, fechamento de fronteiras, sem falar nas acusações que foram lançadas arrefecendo tensões inapropriadas neste momento! (Impossível esquecer, por exemplo, a conduta do pior chanceler da história do Brasil em relação à China que dificultou o acesso do país a insumos da China e da Índia...) No entanto, o que se vê é que todas as iniciativas adotadas até aqui não foram eficazes para uma verdadeira batalha sanitária internacional. Como declarou Lula, a solução está em três coisas: vacina, vacina e vacina. Enquanto a indústria farmacêutica e os Estados não desistirem da “guerra das vacinas”, e enquanto o “apartheid” de vacinas não for solucionado, o único resultado que teremos será a constatação de que a solidariedade internacional foi a primeira vítima do Covid-19.
Como a saúde global é um bem público de interesse de toda a comunidade internacional, as vacinas devem ser consideradas da mesma forma, o que constitui a maior prova moral do nosso tempo. A resposta eficaz à pandemia só pode ser multilateral, massiva e solidária, logo, o acesso às vacinas deve ser equitativo, universal e transparente. Só assim passaremos do confinamento das pessoas para o confinamento do vírus, só assim será possível recomeçar.
Nenhuma novidade até aqui: a chave para sair da pandemia reside no recurso ao multilateralismo, ou seja, à ação concertada da comunidade internacional, pois nesse mundo globalizado e interconectado, nenhum país será capaz de derrotar a crise sanitária de forma unilateral. Deixar de agir coletivamente favorecendo interesses próprios é, portanto, um enorme risco, além de ineficaz, contraproducente e imoral, fora do espírito de responsabilidade da “comunidade internacional”. A luta contra a pandemia não pode ser uma questão de poder, mas de saúde e cooperação. Por isso, enquanto não existir verdadeira solidariedade no âmbito global, nenhum organismo internacional, nenhum grupo de países conseguirá vencer a batalha sanitária. E é aqui que surge a esperança na indiscutível liderança e capacidade mobilizadora de Lula, justamente para fazer esse chamado à solidariedade internacional.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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