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    Luis Cosme Pinto

    Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 63 anos de idade e 37 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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    Não é sorte, é jeito

    Foi um mergulho no vazio, como o do trapezista que erra o salto sem rede de proteção

    Não é sorte, é jeito (Foto: Luis Cosme Pinto)

    Já tinha saído do supermercado, mas o supermercado ainda não tinha saído de mim. Entrei pra sacar dinheiro num caixa eletrônico, que fica ao lado das geladeiras de sorvete e cerveja.

    Eu lamentava não ter comprado a água mineral em promoção e guardava as notas na carteira. Ao mesmo tempo, pensava que o dinheiro trocado serviria de caixinha para o frentista calibrar os pneus no próximo passeio de bicicleta e também para acertar um mamão que peguei fiado no Clementino, ambulante que não aceita cartão e não tem pix.

    Quando botei o pé na calçada, senti o telefone mergulhar no vazio. Como um trapezista que erra o salto sem a rede de proteção.

    O celular caiu de quina e, na vertical, quicou em direção à rua, em duas ou três cambaleantes cambalhotas.

    Parou, com a tela no chão, naquele cantinho, entre o asfalto e a calçada. O nome é sarjeta ou valeta e serve para levar a água pro bueiro. Foi por ali, pela “boca-de-lobo”, que o celular deslizou e... sumiu.

    Um celular com pelo menos 6 anos de serviço.

    Um celular fora de moda.

    Um celular sem memória. 

    Um celular manchado, machucado, raspado.

    Mas que era o melhor celular do mundo, com meus contatos, lembranças, imagens. O único que eu tinha.

    Já sabia que entre o nível do asfalto e a galeria de água, que passa embaixo da rua, há uma grade para reter o lixo e evitar que a sujeira barre a água. Foi aí que ouvi o Rubens, a voz da esperança.

    “O seu celular está inteiro. Tá, pousado na grade. Tu é um cabra de sorte.”  Rubens aguardava a vez na fila do Açaí, em frente ao supermercado e viu o acidente. Ligeiro, nem me esperou pedir ajuda. Deitou no asfalto sujo, acendeu a lanterna do próprio celular e esticou o braço pela entrada do bueiro. 

    “Tô vendo ele!” Repito, Rubens está deitado de bruços no asfalto, a bonita camiseta lilás já mudou de cor. O mais preocupante: as pernas esticadas para trás invadem a faixa do ônibus. Ele se arrisca por um celular velho de uma pessoa que nunca viu na vida.

    Rubens se esforça ao máximo, a cabeça encosta no buraco, mas não dá. “Meu braço é curto!”, ele grita, quase se desculpando. Uma mulher, com duas sacolas, tenta desviar o trânsito.

    Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luis Cosme Pinto
    Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luis Cosme Pinto(Photo: Reprodução)Reprodução

     O vendedor de açaí, Osvaldo, traz um ferro fino. Pensa em “pescar” o fujão.

    “O ferro pode empurrar o telefone de vez para o fundo da galeria, melhor não.” Agora é uma mulher de coque e saltos altos que orienta. Osvaldo concorda, recolhe o ferro e continua por perto.

    Começa a se formar um mutirão. Pessoas buscam uma solução, se unem, conversam.

    Surge Graciano. Um rapaz alto, ainda suado da aula de musculação na academia ao lado. Rubens volta a deitar e ilumina os subterrâneos da rua das Palmeiras para que Graciano enxergue.

    A operação-resgate cresce mais um pouco. Por alguns minutos é o principal acontecimento naquele trecho da Vila Buarque.  

    Graciano também está no chão, os braços são compridos. “Vai dar certo”, torço em silêncio. Torço e me frustro. O que o braço tem de longo tem de grosso. Bíceps e tríceps não passam pelo vão estreito. Tão perto e tão longe.

    Um morador de rua, acompanhado de um colega de cabelos descoloridos, se aproxima.

    - Posso dar uma idéia?

    Todos nos entreolhamos.

    - Claro, pode falar. Respondo curioso.

     - Com essa vassoura, com essa parte que empurra o lixo, tá vendo? Eu consigo trazer um pouquinho mais pra perto. Eu puxo “de assim” ( ele está com a vassoura na mão e imita o movimento). Aí, meu braço entra e aí eu “cato ele”.

    - Boa sorte.

    - Né sorte, não. É jeito, moço”.

    A vassoura é de Elizângela, funcionária do supermercado, que também entra na torcida.

    Ádisson, o esguio e jeitoso homem da rua, estende todos os ossos e músculos. Ele enfia a vassoura e arrasta o celular cuidadosamente. A primeira parte deu certo, exulta.

    Mais dez segundos e o braço magro, com SIMONE tatuada em azul marinho e vermelho, sai das profundezas.

    Sustentado pelos dedos ossudos de Adisson lá está o meu velho e bravo companheiro. São, salvo e seco.

    Adisson está tão feliz quanto eu. Sempre acompanhado do colega, me pergunta: “Rola um açaí?”. Vamos até a barraca de Osvaldo, convido também Rubens, Elizângela, Graciano e o colega de Adisson.

    É o fim do carnaval e pelo celular ressuscitado recebo de minha filha uma foto da folia em Olinda.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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