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    Sérgio Fontenele

    Sérgio Fontenele é jornalista e comentarista político

    75 artigos

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    Marcelo Rubens Paiva encontra sua infância congelada em set de filme

    É um filme sobre uma família atropelada pela insensatez das contradições políticas, da intolerância e violência. Como tantas famílias atropeladas pelo ódio

    'Ainda Estou Aqui' foi feito para que famílias não sejam mais atropeladas por ódio e terror, como aconteceu com a minha

    Na busca por uma locação para o filme "Ainda Estou Aqui", conseguiram uma casa idêntica, rara, daquela arquitetura portuguesa comum no Rio de Janeiro do passado. Escalaram um elenco que se completava. Ao set de filmagem, eu tinha receio de ir, adiei, apesar de ser um set só de amigos.

    Eu e minhas irmãs enviamos croquis da casa em que moramos de 1966 a 1971, fotos, nos lembramos de cores e móveis. Fui. Era como se eu entrasse num lar congelado no tempo: casa em que representou o cume e o abismo da minha família, como no mito de Sísifo.

    Lá estavam o Opel Kadett da minha mãe, Fernanda Torres, séria, densa diante da câmera, brincalhona atrás dela, com quem passei festas de Réveillon lendárias, fazendo minha mãe, e Daniela Thomas, colega de trabalho, amiga.

    No elenco, Selton Mello, amigo de Baixo Gávea, fez meu pai. Dan Stulbach, colega de arquibancada, Daniel Dantas e Thelmo Fernandes, que fizeram peças minhas, Maria Manoela, amiga de décadas, que já fez um filme meu junto com Marjorie Estiano. Tudo sob as asas e tutela da absoluta dona Fernanda (Fernanda Montenegro). Tinha uma família sendo retratada, e uma família de amigos comovida ao redor.

    Ao entrar, gelei. Os mesmos móveis, cores, elementos. O mesmo cheiro. A inconfundível umidade entrava pelas frestas. Foram tão detalhistas que tinha uma conta de luz da Light de 1971 no nome da minha mãe. Na dispensa, os produtos que comprávamos no PegPag da rua Visconde de Pirajá, em Ipanema.

    A cena que filmavam: num almoço, Eunice Paiva, ciente de que mataram seu marido Rubens Paiva, anuncia aos filhos que se mudariam para São Paulo. O menino Marcelo, de 11 anos, era eu ali sentado. Minhas irmãs adolescentes Veroca, Eliana e Nalu se revoltaram com a mudança repentina.

    Ali, meu mundo desabou, em 1971 e naquele dia, 50 anos depois. Revi minha mãe. Revivi. O cuidado com que Waltinho dirigia, falando no ouvido da Fernanda, a quantidade de perguntas que os atores mirins me faziam, especialmente Babiu e Marcelo, o orgulho com que técnicos me mostravam o cenário, provavam que estavam abduzidos pela história.

    O pequeno Marcelo (Guilherme Silveira) foi pego lendo o roteiro. Não podia. A pequena Babiu (Cora Mora) me perguntava se eu era levado assim. O ator dizia que a coisa que mais gritavam nas cenas era: "Marcelo!". Pelo roteiro, Babiu perdia um dente. No dia da filmagem, Cora perdeu um.

    Eu era moleque levado, sim. Agora, virei um senhor que chora à toa, orgulhoso, com a alma lavada e levada, que, quando assistiu ao filme, correu para abraçar os filhos.

    O filme "Ainda Estou Aqui" começou a ser elaborado assim que o livro saiu. Ele já tinha um dono: Walter Salles Júnior, amigo de infância, cuja família viveu em paralelo à minha, tem a vivência, sensibilidade e delicadeza que a história pedia.

    Nossos pais foram exilados depois do golpe de 1964 para Paris, porque pertenciam ao governo Jango. Na volta, vivemos o ciclo de amizades dos cassados políticos no Rio de Janeiro.

    Waltinho frequentava nossa casa, um ponto de encontro frenético diante da praia do Leblon. Ele e minha irmã, Nalu, eram da mesma turma. Ele se lembra da noite em que meu pai nos levou no Opel ao Maracanãzinho, para assistirmos ao show do Simonal ("moro, num pa-tro-pi..."). Ele achava minha família feliz demais.

    Acompanhou à distância a invasão da casa por militares e o desfecho: o pai da sua amiga desaparecido, com suspeita de ter sido morto sob tortura, a mãe, Eunice, presa 12 dias e depois viúva com cinco crianças. Viu a casa se esvaziar e virar um restaurante. Viu pessoalmente e, agora, atrás das lentes.

    Ele me enviou durante anos os tratamentos do roteiro.

    Relíamos, discutíamos, decidíamos. Já tive outras obras adaptadas. Tive livros e peças de teatro que viraram filmes e séries. Mas agora era diferente: a história da minha mãe, que estava ainda viva antes das filmagens, com Alzheimer, e recebeu a visita dele.

    É um filme sobre uma família atropelada pela insensatez das contradições políticas, da intolerância e violência. Como tantas famílias foram atropeladas pelo ódio e terror.

    Aconteceu, continua acontecendo, não deveria mais acontecer.

    Por isso, ele foi feito. Para isso.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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