Mais uma vez, vingança: o relatório da Polícia Federal
“Responsabilizar os golpistas e reabrir o debate sobre os crimes da ditadura é reafirmar que a democracia não está aberta a negociações”, escreve Sara Goes
Eu não deveria fazer tantas confidências nos meus textos, tampouco começar com uma. Esperei a divulgação do relatório da Polícia Federal sobre a tentativa de golpe de Estado como um cachorro que assiste a um frango na padaria. Além de passar boa parte da tarde perturbando advogados que pudessem acessar o arquivo, mobilizei uma pequena rede de apoio para me ajudar com o meu bebê e, assim, ter tempo e condições necessárias para me dedicar às 884 páginas do documento. Às vezes, eu até escuto uma voz que é uma mistura da voz do meu pai, um cruzamento de ex-namorados e alguns ex-professores me dizendo que eu implodo qualquer possibilidade de credibilidade quando faço isso, mas eu ignoro: foi uma delícia de ler. O relatório foi a materialização de uma realidade histórica evidente, a de que a tentativa de golpe de Estado não é um episódio isolado, mas parte de um ciclo contínuo de negligência e impunidade que sustenta o autoritarismo no Brasil. Ele expõe, com clareza, como os erros do passado — especialmente a ausência de responsabilização pelos crimes da ditadura militar — criaram as condições para que práticas antidemocráticas continuem a surgir e se adaptar ao longo do tempo.
Mas depois da confidência, eu me defendo. Cresci em uma família profundamente marcada por prisões, torturas, resistência e um orgulho comunista que desenhava nosso cotidiano. Minha avó, Lourdes Miranda, era conhecida como a “mãe da anistia”. Seis dos meus tios foram presos e torturados, e a casa da minha família servia como ponto de apoio para comunistas em fuga e estudantes subversivos que chegavam a Fortaleza sem muitas opções. Ali viveram figuras como José Genoíno e outros companheiros de luta, cuja dor e coragem se misturavam ao ambiente da casa. Os relatos, as fotos, os documentos e até os surtos ocasionais de sobreviventes da ditadura foram parte da nossa vida. Nada disso era escondido ou explicado para mim, para meus irmãos ou meus primos e só na adolescência percebi que nem toda família era comunista. Isso, claro, não é uma queixa. Tenho um orgulho danado da força e da história que carregamos. No entanto, ser criada por pessoas fragmentadas por um período de terror deixa suas marcas: o ódio e o horror aos militares delirantes por um suposto "poder moderador".
Essa percepção ficou mais evidente ao ler o relatório. Ele confirmou que não se tratava de um comportamento meramente impulsivo, mas de uma estratégia bem elaborada. Jair Bolsonaro, ao longo de seu governo, testou os limites da lei e explorou as brechas institucionais para alimentar sua narrativa autoritária. Desde 2019, ele investiu pesado na deslegitimação do sistema eleitoral, criando uma base de apoio radicalizada e consolidando a ideia de que apenas ele poderia "proteger" o Brasil de uma fraude inexistente. Essa retórica se traduziu em ações concretas, como a tentativa de arrastar Alexandre de Moraes para um ringue pessoal, buscando desmoralizá-lo a fim de gerar suspeição nos processos judiciais. De besta, Bolsonaro só tem a cara.
O relatório revela que o plano golpista foi sustentado por três pilares principais: desacreditar o sistema eleitoral, mobilizar apoio militar e implementar ações diretas para consolidar a ruptura democrática. Bolsonaro contou com figuras-chave para operacionalizar essa estratégia. Augusto Heleno comandaria um "Gabinete Institucional de Gestão da Crise"; Braga Netto articulava o apoio militar; e meu conterrâneo, o general Estevam Theóphilo planejava ações práticas, como a prisão de ministros do STF. Empresários e políticos, como Valdemar Costa Neto, também desempenharam papéis fundamentais no financiamento e na legitimação das narrativas golpistas. Apesar das articulações, o golpe enfrentou resistências dentro do próprio alto comando militar. Generais como Freire Gomes e Baptista Júnior recusaram-se a apoiar a ruptura, o que minou o plano. Contudo, isso não apaga a responsabilidade coletiva de uma estrutura militar que, por décadas, foi marcada pela ociosidade bem paga e pela impunidade.
A Lei da Anistia de 1979 não apenas perdoou torturadores e responsáveis por graves violações de direitos humanos, como também calcificou uma cultura de silêncio e negligência institucional. Esse pacto de "reconciliação", feito com a faca no pescoço de presos e perseguidos políticos, blindou os agentes do regime autoritário e permitiu que valores antidemocráticos continuassem a permear as estruturas de poder no Brasil.
Essa permanência de princípios autoritários parecia, por um tempo, distante da minha realidade. Em 2003, o mundo mudou para minha família e para mim. Lula se tornou presidente e o Brasil parecia estar entrando em um novo ciclo de transformação. Eu estava na universidade, meus pais, aos 46 anos, finalmente conseguiram ter apenas um emprego cada um, a casa estava quitada, e eu acreditava que as conquistas sociais, arduamente perseguidas pela luta política da minha família, estavam escritas sobre pedra. Parecia impossível imaginar que alguém quisesse abalar a estabilidade que finalmente vivíamos.
Por isso, quando em 2005 conheci o Laboratório das Nacionalidades, na Universidade Estadual do Ceará, e fui apresentada ao núcleo de estudos sobre militares, coordenado pelo professor Manuel Domingos Neto, achei curioso. Ele, que havia sido preso junto com um dos meus tios durante a ditadura, liderava um trabalho que, à época, me parecia anacrônico. Para mim, estudar militares parecia algo do passado, um tema superado em um Brasil que, naquela época, respirava transformações sociais e políticas profundas.
Só mais tarde compreendi o quanto estava equivocada. Os militares nunca realmente deixaram o poder; sua influência foi apenas reconfigurada, permeando as instituições e os debates políticos de maneira menos evidente, mas igualmente perigosa. O relatório da Polícia Federal sobre a tentativa de golpe de Estado em 2022 veio como uma confirmação de que o autoritarismo no Brasil não é uma sombra distante, mas uma força presente e contínua que ressurge de forma explícita quando encontra espaço para prosperar.
Ao mergulhar em suas 884 páginas, me deliciei com a leitura. Não porque isso seja um gesto de imaturidade política ou uma busca por esclarecimento cívico – nada tão elevado assim. O fato é que, e olhe lá eu confessando de novo, há em mim um desejo de vingança. Um desejo de ver, finalmente, os responsáveis pela perpetuação do autoritarismo e pela tentativa de ruptura democrática sendo expostos e confrontados pela Justiça.
É nesse contexto que a tese da vingança política de Espinosa se torna essencial. Espinosa nos fala que a vingança, quando guiada pela razão, pode deixar de ser um impulso destrutivo para se transformar em uma força capaz de regenerar as instituições políticas. No Brasil, aplicar essa lógica significa ir além do simples ajuste de contas com o passado. Responsabilizar os golpistas e reabrir o debate sobre os crimes da ditadura é reafirmar, de maneira concreta e inequívoca, que a democracia não está aberta a negociações.
Mais do que isso, essa "vingança política", como Espinosa define, é um gesto necessário para romper a lógica da impunidade que permitiu o fortalecimento de valores autoritários ao longo das décadas. Longe de ser um ato de retaliação irracional, trata-se de uma ação consciente para prevenir novas ameaças ao Estado Democrático de Direito, consolidando um pacto político que rejeita qualquer retorno ao autoritarismo.
O Brasil tem diante de si uma oportunidade histórica. Transformar essa indignação coletiva em justiça não é apenas uma questão de vontade, mas de necessidade. Punir os responsáveis pela tentativa de golpe e revisitar os crimes da ditadura são passos fundamentais para romper o ciclo de impunidade que ainda corrói nossas instituições.
Deliciar-me com o relatório foi também um ato de perceber o quanto estamos num momento crítico. Não há mais espaço para a complacência que marcou tantas transições inacabadas em nossa história política. A tese da vingança política de Espinosa ilumina meu caminho: canalizar minha indignação não como retaliação destrutiva, mas como um movimento transformador. Ao responsabilizar aqueles que atentaram contra a democracia, não estamos apenas corrigindo os erros do passado, mas também construindo o futuro.
Como Espinosa bem lembra, os afetos humanos, quando direcionados pela razão, são o motor das grandes transformações. Que o nosso desejo de justiça – e, sim, de vingança – se transforme na força que consolida um pacto democrático sólido, onde o golpismo não tenha mais espaço para se esconder, se adaptar ou ressurgir. É hora de tornar a democracia inegociável e de reafirmar que as sombras do passado não têm mais lugar no presente.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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