Nenhuma prece para os mortos
E, na vergonhosa marca de meio milhão de brasileiros vitimados pela Covid-19, o presidente não foi digno e nem capaz de expressar uma única palavra de condolência ou conforto aos familiares e amigos das vítimas...
Os principais acontecimentos ocorridos no Brasil nos últimos dias estão moldando o (calamitoso?) futuro de nossa precária democracia.
Para começar pela marca mais chocante, vergonhosa e desonrosa, o país atingiu, em 19 de junho de 2021, meio milhão de mortes por Covid-19. Não é apenas um número, é um escândalo total para um país que teve, durante décadas, um dos melhores e mais organizados programas de imunização do mundo, o PNI. O PNI oferecia, desde sua criação em 1973, vacinas gratuitas ministradas para toda população, e que têm sido fundamentais na prevenção de diversas doenças. Esse programa faz parte do Sistema Único de Saúde (SUS) e tem sido responsável pela erradicação ou pelo controle de diversas doenças.
Recapitulando os acontecimentos, quando a Covid-19 iniciou seu ciclo mortal no início de 2020, o PNI estava em vigor e pronto para distribuir uma vacina, assim que ela estivesse disponível no mercado. No entanto, o Ministério da Saúde, sob a diretriz de Bolsonaro e inspiração do deputado (e, supostamente, médico) Osmar Terra, partiu do pressuposto de que a doença era como “uma gripezinha” e de que em poucas semanas toda a população de 215 milhões de pessoas entraria em contato com o vírus e adquiriria naturalmente a chamada “imunidade de rebanho” (uma péssima escolha de palavras!).
A determinação de Bolsonaro foi motivada pela crença, defendida pelo ministro da fazenda, o ex-posto Ypiranga Paulo Guedes, de que a economia nacional não poderia ser interrompida por quaisquer medidas do tipo lockdown e distanciamento social, e também sob o argumento de que as vacinas custariam muito dinheiro. Em vez disso, e sob a influência de pessoas inescrupulosas, incluindo seus filhos “zeros”, alguns de seus ministros e assessores, e até de “médicos”, estes mais inescrupulosos ainda, apostou no chamado “coquetel anti-Covid”, que incluía drogas que já tinham sido testadas e, comprovadamente, não apresentaram resultados positivos contra a Covid.
Só depois que João Dória, um de seus potenciais adversários políticos nas eleições presidenciais do ano que vem, deu início a um movimento para produzir a vacina do laboratório chines Sinovac, a Coronavac, pelo Instituto Butantan, o presidente reagiu. No entanto, sua primeira resposta foi dizer que não permitiria que a "porcaria da vacina chinesa" fosse ministrada pelo PNI.
A essa altura, Dória estava usando o Coronavac como carro-chefe para sua própria promoção política. A enorme aceitação pública por, finalmente, ter acesso a uma vacina, forçou Bolsonaro a mudar de tática novamente, usando a tradicional produtora de vacinas ligada ao governo federal, a Fundação Fiocruz, que passou a produzir a vacina Astrazeneca. Ele também permitiu, relutantemente, que a Coronavac fosse ministrado em todo o país sob o PNI, uma vez que ela já estava disponível, enquanto a Fiocruz ainda estava em processo de produção.
No entanto, o volume combinado de produção das vacinas pelos dois institutos não seria suficiente para fornecer o número necessário de doses para impedir a disseminação da doença. Essa quantidade é de aproximadamente 320 milhões de doses, necessárias para imunizar cerca de 70% da população do país.
Nesse ínterim, outras vacinas produzidas pela Pfizer, Janssen e outras empresas farmacêuticas foram completamente ignoradas pelo governo Bolsonaro. A Pfizer foi um caso escandaloso: entre março de 2020 e janeiro de 2021, a presidência e o ministério da saúde simplesmente ignoraram 81 mensagens de e-mail enviadas pela farmacêutica ao governo brasileiro, se oferecendo para negociar um grande volume de sua vacina. Somente em março de 2021, quando o número de mortos chegou a 280 mil, houve uma resposta. A alegação do presidente por atrasar o contrato da Pfizer por quase um ano foi que eles estavam pedindo "muito dinheiro".
Um dos desenvolvimentos recentes mais significativos foi a instalação da CPI que a oposição no Senado conseguiu aprovar, com o mandato de investigar as condutas impróprias do governo durante a pandemia. A CPI começou há algumas semanas e vem atraindo grande atenção em todo o país, tendo audiências na TV e nas redes sociais equivalente aos episódios finais das novelas televisivas.
Depoimentos de atuais e de ex-funcionários do governo, bem como de cientistas, médicos, do CEO da Pfizer e de políticos e pessoas do círculo íntimo do presidente, estão revelando uma grande quantidade de evidências e fatos que, até então, estavam envoltos em um manto de obscuridade. Eles apontam, sem qualquer dúvida, para o governo Bolsonaro e para o próprio, como responsáveis por muitas das centenas de milhares de mortes pela Covid-19, em um caso ultrajante que promete desencadear consequências não só nacionais, mas também internacionais, desembocando no Tribunal Penal Internacional, em Haia, Holanda.
Cientistas como Pedro Halal, da UFPel, calcularam que, com base no número médio de mortes da Covid no mundo, e comparando-o com as estatísticas brasileiras, poderiam ter sido poupadas as vidas de cerca de 400 mil brasileiros e brasileiras, caso o governo tivesse agido em tempo hábil. Em vez disso, o governo instruiu, por exemplo, o Embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster, a negociar e comprar grandes quantidades de hidroxicloroquina do governo dos EUA (ainda sob a administração de Donald Trump) para serem distribuídas no Brasil pelo SUS.
Em uma das capitais mais afetadas, Manaus, o então ministro da Saúde, General Pazuello, enviou uma das principais autoridades do ministério, a médica Mayra Pinheiro (que passou a ser mais conhecida pela alcunha de “Capitã Cloroquina”) para promover o uso da cloroquina. Enquanto isso, centenas de manauaras e amazônidas morriam nas UTIs locais por asfixia, devido à falta de oxigênio. O presidente da CPI, e ex-governador do Amazonas, Osmar Aziz, disse com todas as letras que Manaus e seus cidadãos foram alvo de uma experiência macabra por parte do governo federal, que resultou em milhares de mortes, numa clara analogia com os experimentos do infame Dr. Joseph Mengele no campo de concentração de Auschwitz na Alemanha nazista.
A indignação generalizada começou a produzir reações públicas em todo o país. Em 29 de maio, houve protestos em muitas grandes cidades, com a grande imprensa tradicional ainda tentando minimizar o clamor das ruas, não divulgando sua extensão e importância. No entanto, no dia 19 de junho, os protestos, que passaram a ser conhecidos como “19J”, foram bem maiores e abrangeram mais de 400 cidades, em quase todos os estados. Isso não poderia ter sido ignorado pela grande imprensa brasileira, uma vez que alcançou as manchetes em todo o mundo. Protestos semelhantes aconteceram em muitas capitais da Europa, América do Norte e Ásia.
O cenário político de 2022 está começando a se delinear e Bolsonaro não está gostando do que vê. Em primeiro lugar, seu principal adversário histórico, o ex-presidente Lula, não apenas recuperou seus direitos políticos, desmoralizando seus acusadores e julgadores, mas iniciou um diálogo nacional com muitas das principais lideranças, abrangendo uma ampla gama do espectro político. Algo que parecia pouco provável até poucas semanas atrás, aconteceu: o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em entrevista à Rede Globo, declarou que, em caso de um segundo turno entre Bolsonaro e Lula, votaria pela democracia, votando em Lula. Esse movimento foi surpreendente, já que todo o imbróglio político em que o Brasil se meteu a partir de 2016 teve origem justamente na contestação feita pelo PSDB, por meio de Aécio Neves, mas contando com o apoio de suas principais lideranças, do resultado do processo democrático de 2014, já que as urnas haviam claramente mostrado a reeleição de Dilma Roussef, do PT.
A combinação desses recentes acontecimentos está produzindo um sentimento aparentemente novo para Bolsonaro, acostumado a impor seus desejos e políticas como o ditador que, no fundo de sua alma (se é que se pode dizer que ele a tem), deseja ser. Esse novo sentimento é o medo. A mente já perturbada do presidente dá sinais claros de desequilíbrio progressivo, com ameaças crescentes ao Supremo Tribunal Federal, ao Senado, aos seus oponentes, e chamando as Forças Armadas de “meu exército”, mesclando sua pessoa com o Estado que supostamente representa.
Além disso, Bolsonaro conta também com o apoio das polícias militares dos estados que, em tese, estariam sob o controle e comando dos governadores. O que acontece, de fato, é que no Brasil de hoje, nenhum dos governadores estaduais pode afirmar que está no controle de suas polícias, em cujas fileiras há inúmeros admiradores e seguidores do “mito”.
Há um caminho sendo delineado, e que infelizmente poderá levar ao desastre, em vista das eleições presidenciais e parlamentares do próximo ano. Vários analistas da cena política, entre eles o professor de ciências sociais e meu colega da Unicamp, Marcos Nobre, estão prevendo dois cenários prováveis. O primeiro é a vitória de Bolsonaro sobre Lula, seguida por uma ruptura democrática e o início de um regime autoritário, a exemplo do que já vem ocorrendo na Hungria, Filipinas e Polônia. A segunda é que Lula vencerá Bolsonaro, mas este tentaria em seguida um golpe de Estado, com o apoio dos militares e das polícias estaduais, algo já abertamente mencionado por pessoas de seu círculo familiar.
Qualquer que seja o futuro do Brasil, sua frágil democracia parece estar sob grave ameaça, certamente sem precedentes desde que foi restabelecida em 1985, após 21 anos de ditadura militar.
E, na vergonhosa marca de meio milhão de brasileiros vitimados pela Covid-19, o presidente não foi digno e nem capaz de expressar uma única palavra de condolência ou conforto aos familiares e amigos das vítimas...
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