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    Emiliano José

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    Máquina mercante quer assaltar a memória da Bahia e do Brasil

    Jornalista Emiliano José faz críticas ao projeto que pretende leiloar a Quinta do Tanque, em Salvador, onde se localiza atualmente o Arquivo Público do Estado da Bahia

    (Foto: Divulgação)

    Por Emiliano José 

    Octavio Mangabeira, governador da Bahia um dia, disparou frase a ficar para a história:-  

    - Pense num absurdo: na Bahia têm precedentes.

    Partimos dela para começar a discutir o absurdo, o crime intentado contra a memória do País, não tão somente da Bahia, ao se pretender leiloar, isso mesmo, leiloar a Quinta do Tanque, onde se localiza atualmente o Arquivo Público do Estado da Bahia, com notável acervo de nossa história, não apenas da Bahia, obviamente.  

    Claro, podíamos acrescentar ao dito do ex-governador: os absurdos são próprios de classes dominantes acostumadas a toda sorte de arbítrios, violências, nascidas na escravidão primeiro dos indígenas, depois dos negros trazidos de África, levando-nos ao recorde de sermos a última nação do mundo ocidental a acabar com o modo de produção escravista, opressão sequenciada com a República, ciosa em manter privilégios, explorar no limite a classe trabalhadora.  

    Agora, sem dúvida: estamos a assistir um verdadeiro absurdo. Insisto, bato na tecla: atinge a memória da Bahia e de todo o Brasil. No Arquivo Público da Bahia, estão armazenados milhões de documentos, e estão ali, entre outras coisas, porque a Quinta do Tanque é imóvel tombado desde 1949, pelo óbvio valor histórico e mérito arquitetônico, cuja construção iniciou-se no final do século XVI para servir de casa de repouso dos jesuítas. Ninguém menos que o padre Antônio Vieira andou por lá, no final da vida, fim do século XVII. Não é imóvel para ser colocado no jogo do mercado, como se pretende com tal leilão. Em princípio, indisponível para a banca mercantil. O tombamento protege o imóvel e a documentação.

    O imbróglio nasceu de uma iniciativa de um escritório de Arquitetura, TGF Arquitetos, pretendendo indenização milionária do governo do Estado, por projetos feitos para a Bahiatursa, empresa de turismo da Bahia, ação de 1990.  Na época, a Bahiatursa alegou que tais projetos haviam sido apresentados espontaneamente, sem qualquer contrato.  

    Em 2005, gestão do governador Paulo Souto, diante da ação, a Bahiatursa, por absurdo que possa parecer, eis Mangabeira presente, ofereceu o Solar da Quinta do Tanque para penhora, nada mais impróprio. Passado o tempo, o valor da ação chega atualmente a R$ 50 milhões. Por um serviço não solicitado.   

    Houve uma rebelião contra essa estupidez. A Universidade Federal da Bahia, Academia de Letras da Bahia, Conselho Nacional dos Arquivos, Associação Nacional de História, Instituto dos Arquitetos – seção da Bahia, Instituto dos Arquitetos do Brasil, Associação Bahiana de Imprensa, Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio e até mesmo o Programa Memória do Mundo da Unesco manifestaram-se indignados contra esse absurdo.  

    O governador Rui Costa considerou tal leilão “absurdo e inaceitável” e prometeu “ir até ao Papa” para evitá-lo. Diante dos protestos, o leilão foi suspenso um dia antes pela Justiça. Apenas temporariamente, de modo a permitir, como decidiu o juiz, à Fundação Pedro Calmon transferir, em 60 dias, o monumental acervo, tarefa absolutamente impossível de ser cumprida nesse tempo.  

    O juiz, no mínimo, parece desconhecer a natureza de documentações históricas. Calcula-se, mantido o absurdo leilão, e sendo o governo do Estado compelido a fazer a transferência, um tempo de entre dois e três anos, devido à exigência de manipulação cuidadosa com a documentação do acervo. Sem cuidados, podem ser destruídos documentos essenciais à memória do País. Por tudo, um mínimo de razoabilidade exige a não realização de tal leilão.  

    A mobilização das entidades e instituições permanece, e tende a recrudescer. Pretende mostrar à Bahia, ao Brasil e ao mundo a importância do acervo da Quinta do Tanque, seu significado histórico, assentar a ideia de preservar a memória para garantir o nosso presente e futuro. A memória de uma Nação não pode se tornar mercadoria. A máquina mercante não pode destruí-la.  

    Admitido tal leilão, Gregório de Matos, de rica convivência com Vieira, um, femeeiro, para usar termo culto da época referente a sujeito doido por mulheres, outro, austero religioso, e dado a considerar as mulheres como fonte de pecados, os dois de um mesmo tempo como está posto no livro de Ronaldo Vainfas (Companhia das Letras, 2011), admitido tal leilão Gregório de Matos terá razão, tantos séculos passados:

     Triste Bahia! Oh quão dessemelhante

     Estás, e estou do nosso antigo estado!

     Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,

     Rica te vi eu já, tu a mi abundante

     A ti trocou-te a máquina mercante,

     Que em tua larga barra tem entrado,

     A mim foi-me trocando, e tem trocado,  

     Tanto negócio e tanto negociante.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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