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    Nívea Carpes

    Doutora em Ciência Política e mestre em Antropologia Social

    27 artigos

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    No Brasil não se fala sobre "segurança"

    O debate sobre segurança, violência e justiça é sim muito complexo e tem a capacidade de construir o desenho das relações sociais que forjam uma sociedade em todos os seus detalhes e complexidade

    O Brasil está entre os países mais violentos do mundo, competindo somente com países africanos e outros países da América Latina. A prova disto são os altos índices de mortes violentas, 65.602 homicídios em 2017, segundo o Atlas da Violência de 2019. Ao mesmo tempo que o Brasil já foi a 5ª economia do mundo, deixando claro que a capacidade de produzir riqueza não produz a diminuição da violência necessariamente.

    Apesar da dimensão do problema, essa temática é insuficientemente explorada, sobretudo com análises que vinculem propostas políticas, dados, instituições e diminuição da criminalidade. Com um frágil histórico na coleta de informações criminais, o país não possui informações suficientes sobre as variáveis do contexto que envolve a segurança pública. Tampouco há tradição na troca de experiências entre países ou mesmo no aproveitamento de experiências bem-sucedidas.

    Não se pode negar que exista um cenário que justifica a negligência na atenção à segurança pública, cenário vinculado ao processo histórico de dominação dos povos “descobertos”. 

    A violência é método para os “civilizados” desbravadores que colocam em prática “conquistas de novos territórios”. A violência faz parte da sociabilidade violenta desenvolvida, apresentada e propiciada pelas relações sociais com os nativos, com os povos escravizados e entre “conquistadores” – nativos e escravizados. 

    A violência também é um produto das relações produtivas, econômicas e políticas desde o extrativismo. Ela é necessária no capitalismo, uma vez que só é possível a acumulação a partir da exploração da força de trabalho alheia. A desfaçatez da estrutura capitalista tem por base a violência, que não permite que os explorados tenham consciência sobre a lógica das relações que propiciam a acumulação.

    Discutir a violência e falar sobre segurança pública, fatalmente, levaria à compreensão de que existem direitos que não devem se estender a todos, sob pena de quebrar a cadeia de produção da riqueza capitalista. O debate sobre segurança pública está vinculado à percepção de acesso à cidadania, que só pode ser alcançada por meio de um ambiente de convivência segura que permita acesso a oportunidades de crescimento intelectual, profissional e social.

    A história oficial é contada justamente pelos que destroem a solidariedade humana, naturalizando os processos de dominação, como se não houve possibilidade de os fatos históricos terem ocorrido de outras formas. As eras são narradas como fatalidades, com o determinismo conveniente aos violadores de direitos dos povos, treinando a tolerância da sociedade, construindo a assimilação da violência como parte do cotidiano.

    No contato com a violência e a segurança, há experiências diferentes entre os diversos estratos da sociedade. Alguns vivenciam a violência física e da marginalização de forma cotidiana, como uma realidade que bate à sua porta frequentemente. Outros assistem e experimentam a violência como ficção televisiva e como sentimento de insegurança do espaço da rua. Outros ainda, pagam por um sentimento de segurança proporcionado pelo isolamento em espaços restritos e artificiais, de exígua convivência social, estimulando uma percepção de si mesmos como distantes da realidade dos “comuns”. Os poucos dominadores das cenas sociais nacionais voam para seus paraísos ou constroem seus paraísos no mundo – de onde comandam a vida e a morte das “formigas”.

    Na esteira das criações capitalistas, o liberalismo conquista mentes, fazendo crer que é possível que a economia produza o ajuste ao equilíbrio das necessidades das sociedades e, convenientemente, o acesso a direitos é relegado a último plano. 

    As diversas formas de se atingir status de segurança não são discutidas por serem formas de construção de ambientes de igualdade. Não há interesse das elites, desde sempre nas colônias, de que a população tenha acesso à justiça nos seus diferentes formatos. A violência, a segurança e a justiça são conceitos amplos e práticas que constroem realidades de paz ou de guerra, de igualdade ou de desigualdade e, sobretudo, de oportunidade ou subjugo.

    Uma das confusões convenientes historicamente é o trocadilho que se faz entre valor da vida e valor do patrimônio, ideias centrais para projetar segurança. A tal ponto que passa a ser natural que se proteja fortemente o patrimônio, em detrimento da vida, uma vez que os que estão com suas vidas em maior risco de morte são os mais vulneráveis. Não por acaso, a lógica dos interesses protegidos pelas elites passa século após século sendo reproduzida e sendo naturalizada como o modo certo das pessoas respeitáveis levarem suas vidas.

    Frente a um modelo de dominação corrente e inerente ao imperialismo, as forças de segurança são doutrinadas à proteção dos interesses das elites. Dessa lógica que todas  instituições organizadas para produzir e aplicar a justiça são cruéis com seu povo, não desenvolvendo qualquer empatia pelos “comuns”, uma vez que não se vêem como defensoras e protetoras dos direitos da população em geral.

    Daí que não podemos nos dizer surpresos quando temos forças armadas operadoras de uma lógica institucional desprezível diante dos interesses de seu povo, capazes de articularem-se com forças internacionais e de desprezarem a soberania nacional, coisa que parecem nem compreender do que trata. É apenas mais uma das elaborações institucionais que se submete à naturalização da força dos dominadores imperialistas a que estão sujeitos historicamente, sem qualquer capacidade crítica ou vontade expressa de livrar-se dessa condição.

    O debate sobre segurança, violência e justiça é sim muito complexo e tem a capacidade de construir o desenho das relações sociais que forjam uma sociedade em todos os seus detalhes e complexidade. Parece claro porque não é de interesse dos grupos de poder a apresentação dessas questões. É perigoso quando um povo compreende os fatores que lhes submetem a uma vida precária de nação subdesenvolvida eternamente, a despeito de toda riqueza que possa produzir.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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