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    Giselle Mathias

    Advogada em Brasília, integra a ABJD/DF e a RENAP – Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares e #partidA/DF

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    Não sou uma imagem de Instagram

    O que vimos hoje com Bolsonaro é o resultado de nos distanciarmos uns dos outros, é o resultado de nos referenciarmos somente em nós mesmos

    Nos tornamos a sociedade da superficialidade, a sociedade das imagens, dos momentos e relações rasas, aquelas em que quero apenas os sorrisos, desejos e uma falsa leveza, nos tornamos um vazio, perdemos nossa humanidade e negamos a nós próprios quando só exigimos do outro apenas a alegria e felicidade como se fosse uma imagem postada no Instagram.

    Talvez muitos se perguntem sobre o que isso tem a ver com o momento que passamos no país, com um governo tendente ao totalitarismo, o desequilíbrio entre os poderes, o golpe de 2016 e a sua continuação, a fome que nos assola, o desemprego e tantas outras questões que nos angustiam profundamente. Pululam nos jornais e nas redes sociais artigos e análises sobre o que estamos vivendo, mas como estamos na superficialidade, as análises se repetem, sempre o mais do mesmo de um lado e de outro, mas não questionamos o nosso papel e em como estamos contribuindo para manter essa sociedade que nos consome e nos faz caminhar para a autodestruição.

    No período da Revolução Industrial a jornada de trabalho passava das 14 horas diárias e a remuneração mal dava para a subsistência – não preciso aqui discorrer sobre esse período histórico – e percebo que hoje retornamos a esse sistema. Não com a lógica daquele período, mas através do processo cultural, nos tornamos Pessoa Jurídica, o trabalho foi uberizado em todos os níveis e o consumo é a regra da sociedade, as necessidades humanas são atendidas pelo mercado e a humanidade restringida às redes sociais, com imagens de uma felicidade que não é constante, mas que é vendida como se fosse.

    O humano se referencia em outro, para nos reconhecermos olhamos em espelhos, mas hoje nossos espelhos se tornaram selfies que nos afastam uns dos outros, criamos a nossa própria imagem sem o olhar do outro e nos isolamos, estamos nos tornando insensíveis ao próximo, não toleramos mais a humanidade de cada um, buscamos apenas os prazeres e oportunidades que o outro pode nos proporcionar e nessa lógica também vamos nos negando e falseando o que somos, nossas contradições, maus-humores, idiossincrasias, dores, dúvidas e tudo que nos forma enquanto ser. 

    Herbert Marcuse em “Comentários para uma redefinição da cultura”, texto escrito em 1965, diz: “Com essa integração da cultura na sociedade, a sociedade tende a tornar-se totalitária, ali mesmo onde conserva formas e instituições democráticas.” É o que vivemos hoje, uma sociedade totalitária, pois o processo cultural foi dominado pelo capital, onde “Time is Money” é a regra, onde nosso ser foi reduzido a mercadoria, e estamos todos impregnados da lógica desse sistema, independente da ideologia que possuímos, os comportamentos nossos e dos outros estão pautados pelos padrões e nos conduzimos ao abismo da negação do outro e de si próprio sem que percebamos, somos movidos pelo medo e não os questionamos, porque temos que cumprir os papeis previamente estabelecidos.

    Perdemos a habilidade e o desejo de conhecer o outro, vivemos ensimesmados, voltados para a imagem falseada pelas selfies das redes sociais, o que nos paralisa diante da realidade, pois não temos a capacidade de criticá-la, de desnudá-la, de propor e viver o novo, pois buscamos uma falsa segurança e estabilidade, por isso proliferam os repetidores de conteúdo alheio, como disse Dostoievski em sua obra “Os Demônios”, os bajuladores que sempre existiram hoje se tornaram maioria, porque o conforto dentro da mesmice é o objetivo almejado, a manutenção dos privilégios e a instrumentalização do outro para ganhos próprios é a regra.

    O que vimos hoje com Bolsonaro é o resultado de nos distanciarmos uns dos outros, é o resultado de nos referenciarmos somente em nós mesmos, de negarmos a essência do humano e acreditarmos que só podemos buscar e causar prazer, negar a realidade de que somos formados por alegrias, sorrisos, mas também por tristezas, dores, medos e inseguranças.

    Nos tornamos a sociedade da angústia, da ansiedade e da depressão porque não podemos mais expressar o que somos, a todo momento os movimentos precisam ser calculados para que a imagem do Instagram não seja desfeita. Acredito que enquanto não nos voltarmos para o outro, para a verdade do que somos e não da imagem falseada, para à solidariedade, à compreensão e acolhimento, características humanas que nos fizeram sobreviver enquanto espécie, a luta contra a desigualdade, o racismo, o machismo, a homofobia e tantas outras continuarão restritas a grupos que, infelizmente, não terão força para mobilizar a sociedade em prol de todos. 

    Enquanto não questionarmos no que nos tornamos e como estamos nos instrumentalizando na busca de um modelo de humano irreal, que só pode existir estaticamente em selfies, permaneceremos vivendo em estado de violência gerado pelo medo do outro, pois não nos reconhecemos mais, não aceitamos mais a diferença, ela só vai estar nos discursos superficiais sem que o status quo se modifique, apenas mude de mãos.

    Proponho aqui que nos voltemos uns aos outros, que reconheçamos a nossa humanidade a partir do olhar do outro sem a proteção das telas de celulares, que o diálogo entre os diferentes seja a regra, que estejamos abertos a conhecer e ouvir, a aprender e ensinar. Desejo que possamos entender que somos feitos e construídos com sorrisos e lágrimas, alegrias e tristezas, seguranças e inseguranças, medos e coragem e a partir daí voltarmos à cooperação, compreensão e solidariedade que possibilitaram a humanidade estar aqui hoje e não ter sido extinta. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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