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Guilherme Scalzilli

Historiador e escritor

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Ninguém checou o TSE

Checagem que não checa é um avatar jornalístico da auditoria que não audita. Ambas fizeram da urna eletrônica o símbolo perfeito das instituições que “funcionam”

(Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil)

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A imprensa atuou como porta-voz do Tribunal Superior Eleitoral nos debates sobre a urna eletrônica. As checagens, especialmente, substituíram o compromisso investigativo pela repetição de enunciados oficiais. No esforço para legitimá-los, adotaram conceitos duvidosos e ignoraram as manifestações especializadas que os desmentem.

Alardeando protocolos genéricos de segurança, os veículos fugiram do verdadeiro tema do debate. Medidas que pretendam tornar a impressão do voto desnecessária precisam resolver, com a mesma eficácia, os desafios específicos de sua base digital. Como garantir, por exemplo, que os boletins de urna sempre reflitam os votos originais?

Essa questão exige rigor absoluto, pois a única referência dos números que o eleitor digita chega-nos através dos códigos gerados pela máquina. A operação do teclado, o voto em si, é irrecuperável. O que o TSE chama de “recontagem” não passa de uma leitura derivativa (e, afinal, programada) de um gesto que não deixa vestígios.

Logicamente, só faz sentido verificar o sistema antes do sufrágio. Depois, ainda que alguém conseguisse analisar o imenso volume de informações produzidas por todas as urnas, e supondo que os eventuais comandos maliciosos deixassem rastros, os danos então constatados seriam irreversíveis. No lugar da prevenção, teríamos uma autópsia.

Mas não basta acompanhar etapas isoladas de preparo da urna. A certeza que buscamos não envolve a integridade das partes (hardware, código-fonte, etc.), e sim o efetivo funcionamento da máquina. Como nos controles industriais dessa escala, portanto, a auditoria deve ser também prática, simulando uma votação no aparelho pronto para uso.

Os problemas surgem da incapacidade do TSE de avaliar todas as 500 mil urnas. Fazê-lo por amostragem é absurdo, já que nesse tipo de “produto” não existe índice tolerável de erro. Um único mecanismo falho pode inutilizar milhares de votos e até definir resultados eleitorais. A coisa fica ainda mais grave quando sabemos que, em 2018, foram testados cem equipamentos. Um para cada grupo de cinco mil.

A resposta cruel à questão do início é que não há garantia senão da própria confiança teórica no processo. A urna talvez seja auditável, individualmente, nas condições ideais do laboratório. Quando apenas 0,02% do total chega perto desse modelo, porém, falta controle para 99,98% das máquinas. Tendo zero chance de confirmação posterior.

A falácia da recontagem articula-se com diversas mistificações secundárias, que não possuem mínima razoabilidade. Por exemplo, a ideia de que o sigilo do voto se tornaria mais vulnerável com a sua impressão. Ou o temor de “interferência humana” em uma cadeia produtiva que já mobiliza centenas (milhares?) de funcionários privados.

Tudo isso os jornalistas detectariam refletindo um pouco sobre o assunto. Para juízos qualificados, bastaria uma pesquisa simples na internet. Ali descobrimos o relatório de um Comitê Multidisciplinar Independente, afirmando que “no sistema eleitoral brasileiro atual É IMPOSSÍVEL, para os representantes da sociedade, conferir e auditar o resultado da apuração eletrônica dos votos” (destaque no original, de 2010).

Outros documentos contrariam o TSE. Eis o resumo de artigo publicado em 2018 por cientistas da Universidade de Aarhus (Dinamarca), Unicamp, UFCG, UFPE e UFSCar: “Múltiplas vulnerabilidades graves foram detectadas nos últimos Testes Públicos de Segurança da urna eletrônica brasileira. Quando combinadas, comprometeram o sigilo do voto e a integridade do software, principais propriedades de segurança do sistema”.

Nessa época, o Jornal da USP realizou matéria sobre o voto impresso. Os acadêmicos entrevistados foram unânimes em defender a medida e relataram vários encontros onde os técnicos da área reivindicaram sua adoção. E novamente: “Nos quatro testes já efetuados [pelo TSE], os profissionais da área de computação encontraram problemas”.

As denúncias vêm de cientistas, não de Jair Bolsonaro. E lidam com matéria objetiva, fatos documentados e verificáveis. Mas os veículos ficaram satisfeitos em repetir que nunca houve confirmação de fraudes, como se esse argumento rasteiro desqualificasse quem critica exatamente a impossibilidade da confirmação de eventuais fraudes.

O negacionismo da mídia, partilhado por amplos setores progressistas, cedo ou tarde parecerá ridículo, temerário ou suspeito. Claro, todos alegarão que “não era o momento” de adotar o voto impresso, que defenderam a confiança nas estruturas democráticas, que combateram os planos malignos de Bolsonaro. Mas seus discursos foram bem outros.

A imprensa teve uma postura assertiva que extrapolou o viés antibolsonarista. Falando em nome da “verdade”, as reportagens atestaram a eficácia do frágil controle externo da urna. Rebateram alegações de fraude reforçando a duvidosa inviolabilidade do sistema. Enfiaram custos e rapidez num debate sobre transparência e segurança.

Checagem que não checa é um avatar jornalístico da auditoria que não audita. Ambas fizeram da urna eletrônica o símbolo perfeito das instituições que “funcionam”. O ufanismo tecnológico espelha a ilusão de normalidade que distorce a história recente do país. No regime da pós-mentira, boas convicções substituem as provas incômodas.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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