Notas sobre a crise em Bangladesh
A política de 76 anos, que ocupou o cargo por 15 anos, fugiu para a vizinha Índia após sua renúncia em 5 de agosto
Bangladesh, nação bengali, é um país localizado na Ásia meridional, praticamente encravado no subcontinente indiano. Faz fronteira com o Golfo de Bengala e Myanmar, antiga Birmânia. Um dos países mais populosos do mundo, com cerca de 170 milhões de habitantes, fez parte da Índia britânica, depois do Paquistão e, finalmente alcançou a independência em 1971, quando Sheikh Mujibur Rehman, o Banglabandhu, pai da nação, saiu diretamente da cadeia no Paquistão para tornar-se o primeiro presidente da país.
Como é possível deduzir, por posição estratégica, Bangladesh é disputado por Índia, Paquistão, Reino Unido, Estados Unidos, Rússia e China.Desgraçadamente suas crises políticas internas, quase sempre são derivadas de motivações cuidadosamente exacerbadas por forças externas.
Em um país majoritariamente mulçulmano, cerca 85% da população, Banglabandhu tentou construir um governo secular, socialista e próximo da Índia. O resultado foi óbvio, em 1975, um golpe militar assassinou praticamente toda sua família, menos duas filhas.O general Ziaur Rahman, artífice do golpe, tomou o poder, até ele mesmo ser assassinado em 1981.
Dez anos depois, o poder foi devolvido aos civis. A cena política continuou sendo disputada entre a Liga Awami, chefiada Sheikh Hasina, uma das filhas de Banglabandhu, e Begum Khaled Zia, viúva do ex-líder golpista, General Ziaur Rahman, dirigente o Partido Nacionalista de Bangladesh (BNP).
Dados facilmente encontráveis na rede, nos permite construir um quadro da situação do país, após 15 anos de governo de Sheikh Resina. Em 2020, Bangladesh tornou-se o 52º maior exportador do mundo, com um valor de exportações de 46,6 bilhões de dólares. Em 2019, foi o 46º maior importador do mundo, com um valor de importações de 53,3 bilhões de dólares.
Sua economia é liderada pelo setor de serviços, que representa 56,5% do PIB do país. A indústria representa 29,3% da economia e produz principalmente vestuário, papel, couro, tecidos de algodão e fertilizantes.
Em 2023, o PIB de Bangladesh era de 2.571,70 dólares por habitante, ou 404,53 bilhões de dólares para o país como um todo. Isto coloca Bangladesh no 33º lugar entre as principais economias. A taxa de inflação em Bangladesh em 2023 foi de aproximadamente 9,88%. Uma performance nada modesta para um país da periferia do mundo.
Para Bharat Dogra, jornalista e escritor indiano,em artigo publicado no Global Research, o país sofreu dois séculos sob dominação britânica. No processo de independência em 1947, com ele a “partição do país, que levou a mortes e deslocamentos em larga escala, além de uma fome em massa. Logo após, padeceu sob um certo colonialismo do Paquistão Ocidental. A independência de Bangladesh nos anos 1970 foi conquistada a custo de milhões de mortos e refugiados, uma grande parte de origem hindu.
O autor chama a atenção para o fato do país ser profundamente impactado pelas mudanças climáticas “…que se refletem em mais tempestades marítimas, inundações e ondas de calor intensas. O mar agitado está devorando a terra enquanto a densidade populacional já é muito alta, na verdade a mais alta entre os países populosos, cerca de 1.342 pessoas por km 2.”
Dogra afirma que os desafios de desenvolvimento são realmente muito difíceis, agravados pelas desigualdades estruturais e pelas elites consolidadas, que impõem resistência a processos de mudança. Como sabemos, sempre é bom desconfiar quando a mídia corporativa ocidental nomeia uma liderança como autocrata e seu governo como regime..
É contra este pano de fundo que precisa se avaliar uma dirigente. Sheikh Hasina foi capaz de fornecer ao país conquistas significativas em desenvolvimento e estabilidade no curso de quase duas décadas. Não deixa de ser interessante, que não ouvimos os gritos de apoio de nenhuma feminista ocidental.
Já Andrew Korybko, analista geopolítico estadunidense, radicado em Moscou, comenta que para além das dificuldades econômicas causadas pela COVID19, e as tensões entre políticas secularistas contra movimentos nacionalistas islâmicos, existem outras razões que nos ajudam a compreender a dramática deposição da primeira-ministra. Para ele, trata-se de uma operação de mudança de regime. Ver aqui.
Semelhante ao famoso “… “EuroMaidan” de 2014 na Ucrânia, onde queixas legítimas deram origem a um movimento de protesto nacional que foi então cooptado por oportunistas políticos, radicais e forças externas para realizar uma mudança de regime como o Ocidente queria.”
Após a fuga de Sheikh Hasina, manifestantes invadiram o palácio, o que levou o chefe militar Waker-uz-Zaman a iniciarr um governo de transição e uma investigação sobre as mortes que ocorreram durante a agitação deste verão, cerca de 400 pessoas. o general afirmou que a lei marcial não será imposta se o país retornar à paz. Além , é claro, de anistiar a líder da oposição.
Como em muitos lugares, podemos citar Bolívia 2019, ou o Brasil de 2016, diante da pressão de grandes manifestações, convocadas por redes sociais e sob lideranças de seres obscuros, como o tal movimento estudantil, liderados por alunos de ciência política da Universidade de Daca, os militares, sempre eles, se comprometeram a manter a lei e a ordem, mas “se recusaram a usar força letal para impedir que um grande número de manifestantes invadissem o palácio presidencial.” Por isso liberais de esquerda ou direita no Brasil, se espantaram quando Vladimir Padrino López, à frente das forças armadas venezuelanas, declarou-se em defesa de Nicolás Maduro, presidente constitucional do país.
Kanwal Sibal, ex-ministro das Relações Exteriores da Índia e ex-embaixador na Rússia de 2004 a 2007, afirma que a expulsão forçada da Primeira-Ministra do Bangladesh, Sheikh Hasina, por agitadores de rua no dia 05 de agosto tem muitos aspectos, internos e externos, que serão todos problemáticos a curto e médio prazo para o próprio Bangladesh, para a Índia e para toda a região.
Sibal acrescenta, um outro ator interno importante, a presença de forças islâmicas radicais no sistema político do Bangladesh, como o Jamaat-e-Islami (JeI), que está estreitamente ligado ao BNP. JeI acredita no Bangladesh islâmico, ao contrário da Liga Awami, mais secular.
Para o autor, tais elementos islamitas radicais, que não participaram da luta de libertação contra o exército paquistanês no então Paquistão Oriental, são de orientação pró-paquistanesa e anti-indiana, dado o papel da Índia na libertação do Bangladesh. Com a deposição de Sheikh Hasina, o seu partido em desordem política e o BNP politicamente revitalizado, o JeI e os elementos islâmicos afiliados terão muito mais influência e enfraquecem as forças mais seculares do país,conclui.
Não por acaso, a Liga Awami, o partido da luta pela liberdade do Bangladesh, não foi convidada pelo Comandante-em-Chefe do Exército para se juntar à discussão para a formação de um governo interino do Bangladesh.
O autor historiciza as tensas relações entre Washington e Sheikh Hasina. Curiosamente, o Bangladesh não foi convidado para a Cúpula da Democracia em Washington em 2021. No mesmo ano, os Estados Unidos impuseram sanções às forças paramilitares de elite do Bangladesh, o Batalhão de Ação Rápida, por violações dos direitos humanos. Em 2016, os Estados Unidos opuseram-se ao processo do governo da Liga Awami contra milícias locais pró-Paquistão que colaboraram com os militares paquistaneses em assassinatos e violações durante a luta pela libertação.
Em 2023, o Departamento de Estado anunciou que estava a tomar medidas para impor restrições de visto aos cidadãos do Bangladesh responsáveis ou envolvidos no processo eleitoral no Bangladesh. Em Maio de 2024, o Departamento de Estado impôs sanções ao antigo comandante do Exército de Bangladesh por corrupção.
Entretanto, o momento maior diz respeito às ações de proteção do seu queridinho, Muhammad Yunus, fundador do Grameen Bank, o banco dos pobres, que foi condenado a seis meses de prisão por violar as leis trabalhistas do Bangladesh e por se opor a Sheikh Hasina, e, agora, foi convidado a liderar o governo interino.
Sibal, ainda, chama atenção para outros aspectos geopolíticos importantes. “Os laços Índia-Bangladesh floresceram sob Sheikh Hasina, através de numerosos projetos de desenvolvimento, comunicação e trânsito. Eliminou grupos rebeldes anti-indianos que operavam no território do Bangladesh, bem como o terrorismo dirigido contra a Índia por elementos islâmicos ligados ao Paquistão.”
Por outro lado, o governo de Bangladesh reforçou os seus laços com a China, que se tornou o maior fornecedor de equipamento militar do país. Bangladesh foi um dos primeiros países, em 2016, a aderir à iniciativa chinesa “Um Cinturão, Uma Rota”, BRI na sua sigla em inglês. A China, por exemplo, irá construir um porto em Bangladesh como parte da sua estratégia marítima no Oceano Índico, contribuindo para fortalecer a sua presença naval naquele país.
Guadi Calvo, escritor e jornalista argentino, nos trás maisinformações sobre o “santo” que acaba de assumir o governo interino de Bangladesh. Ele é economista e vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 2006. Muhammad Yunus, criador das microfinanças, um homem do establishment internacional e bem visto pelos Estados Unidos. A administração de Hasina abriu uma série de investigações sobre ele. Hasina denunciou publicamente Yunus, e seu Grameen Bank por seus métodos rudes para recuperar microempréstimos de mulheres rurais.
Em 2011, Yunus foi forçado a deixar o cargo de CEO daquele banco.Ao saber da demissão de Hasina, Yunus declarou que: “hoje deveríamos comemorar. “Nos livramos de um governo muito autoritário” e descreveu o golpe orquestrado pela CIA, como uma “revolução” e reiterou: “Estamos gostando,“Estamos desfrutando da nossa liberdade e uma nova era está a abrir-se para o Bangladesh.”
MK Bhadrakumar, diplomata indiano aposentado, matou a charada. Em artigo recente, ele aponta que o Deep State (Estado profundo) detectou Yunus já em 1965, quando ele foi levado como estudante estrangeiro da Fulbright para a Universidade de Vanderbilt e passou os anos seguintes nos Estados Unidos. Com o passar dos anos, os mentores americanos patrocinaram generosamente a ONG de Yunus conhecida como Grameen Bank, que, desde sua criação em 1983, forneceu incríveis US$ 7,6 bilhões (até o final de 2008) em empréstimos sem garantia em mais de 1.000 vilarejos em Bangladesh, criando uma vasta rede de influência no país!
Yunus entrou para o panteão dos heróis mundiais dos Estados Unidos que receberam três distinções – Prêmio Nobel da Paz (2006), Medalha Presidencial da Liberdade (2009) e Medalha de Ouro do Congresso (2010). Os únicos outros seis heróis que fizeram companhia a Yunus foram Martin Luther King Jr., Elie Wiesel, Madre Teresa, Nelson Mandela, Norman Borlaug e Aung San Suu Kyi.
A principal qualificação de Yunus como menino de ouro do projeto de “democratização” da National Endowment for Democracy, NED, era o fato de ele dirigir uma ONG apoiada por fundos dos EUA.
Bhadrakumar aponta que em seus primeiros comentários à mídia, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, evitou claramente qualquer exigência de que o país realizasse eleições antecipadas. Blinken disse: “Estamos monitorando a situação de perto. Eu diria apenas que todas as decisões que o governo interino tomar precisam respeitar os princípios democráticos, precisam defender o estado de direito e precisam refletir a vontade do povo.
Mas, qual a percepção da ex-primeira-ministra sobre a sua situação?. A RT, mídia russa, comentou que Sheikh Hasina, foi forçada a renunciar e fugir do país em meio a protestos em massa, acusou os EUA de envolvimento em sua deposição.Em uma mensagem no domingo, dia 11 de agosto, citada pelo Economic Times, Hasina sinalizou que poderia ter mantido o poder se tivesse concordado em sediar uma base militar dos EUA em Bangladesh.
“Eu renunciei, para não ter que ver a procissão de cadáveres. Eles queriam chegar ao poder sobre os cadáveres de estudantes, mas eu não permiti, renunciei ao cargo de primeiro-ministro”, disse Hasina.
“Eu poderia ter permanecido no poder se tivesse rendido a soberania da Ilha de Saint Martin e permitido que a América dominasse a Baía de Bengala. Eu imploro ao povo da minha terra, por favor, não seja manipulado por radicais.”
Hasina estava se referindo à ilha de recifes de corais de Bangladesh na parte nordeste da Baía de Bengala e às supostas tentativas de Washington de tomar o controle sobre ela. Várias autoridades de Bangladesh alegaram nos últimos meses que os EUA propuseram arrendar a ilha em várias ocasiões, mas foi recusado. Hasina disse que “homens brancos” – seu termo para autoridades dos EUA – se encontraram com ela antes da eleição anterior e buscaram seu apoio para construir uma base aérea em Saint Martin.
A política de 76 anos, que ocupou o cargo por 15 anos, fugiu para a vizinha Índia após sua renúncia em 5 de agosto. Ela prometeu retornar a Dhaka “em breve… com a graça do todo-poderoso Alá”.
Para concluir, Hasina, ela própria muçulmana, construiu um governo secular que buscou se equilibrar entre as grandes potências contemporâneas. Se deu bem com a Índia, desde 2016 fazia parte das Novas Rotas da Seda e contratou a Federação Russa para construir uma usina nuclear. Sua remoção é uma punição à Índia por sua política soberana. Além disso, Bangladesh que apresentou sua proposta de adesão aos BRICS, certamente se afastará da Rússia. E, no caso da China, além dos freios ao desenvolvimento econômico compartilhado, o país se tornará mais um fator de instabilidade ao sul do gigante asiático.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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