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    Hugo Albuquerque

    Jurista e editor da Autonomia Literária

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    Musk contra a China no tabuleiro brasileiro

    A campanha de Musk contra o STF e seu endosso à extrema-direita nativa escondem que o que importa ao bilionário é a disputa entre China e EUA na América do Sul

    Javier Milei e Elon Musk (Foto: Divulgação/Presidência da Argentina)

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    *Publicado originalmente no site Opera Mundi

    Elon Musk sofreu uma ligeira queda de sua fortuna em 2023, está sob fortes críticas por sua gestão no X/Twitter, enquanto pairam dúvidas sobre o futuro da sua fabricante de carros elétricos, a Tesla, e lhe assombram os velhos questionamentos sobre seus experimentos aeroespaciais. No meio disso, ele surge no noticiário do Brasil, acusando a Justiça brasileira de promover censura com anuência do governo Lula.

    Essa não é a primeira intervenção bombástica de Musk na política sul-americana. Em 2020, ele já havia despertado a atenção da mídia por defender o golpe de Estado de 2019 na Bolívia, tuitando que “vamos dar golpe em quem quisermos” – em resposta a uma provocação de que a derrubada de Evo Morales teve o dedo da sua Tesla, por conta das generosas  reservas bolivianas de lítio, metal necessário à fabricação das baterias dos carros elétricos.

    Agora, ele ataca o Brasil baseado em um dossiê duvidoso, cujo carro-chefe era uma ameaça de prisão de funcionários do X, erroneamente creditada ao ministro Alexandre de Moraes. Na verdade, se tratava de um pedido do Ministério Público de São Paulo no curso de uma investigação usual contra o crime organizado – como agora admitiu Michael Shellenberger, o jornalista americano que produziu o Twitter Files Brazil.

    O resto das denúncias que antecederam a chegada de Musk ao debate não trazem novidades: é uma colcha de retalhos sobre o inquérito das Fake News. E, obviamente, nem o próprio Musk acredita no que diz, uma vez que o X tem uma postura leniente com os governos de Recep Tayyip Erdoğan na Turquia ou de Narendra Modi na Índia – certamente mais restritivos do que o Brasil de Lula.

    Além das banalidades de Musk, o que interessa nessa conversa são os inconfessáveis, porém óbvios, interesses econômicos, que não se realizaram no Brasil pós-Bolsonaro. Desde as agruras para aprovar o uso do Starlink em projetos do Ministério da Educação até a concorrência chinesa no Brasil, com a instalação de plantas da fabricante de carros elétricos BYD, concorrente de Musk, e o avanço chinês sobre o mercado do lítio brasileiro.

    Musk e o “tecnofeudalismo”

    Recentemente, Musk passou a defender barreiras comerciais contra os automóveis elétricos chineses, depois de anos entre o escárnio – como na famosa gargalhada sobre os carros elétricos chineses, numa entrevista de 2011 – e o posterior respeito comedido pela BYD. Ironicamente, Musk mantém plantas industriais da Tesla na China, onde o X/Twitter é proibido por não obedecer à legislação local sobre redes sociais.

    Depois de ser um dos queridinhos da administração Obama, que lhe emprestou credibilidade até para seus duvidosos empreendimentos espaciais, Musk se aproximou de Donald Trump nos últimos anos, em uma relação complexa, mas que lhe rendeu uma bela evolução da sua fortuna pessoal – e também sua conversão às teses da alt right americana como a “teoria da grande substituição” dos brancos, como um programa da esquerda, ou o protecionismo antichinês.

    A adesão de Musk ao trumpismo parece menos uma manifestação adesista, como era de início, e mais uma viagem sem volta, uma vez que se sustentou por toda administração Biden. E isso é indicado também pelo alinhamento de Musk com a internacional da extrema direita, suas narrativas e redes, como no episódio brasileiro – onde Musk se alinha ao discurso do bolsonarismo.

    O empreendedorismo autoral, estimulado por Obama, Trump e Biden, manifesta essa tendência à chamada tecnofeudalização, como apontado pelo economista grego Yanis Varoufakis: a ascensão de lideranças empresariais personalistas, com as plataformas digitais substituindo os mercados – e, acrescentamos, sob a liderança personalista de Musks ou de Bezos.

    Neste ocaso do Ocidente, Musk aparece como magnata e, ao mesmo tempo, marca e garoto-propaganda de si próprio, uma figura imagética que funciona como uma antena para fluxos de capital dispersos – pronto a gerar empreendimentos titânicos que pendem em uma corda-bamba, enquanto balcanizam o sistema econômico local, com a autorização do próprio Estado que ele fragmenta.

    Musk (e Washington) contra a China 

    Embora a sinofobia de Musk seja trumpista, ela, paradoxalmente, coincide com a de Janet Yellen, a polida secretária do Tesouro de Joe Biden, que há pouco visitou Pequim, trazendo consigo a palavra de ordem do “excesso de capacidade industrial da China” – muito embora muitas daquelas indústrias sejam ocidentais, inclusive a gigafábrica da Tesla em Xangai, com seus 20 mil empregados. 

    Diante da duvidosa e eclética justaposição de conceitos econômicos de Yellen, não parece haver indisposição americana em relação à velha China: aquela que se restringia a ser montadora industrial de projetos californianos. Mas o mesmo já não pode ser dito sobre a recém-afirmada vocação chinesa de produzir seus próprios produtos, marcas e tecnologias, exportando capitais industriais, como no caso da chegada da BYD chinesa à Bahia.

    Por trás disso, o socialismo de mercado chinês, apesar de ter gerado suas corporações e bilionários em simetria ao Ocidente, parece ter adotado um approach diferente sob a presidência de Xi Jinping. Desde o enquadramento de bilionários como Jackie Ma ou Zhang Yiming, fundador do TikTok, até a campanha de retificação do seu sistema financeiro nacional – como no caso do esvaziamento dos poderes do seu banco central, como aponta Iara Vidal.

    Para os chineses, em termos de tendência, ter fábricas da BYD no Brasil é mais relevante do que ter uma fábrica gigante da Tesla em Xangai, muito embora essa presença de capital industrial do Ocidente tenha servido para juntar os recursos necessários à autonomização da sua produção tecnológica – e ainda seja necessário. Apesar dos americanos perceberem isso, eles ainda não têm uma opção em escala e eficiência para substituir a China.

    O resultado é essa relação de amor e ódio na qual Musk sugere a sanção de empresas chinesas, muito embora ele mesmo produza na China – e  que no Brasil ele peleje menos sobre a instalação de fábricas e mais pelo acesso ao lítio para a produção das baterias; o nosso país é o quinto maior produtor mundial do metal e tem influência sobre os argentinos, bolivianos e chilenos, os integrantes do “triângulo do lítio”.

    Apesar do seu PIB per capita 3,5 vezes menor do que o americano em 2022, a China compensa isso com sua escala titânica – uma população quase cinco vezes maior que a americana – e uma capacidade sistêmica de realocar esses recursos de forma eficiente para o estado da arte tecnológico, uma meta pública da presidência de Xi, dentro de uma política de “manter [ou tentar manter] o gênio na garrafa” no que diz respeito às suas grandes corporações. 

    China que, por sinal, coleciona êxitos no seu programa espacial, como, por exemplo, na sua empreitada lunar, enquanto os foguetes de Musk falham – e fracassam também os módulos lunares da Nasa, antes líder na corrida espacial. Assim, os chineses arriscam-se a encontrar um atalho para alavancar sua riqueza relativa mais rápido do que se espera, passando da quantidade à qualidade, como prescreve uma das leis dialéticas.

    Muskismo, doença senil do fordismo

    A plataforma, cerne do “tecnofeudalismo” de Varoufakis, contudo, é mais um desdobramento da linha de montagem do fordismo, que mudou intrinsecamente a produção industrial. Seu idealizador, Henry Ford, um fascista e antissemita, também era obcecado pela Amazônia, onde construiu uma cidade modelo industrial, um empreendimento megalomaníaco à moda do que faz hoje Musk, como apontei com Gregório Gananian na Revista Jacobina.

    Enquanto a aventura de Ford na Amazônia era a empreitada do ascendente capitalismo americano contra o decadente capitalismo britânico, que lhe impunha restrições à compra do látex oriundo da Malásia, a conversa de Musk começa exatamente da decadência americana – em um contexto no qual a fábrica chinesa da BYD, que lhe toma a dianteira, será construída na Bahia, ironicamente, em um complexo industrial que antes era usado pela própria Ford.

    Portanto, as duas teses sobre essa ofensiva, de que ela se deve ao grande projeto político de Musk conectado à extrema direita global e a seus interesses econômicos imediatos, na verdade, são apenas as duas faces da mesma moeda – em uma campanha que tem a ver com tudo, menos com “liberdade de expressão”, onde o STF é escolhido como alvo por ser percebido como um lugar-tenente às investidas do bolsonarismo.

    Nesse sentido, o Brasil aparece como um espaço de circulação de capitais não enquadrado pelas restrições ocidentais, capaz de negociar com todas as partes e receber investimentos de ambos os lados – o que não interessa a Musk, que precisa de um governo subserviente ao eixo ocidental e de barreiras protecionistas e, ainda, de uma China industrial, mas condicionada ao projeto euro-americano.

    Embora o termo tecnofeudalismo seja uma deliciosa palavra de ordem, e ilustre a sensação da erosão do sistema em domínios específicos, o termo acaba escondendo tanto que isso é mantido pela ação estatal de fundo, quanto que a passagem não é dos mercados às plataformas, mas das linhas de montagem às plataformas – um encadeamento que não deixa de demandar hardwares, gadgets e uma economia bem material, com seu custo ambiental e social.

    Nesse cenário, essa tendência tecnofeudal, onde ora Musk, ora Jeff Bezos, dono da Amazon, aparecem como protagonistas parece ser a forma como o Ocidente organiza a política para essa economia de plataforma, em uma versão kitsch da Cosmópolis de Don DeLillo. Enquanto os chineses partem na contramão, advogando pela racionalidade do projeto e pela liberdade ordenada desses fluxos de capital.

    O capitalismo atual terminou, ironicamente, por largar Quesnay ou Smith para abraçar Colbert, o longevo contrôleur général – um ministro das finanças – de Luís XIV, em uma espécie de neomercantilismo pós-moderno, no qual, diante de uma concorrência inédita pelo topo tecnológico, o Ocidente, por meio de seus empoderados capitães da indústria, precisa agora fechar mercados à base de suas ainda potentes canhoneiras.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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