Militares: quando não golpeiam, prevaricam
'O fato é que os militares, em posições de comando, ao tomarem conhecimento da trama golpista, deveriam ter ido além da mera indignação silenciosa'
Me preocupa a forma como o exército está sendo apresentado no relatório da Polícia Federal divulgado na terça-feira (26/11), sobre o planejamento e execução de um golpe de Estado durante o governo Bolsonaro. Os comandantes do exército, general Freire Gomes, da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Baptista Júnior e vários oficiais das duas forças são apontados, tanto no relatório, como nas reportagens jornalísticas, como os garantidores da democracia. Como os verdadeiros elementos de resistência ao golpe.
Na realidade, a história não é bem assim. Esses comandantes militares da ativa prevaricaram. Tinham conhecimento do plano golpista e nada fizeram para impedir a ação criminosa planejada e gestada pelo presidente da República e seus principais colaboradores, os generais Braga Netto, Augusto Heleno, Mário Fernandes e outros mais.
O fato é que esses militares estrelados, em posições de comando, ao tomarem conhecimento da trama golpista, deveriam ter ido além da mera indignação silenciosa. Deveriam ter dado voz de prisão imediata a quem quer que fosse. O silêncio dos comandantes militares, quando cientes da trama golpista, ganha feições de violação dos deveres legais, de cumplicidade.
São várias as evidências levantadas pela PF, que demonstram a pressão exercida pelos colegas de farda e até por autoridades civis, aos principais militares da ativa. No relatório de mais de 880 páginas da PF existem provas claras das muitas oportunidades que os militares assediados tiveram de obstar a trama golpista.
Em dezembro de 2022, por exemplo, o ex-chefe da Aeronáutica, Carlos Baptista Júnior, foi pressionado pela deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) a aderir ao golpe. Zambelli abordou o militar durante a solenidade de formatura de aspirantes a oficial da FAB (Força Aérea Brasileira), no interior de São Paulo: “Brigadeiro, o senhor não pode deixar o presidente Bolsonaro na mão”, teria dito a deputada. Ao que Baptista Júnior respondeu: “Deputada, entendi o que a senhora está falando e não admito que a senhora proponha qualquer ilegalidade”.
Em depoimento à PF, Freire Gomes confirmou que sofreu pressão dos colegas militares ligados a Bolsonaro para aderir às articulações para anular o resultado da eleição e impedir as posses dos eleitos, Lula e Alckmin.
No inquérito do golpe, o general disse que após o segundo turno, Bolsonaro convocou reuniões no Palácio do Alvorada, e “apresentou hipóteses de utilização de institutos jurídicos como GLO (Garantia da Lei e da Ordem), estado de defesa e sítio, em relação ao processo eleitoral”.
Entre os que fizeram pressão para Freire Gomes apoiar o golpe estava o coronel reformado Laercio Vergílio, que figura na lista dos 37 indiciados por tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e organização criminosa.
Mensagens obtidas nas investigações revelam os insistentes apelos feitos pelo coronel no sentido de convencer Freire Gomes a apoiar o plano golpista. Em uma das mensagens por Whatsapp o coronel Laércio diz: “Se o Bolsonaro cair, a nação brasileira cairá junto”, “O que vocês estão esperando? O povo todo pede que nós salvemos o Brasil. ”Em outra mensagem, o coronel ameaça Freire Gomes: “Ou você toma uma decisão ou pede pra sair, é uma questão de ‘foro íntimo’ seu. Conheço seu caráter, seu profissionalismo, mas você vai amargar essa mácula na sua reputação e passar para a História como o ‘Covarde TRAIDOR DA PÁTRIA’?”
Em uma conversa por aplicativo de mensagem, o coronel reformado Reginaldo Vieira de Abreu diz ao ex-ministro interino da Secretaria-Geral, general Mário Fernandes, que havia uma divisão entre os generais pró e contra a adesão ao golpe.
Para pressionar Freire Gomes, em 12 de dezembro, poucos dias antes da diplomação de Lula, o general Mário Fernandes divulgou uma carta aberta ao Comandante do exército, em que diz: “Precisamos tomar as rédeas da situação, COMANDANTE! O respaldo popular está aí e se prosseguirmos na atual passividade, corremos o risco de perder tanto o apoio como a histórica confiança de nossa sociedade!”
Ou seja, todos os oficiais das três forças estavam muito bem-informados sobre a iminente tentativa de um golpe de Estado. Preferiram aguardar os acontecimentos dentro do quartel em Brasília, cercado por um acampamento de golpistas que os próprios comandantes validavam. Não nos esqueçamos da nota publicada em 11 de novembro de 2022, onde os três comandantes das forças armadas, claramente endossaram os acampamentos golpistas, sob o argumento da liberdade de manifestação do pensamento, liberdade de reunião e de locomoção no território nacional.
Diria que várias questões resultaram no fracasso da tentativa do golpe bolsonarista, entre eles a neutralidade do comando do exército, a falta de apoio do governo dos Estados Unidos, o reconhecimento imediato da vitória de Lula pelas principais potências mundiais e a impossibilidade de provar a alegada “fraudes nas urnas”.
O relatório da Polícia Federal é realmente consistente e merece todos os elogios. Mas cabe a nós, os civis, interpretar os riscos que se colocam para o futuro da nossa jovem democracia. Se não apoiaram o golpe, as nossas Forças Armadas foram coniventes, nada fizeram para impedi-lo.
Um legalista teria dado voz de prisão a todos os insurgentes. Como bem fez, em 11 de novembro de 1955, o então Ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, que colocou tropas na rua para interromper um golpe em andamento que contava com o apoio de oficiais da Marinha e da Aeronáutica e que visava impedir a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek e de seu vice, João Goulart.
Como se vê, já não se fazem mais legalistas como antigamente...
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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