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    Urariano Mota

    Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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    No aniversário de Paulo Freire, educador do mundo

    Neste dia, Paulo Freire completaria 103 anos. Mais cento e três anos vão passar e não passará a sua obra em todas as gentes

    Com o boneco de Paulo Freire no carnaval de Olinda. Foto de Francêsca Calado (Foto: Arquivo pessoal)

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    Neste dia, Paulo Freire completaria 103 anos. Mais cento e três anos vão passar e não passará a sua obra em todas as gentes. Nascido no Recife em 19 de setembro de 1921, Paulo Freire superou a contradição de ser do Recife e de todas as cidades do mundo ao mesmo tempo. Muito além de Pernambuco, ele se tornou um homem sem fronteiras por força do trabalho como filósofo e educador revolucionário.  

    Começo pela cópia do seu lindo poema que fala da universalidade no Recife. Quem me avisou desta bela poesia foi Peter Lownds, o escritor e poeta norte-americano mais brasileiro que existe, ele próprio um estudioso da obra de Paulo Freire. Peter Lownds traduziu este poema para o inglês. É um cântico de amor ao povo, que o nosso maior educador escreveu no exílio, sob a mais funda saudade:

    “RECIFE SEMPRE

    Cidade bonita
    Cidade discreta
    Difícil cidade
    Cidade mulher.
    Nunca te dás de uma vez.
    Só aos pouquinhos te entregas
    Hoje um olhar.
    Amanhã um sorriso.
    Cidade manhosa.
    Cidade mulher.
    Podias chamar-te Maria
    Maria da Graça
    Maria da Penha
    Maria Betânia
    Maria Dolores.

    De Santiago te escrevo, Recife,
    Para falar de ti a ti,
    Para dizer-te que te quero
    Profundamente, que te quero. 

    Cinco anos faz que te deixei –
    Manhã cedo – tinha medo de olhar-te,
    Tinha medo de ferir-te
    Tinha medo de magoar-te.
    Manhã cedo – palavras não dizia.
    Como dizer palavra se partia?

    Tinha medo de ouvir-me,
    Tinha medo de olhar-me, Tinha medo de ferir-me,
    Manhã cedo – as ruas atravessando
    O aeroporto se aproximando,
    O momento exato chegando,
    Mil lembranças de ti me tomando
    No meu silêncio necessário. 

    De Santiago te escrevo,
    Para falar de ti a ti,
    Para dizer-te de minha saudade, Recife,
    Saudade mansa – paciente saudade,
    Saudade bem-comportada. 

    Recife, sempre Recife, de ruas de
    nomes tão doces,
    Rua da União, que Manuel
    Bandeira tinha “medo que
    se chamasse rua Fulano
    de tal” e que hoje eu temo
    que venha a se chamar
    Rua Coronel Fulano de Tal. 

    Rua das creoulas
    Rua da aurora
    Rua da amizade
    Rua dos Sete Pecados.
    Recife sempre.
    Teus homens do povo
    queimados do sol
    gritando nas ruas, ritmadamente:
    Chora menino pra comprar pitomba!
    Eu tenho lã de barriguda pra “trabiceiro”!
    Doce de banana e goiaba!
    Faz tanto tempo!
    Para nós, meninos da mesma rua,
    aquele homem que andava apressado
    quase correndo – gritando, gritando:
    Doce e banana e goiaba!
    Aquele homem era um brinquedo também.
    Doce de banana e goiaba!
    Em cada esquina, um de nós dizia:
    Quero banana, doce de banana!
    Sorrindo já com a resposta que viria.
    Sem parar,
    sem olhar para trás,
    sem olhar para o lado,
    apressado, quase correndo,
    o homem-brinquedo assim respondia:
    “Só tenho goiaba
    – Grito banana porque é meu hábito”.
    Doce de banana e goiaba!
    Doce de banana e goiaba!
    Continuava gritando,
    andando apressado,
    sem olhar para trás,
    sem olhar para o lado,
    o nosso homem-brinquedo.

    Foi preciso que o tempo passasse,
    que muitas chuvas chovessem,
    que muito sol se pusesse,
    que muitas marés subissem e baixassem,
    que muitos meninos nascessem,
    que muitos homens morressem,
    que muitas madrugadas viessem,
    que muitas árvores florescessem,
    que muitas Marias amassem,
    que muito campo secasse,
    que muita dor existisse,
    que muitos olhos tristonhos eu visse,
    para que entendesse
    que aquele homem-brinquedo
    era o irmão esmagado
    era o irmão explorado
    era o irmão ofendido
    o irmão oprimido
    proibido de ser.

    Recife, onde tive fome
    Onde tive dor
    Sem saber por que
    Onde hoje ainda
    Milhares de Paulos
    Sem saber por que
    Têm a mesma fome
    Têm a mesma dor,
    Raiva de ti não posso ter.

    No ventre ainda, ajudando a mãe
    a pedir esmolas
    a receber migalhas.
    Pior ainda:
    a receber descaso de olhares frios.
    Recife, raiva de ti não posso ter.

    Recife onde um dia tarde
    No ventre ainda, ajudando a mãe
    a pedir esmolas
    a receber migalhas.
    Pior ainda:
    a receber descaso de olhares frios.
    Recife, raiva de ti não posso ter.

    Recife, cidade minha,
    Já homem feito
    Teus cárceres experimentei.
    Neles, fui objeto
    Fui coisa
    Fui estranheza. Quarta feira. 4 horas da tarde.
    O portão de ferro se abria.
    Hoje é dia de visita.
    Sem fila.

    O relógio de minha casa também dizia
    Um, dois, três, quatro,
    Quatro, três, dois, um,
    Mas sua cantiga era diferente.
    Assim, cantando,
    O tempo dos homens
    Apenas marcava.
    Recife, cidade minha,
    Em ti vivi infância triste
    Adolescência amarga em ti vivi.

    Não me entendem
    Se não te entendem
    Minha gulodice de amor
    Minhas esperanças de lutar
    Minha confiança nos homens
    Tudo isto se forjou em ti
    Na infância triste
    Na adolescência amarga
    O que penso
    O que digo
    O que escrevo
    O que faço
    Tudo está marcado por ti.
    Sou ainda o menino
    Que teve fome
    Que teve dor
    Sem saber porque
    só uma diferença existe
    entre o menino de ontem
    e o menino de hoje,
    que ainda sou:
    Sei agora por que tive fome
    Sei agora por que tive dor.

    Recife, cidade minha.
    Se alguém me ama
    Que a ti me ame
    Se alguém me quer
    Que a ti te queira.
    Se alguém me busca
    Que em ti me encontre
    Nas tuas noites
    Nos teus dias
    Nas tuas ruas
    Nos teus rios
    No teu mar
    No teu sol
    Na tua gente
    No teu calor
    Nos teus morros
    Nos teus córregos
    Na tua inquietação
    No teu silêncio
    Na amorosidade de quem lutou
    E de quem luta.
    De quem se expôs
    E de quem se expõe
    De quem morreu
    E de quem pode morrer
    Buscando apenas
    Cada vez mais
    Que menos meninos
    Tenham fome e
    Tenham dor
    Sem saber por que
    Por isto disse:
    Não me entendem
    Se não te entendem.
    O que penso,
    O que digo,
    O que escrevo,
    O que faço,
    Tudo está marcado por ti.
    Recife, cidade minha,
    Te quero muito, te quero muito.

    Santiago, fevereiro de 1969.
    Paulo Freire” 

    Vale a pena lembrar uma brevíssima história da sua prisão em 1964, no quartel do exército em Olinda. Ali, um dos oficiais responsáveis pelo quartel de Obuses, sabendo que ele era professor famoso, solicitou a Paulo Freire que alfabetizasse alguns recrutas que não sabiam assinar nem o nome. Com paciência, Paulo explicou ao militar que estava preso exatamente por causa disso. “Eu estou preso porque alfabetizo, viu?”.

    Em “Educação como prática da liberdade”, escrito do Chile em 1965:

    “Na experiência realizada no Estado do Rio Grande do Norte, chamavam de ‘palavra de pensamento’, as que eram termos e de ‘palavras mortas’, as que não o eram. Num dos Círculos de Cultura da experiência de Angicos, no quinto dia de debate, em que apenas se fixavam fonemas simples, um dos participantes foi ao quadro-negro para escrever, disse ele, uma ‘palavra de pensamento’. E redigiu: ‘o povo vai resouver os poblemas do Brasil votando conciente’... 

    Quando um ex-analfabeto de Angicos, discursando diante do Presidente Goulart, que sempre nos apoiou com entusiasmo, e de sua comitiva, declarou que já não era massa, mas povo, disse mais do que uma frase: afirmou-se conscientemente numa opção. Escolheu a participação decisória, que só o povo tem, e renunciou à demissão emocional das massas. Politizou-se”. 

    Em Pedagogia do Oprimido, escrito em 1968, o terceiro livro mais citado na área de humanidades em todo o mundo, Paulo Freire aprofunda o pensamento de como vê a educação: 

    “Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos, quer dizer, pode fazer deles seres desditados, objetos de um ‘tratamento’ humanitarista, para tentar, através de exemplos retirados de entre os opressores, modelos para a sua ‘promoção’. Os oprimidos hão de ser o exemplo para si mesmos, na luta por sua redenção. A pedagogia do oprimido, que busca a restauração da intersubjetividade, se apresenta como pedagogia do Homem....

    Se, porém, a prática desta educação implica no poder político e se os oprimidos não o têm, como então realizar a pedagogia do oprimido antes da revolução? Esta é, sem duvida, uma indagação da mais alta importância”. 

    Em outros pontos da Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire fala melhor do seu diálogo com o marxismo, na sua prática educativa:

    “A tão conhecida afirmação de Lênin: ‘Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário’ significa precisamente que não há revolução com verbalismo, nem tampouco com ateísmo, mas com práxis, portanto, com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas...

    De uma pedagogia problematizante e não de uma ‘pedagogia’ dos ‘depósitos’, ‘bancária’. Por isto é que o caminho da revolução é o da abertura às massas populares, não o do fechamento a elas. É o da convivência com elas, não o da desconfiança delas. E, quanto mais a revolução exija a sua teoria, como salienta Lênin, mais sua liderança tem de estar com as massas, para que possa estar contra o poder opressor” 

    As citações acima vêm como esclarecimento de que a sua pedagogia também era política, de um educador de esquerda. Mas não de um marxista ortodoxo, ou de um marxista organizado, pode ser dito. Ele possuía diferenças com o sectarismo do partido no Recife dos anos 60. Mas sempre guardava um diálogo fraterno, de futuro camarada, também pode ser dito. Na leitura de suas obras, percebemos uma cultura ampla, filosófica, que se nutre dos clássicos marxistas e dos não-marxistas como Bergson, que vai das fontes de educadores nacionais e estrangeiros. Os conceitos que Paulo Freire descobre são de um pesquisador e pensador. Não sei em que ordem, se primeiro vêm da pesquisa nas ruas, no campo, ou do pensar. É da sua formação o trabalho no meio do povo e a reflexão sobre esse trabalho no gabinete. Ou de modo mais claro, no que ele chama com muita razão de práxis: 

    “A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos. 

    Neste sentido, em si mesma, esta realidade é funcionalmente domesticadora. Libertar-se de sua força exige, indiscutivelmente, a emersão dela, a volta sobre ela. Por isto é que, só através da práxis autêntica, que não sendo ‘blablablá’, nem ativismo, mas ação e reflexão, é possível fazê-lo”. 

    O texto ficou longo, mas não disse tudo. Assim, resumo: Paulo Freire sempre.   

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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