Marielle, milícias, mistérios e mentiras: um ano de infame aliteração
Quem mandou matar Marielle mandou, também, matar um projeto de Brasil em que negras e pobres fazem construções teóricas sobre os riscos do Estado Penal e do reforço neoliberal, enquanto atuam em suas comunidades para proteger indivíduos, sejam civis ou policiais
1.Um ano da execução de Marielle Franco, e há apenas dois dias Élcio de Queiroz (ex-policial militar expulso da corporação por envolvimento com milícias) e Ronnie Lessa (policial militar aposentado, igualmente suspeito de ser miliciano e traficante de armas) são presos preventivamente. Élcio de Queiroz tem foto com o presidente Jair Bolsonaro e Ronnie Lessa era seu vizinho e de Carlos Bolsonaro em um condomínio na Barra, além de ser pai de uma das ex-namoradas de um Bolsonaro-filho.
2.Um ano da execução de Marielle Franco, e o delegado Giniton Campos, titular da Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro, após a coletiva de imprensa em que anunciou apenas a conclusão da primeira fase do inquérito policial, é afastado para se dedicar a um "Programa de intercâmbio" por Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro e ex-juiz de direito, que deveria saber que delegados não são injustificadamente retirados de investigações em curso.
3.Um ano da execução de Marielle Franco, e lembramos que esse cidadão fora eleito mesmo após haver participado de um comício no qual os – também eleitos – deputados Daniel Silveira (federal) e Rodrigo Amorim (estadual, com a maior votação do estado do Rio de Janeiro), correligionários de sua coalisão, quebraram publicamente e entre sorrisos uma placa feita em homenagem à ativista, política e cidadã.
4.Um ano da execução de Marielle Franco, e Flávio Bolsonaro, advogado e filho do então presidenciável Jair Bolsonaro, e ainda deputado estadual, eleito senador naquela mesma semana, fizera um discurso em defesa do ato de vandalismo de seus colegas, afirmando que "nada mais fizeram do que restaurar a ordem".
5.Um ano da execução de Marielle Franco e, em janeiro de 2019, cinco milicianos, entre eles o major da PM Ronaldo Paulo Alves Pereira e ex-policial expulso Adriano Magalhães Rosa foram presos cautelarmente, todos suspeitos de atuarem nas comunidades de Rio das Pedras, Zona Oeste do Rio de Janeiro. O primeiro já recebeu moção honrosa de Flávio Bolsonaro enquanto era investigado como corresponsável pela chacina na Via Show, e o segundo foi condecorado com a medalha Tiradentes do Poder Legislativo do Rio de Janeiro, também por indicação de Flávio Bolsonaro.
6.Um ano da execução de Marielle Franco e Flávio Queiroz, ex-PM e ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, escondeu-se em Rio das Pedras – aparente curral eleitoral do clã Bolsonaro – após a revelação pelo Coaf de que possuiria uma movimentação de sete milhões de reais completamente incompatível com sua renda, e do registro de movimentações financeiras e emissão de cheque em favor do senador e da primeira-dama Michelle Bolsonaro.
7.Um ano da execução de Marielle Franco e certamente o ato de covardia está relacionado à instauração da CPI das Milícias, que estava em curso desde 2008 na ALERJ, a qual colocou em evidência o Escritório do Crime em Rio das Pedras – grupo ligado à grilagem, ao tráfico e a diversos assassinatos –, enquanto Flávio Bolsonaro criticava publicamente os trabalhos conduzidos. Seu genitor e atual presidente do Brasil também já teve a oportunidade de defender o papel dos "milicianos do bem" em algumas ocasiões, como em 2008, ao criticar as generalizações da CPI, e mesmo antes, em 2003, quando afirmou que o crime de extermínio seria bem-vindo enquanto a pena de morte não fosse legalizada.
8.Um ano da execução de Marielle Franco, e o Brasil assiste atônito à manipulação da tragédia na escola de Suzano em favor da legitimação de um discurso higienista e penalista que inverte o debate para sustentar a legalização das armas e a redução da menoridade penal, enquanto corpos negros são cada vez mais coisificados e usados como metáfora para o discurso do inimigo.
9.Um ano da execução de Marielle Franco, e não somente a higidez de suas bandeiras segue sendo questionada, mas, como mulher da periferia, a hipocrisia e a misoginia sociais ainda são usadas como armas para deslegitimar suas lutas, seu caráter e seu lugar de fala que, ao final, representava tantas outras bocas que sempre calaram ou foram caladas.
10.Um ano da execução de Marielle Franco e temos mais perguntas e menos respostas, mais ódio de gênero e raça e menos diversidade, mais milícias e menos incidência e efetividade do Estado para proteger e conferir cidadania em quaisquer cartografias, do centro ou da periferia. Um cenário institucional em que o País lança mão de sua estrutura e de seus três poderes para subjugar não somente a verdade, mas a justiça e, cada vez mais, o Estado de Direito.
Quem mandou matar Marielle mandou, também, matar um projeto de Brasil em que negras e pobres fazem dissertações de mestrado sobre a redução da favela a três letras e fazem construções teóricas sobre os riscos do Estado Penal e do reforço neoliberal, enquanto atuam em suas comunidades para proteger indivíduos, sejam civis ou policiais. Um projeto de Brasil no qual classes sociais não são castas intransponíveis, mas assimetrias a serem enfrentadas. Em que heterogeneidade não é, portanto, sinônimo de desigualdade; no qual direitos humanos são também humanos direitos e onde exercer a política pressupõe reconhecer o direito de vive-la. Sim, Marielle, semente, depois de um ano de seguidas aliterações infames, seguiremos sendo seus frutos e flores.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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