Necropolítica no mundo do trabalhador descartável
A necropolítica é uma ferramenta teórica que permite compreender os linhames que constrõem o sentido de alguns inevitáveis, apresentados desta forma, como recurso de dominação
Na necropolítica, o outro é o inimigo a ser destruído. Esse inimigo é sempre um ser desencaixado das necessidades de mercado, com o convencimento da sociedade de que todos aqueles que não se mostram produtivos merecem morrer, todos aqueles que ficam à margem merecem morrer, todos aqueles que não são absorvidos pelo mercado – óbvio – merecem morrer!
A morte das pessoas é uma política – naturalizada como um inevitável.
Idealmente, o Estado é uma racionalidade de existência para preservar populações, é um exercício de direitos e uma experiência de autonomia, nele, o soberano exerce um controle sobre a mortalidade. Dentro do Estado, as racionalidades do capitalismo e do neocapitalismo constrõem e introjetam nas ideias as possibilidades de eliminar pessoas, como forma racional de otimizar recursos. Apesar do enriquecimento desmedido, da acumulação de 50% da riqueza mundial na mão de 26 pessoas (segundo dados OXFAM), precisamos acreditar que não há recursos para todos.
A necropolítica é uma ferramenta teórica que permite compreender os linhames que constrõem o sentido de alguns inevitáveis, apresentados desta forma, como recurso de dominação. O estado tem duas racionalidades – uma para instrumentalizar o funcionamento da acumulação e outra para apropriação da morte como parte da administração dos recursos humanos. O outro como inimigo está marcado para ser destruído.
As colonias são os locais onde se suspende o Estado de direito, num processo histórico do desenvolvimento dessas regiões do mundo, em benefício do lucro eficiente. Mata-se uma parte da sociedade em benefício da outra. A estruturação das políticas de segurança são as que mais evidenciam a necropolítica, nas quais melhor se define aqueles que não serão alcançados pela proteção do Estado, mas sim pela negação das existências.
Dizemos que o Estado é omisso e ausente – mas não, essa é uma opção – alguns serão alcançados pelo Estado – outros serão eliminados pelo Estado. Um pequeno número de pessoas terá o Estado como forma de organizar a sociedade, possibilitando a produção de riquezas e tendo essa estrutura como suporte de apoio à sustentabilidade da produção de riquezas.
O capitalismo, no advento da pandemia do COVID-19, no estágio em que se encontra, desenvolvendo o neoliberalismo, decide que os trabalhadores comuns serão os que vão para o abate. De dentro de seus bunkers, a mídia e os representantes do Estado comunicam aos trabalhadores que eles PRECISAM se entregar em sacrifício pela economia e convencem a sociedade de que não é justo distribuir renda para que as pessoas não morram de fome – depois de apoiarem o sistema bancário em 1,2 trilhão de reais. Dando provas de nossa tese, do significado do Estado para a elite e do significado do Estado para o povo.
A economia sobrepõe o valor da vida – isso para alguns, os comuns. E a sociedade é convencida de que isso é normal, é justo, é razoável – que a economia “obviamente” vale mais que a vida de um trabalhador.
O capitalismo constrói a possibilidade da eliminação de uma parte da sociedade para bem do sistema – para bem do maior custo benefício e da garantia do lucro que permita a maior acumulação, sem gastos com a população, que “não vale nada”.
A racionalização entre vida e dinheiro avança sobre o tempo integral da vida das pessoas, numa política explícita de deixar morrer, naturalizando a omissão do Estado – um não fazer do Estado.
Sim, pessoas vão morrer – faz parte!
Num cenário de “normalidade” capitalista o fator humano é esvaziado e o sentido é a economia – a economia não pode parar – a vida pode! Com isso, a sociedade não se organiza pela vida em abundância e com dignidade, ela se organiza pela riqueza em abundância na mão dos “escolhidos”, só não abrindo mão de todos os trabalhadores porque esses são os braços que produzem riqueza. A COVID vem dar-nos provas disto.
Na década de 90, a terceirização fez o recorte social do estrato que poderia morrer – pela precarização das relações de trabalho. Desde 2018, a reforma trabalhista é outro recorte social dos matáveis, com a precarização extrema das relações de trabalho, a falta de garantias, o esvaziamento dos direitos, a agressividade das exigências sobre o trabalho à exaustão e a exposição permitida a condições de trabalho que agridem a vida.
Melhor trabalho que direitos – mesmo que se morra pela falta de condições, pela exposição projetada a riscos, pelo excesso da jornada de trabalho, pela redução dos salários nos contratos intermitentes e pela incapacidade de contar tempo que leve à aposentadoria. Natural que se morra trabalhando, sem nunca ter existido como um ser que veio para viver.
Todo aquele que não se sujeite à necropolítica – à vida no fio da navalha – que proteste contra a falta de direitos – que reclame seus direitos – é colocado no grupo dos coitados e o coitadismo é vigorosamente rejeitado – doutrinariamente rejeitado. É preciso ir morrendo silenciosamente, como todo cidadão de bem deveria fazer – morrer sem atrapalhar a acumulação capitalista.
A COVID-19 vem explicitar essas razões do mundo capitalista. É preciso fazer parecer que está sempre longe a realidade da morte – porque o que vai morrer é o outro. A morte do outro é tolerável – não podemos fazer nada se vai morrer o outro. A razão capitalista acaba com a inteligência autônoma – os trabalhadores são alienados da própria razão existencial que deveria habitar cada um.
Assim, uma parte da humanidade é absolutamente descartável. O capitalismo precisa continuar crescendo a despeito das vidas. Não se trata de uma fase da necropolítica, mas de um aprofundamento. É preciso lidar com a ideia de que existe seres humanos que são descartáveis.
Você é descartável? Depende se é capaz de produzir e consumir. Isso não lhe faz gente. Gente é a mesma ínfima parcela que detém a maior parte da riqueza. O resto são peças do jogo, como formigas, que não interessam quando já não tiverem utilidade.
Morrem os velhos ou morrem os jovens? Morre quem já não pode produzir ou consumir.
O trabalhador não tem alma, qualquer semelhança com as características da escravidão não são meras semelhanças, é um processo histórico que precisa desumanizar para implantar seus valores. O social, no avanço do capitalismo para liberalismo e neoliberalismo, esvazia-se. A individualização introjeta nas relações o indivíduo como promotor de si mesmo, alijando a vida em sociedade, restando o hiperindividualismo. O individuo concentra na autorealização, ignorando os vínculos das relações sociais do ser em sociedade.
O processo de produção é desumanizado, inclusive o trabalhador NÃO PODE se perceber como trabalhador – o centro das importâncias está na mercadoria e no consumo, quando a própria pessoa é um produto a ser administrado por si mesmo – os empreendedores de si mesmos.
Somos coisas que produzem, em estoque. Quando a oferta da mão-de-obra excede à demanda, é preciso diminuir o estoque para viabilizar a fluência do mercado. A mão-de-obra em excesso e a necropolítica fazem parecer natural que ocorra uma ação que equilibre a lei da oferta e procura – a morte é um fator de regulação.
Nesse Darwinismo social, uns vão morrer – como política.
Isso explia porque o sistema de direitos é alicerçado na propriedade e não na vida. O trabalhador possui somente a si mesmo e à sua força de trabalho – é a peça mais frágil da estrutura. Parte das pessoas não merecem direitos, porque não possuem propriedades – são as vidas dispensáveis.
O capitalismo financeiro, a mecanização, a robotização, a informatização e toda modernização que dispensa a mão-de-obra, agudizam a necropolítica do Estado – fazendo parecer ainda mais natural que as pessoas que sobram morram.
Você é descartável? Todo aquele que perde sua capacidade de consumir é descartável – já pode morrer.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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