Nova Política Industrial não é Jabuticaba
Nenhum país poderá ser realmente desenvolvido sem uma indústria competitiva, digital, moderna e sustentável, escreve o sociólogo Marcelo Zero
Parte considerável da nossa mídia e dos nossos comentaristas de economia parece viver numa bolha ideológica. Uma bolha neoliberal que estacionou no espaço-tempo do Brasil dos idos das décadas 80 e 90 do século passado. Como Milei, aferrado em sua admiração a Thatcher e Menem, os elementos dessa bolha ainda não chegaram ao mundo do século XXI.
Essa parece ser a única explicação plausível para as infundadas críticas ao plano da Nova Indústria Brasil (NIB), lançado recentemente pelo governo brasileiro.
Mal foi anunciado, o plano foi recebido com críticas negativas e vaticínios sombrios sobre seu inevitável fracasso. Sequer foram feitas análises minimamente criteriosas. Simplesmente afirmaram, com base em pressupostos ideológicos arcaicos, que a Nova Indústria Brasil repete as mesmas fórmulas “que não funcionaram em governos passados”.
Ora, o plano da Nova Indústria Brasil se inspira nas novas políticas industriais que se já se espalharam por muitos países, nos últimos anos. Essas novas políticas industriais inspiram-se também, por sua vez, em muitas experiências históricas bem-sucedidas.
Antes de tudo, é preciso considerar que as políticas industriais são praticamente tão antigas quanto a própria indústria, mesmo em países considerados exemplos de liberalismo econômico.
Alexander Hamilton, primeiro Secretário do Tesouro dos EUA, logo advogou pela proteção da indústria do seu país, afirmando que os argumentos de Adam Smith a favor do comércio livre “embora teoricamente verdadeiros (geometrically true)’, eram ‘falsos, na prática’. Tinha razão. Tem razão.
Da mesma forma que os EUA, França, Alemanha, Japão, Coreia do Sul, China etc., se industrializaram graças aos incentivos e à proteção do Estado, consubstanciados em sólidas e multidimensionais políticas industriais.
O Brasil também. O grande crescimento da economia e da indústria brasileiras entre os anos 30 e 80 do século passado foi pavimentado pela ação do Estado e por políticas industriais e de desenvolvimento. O BNDES, por exemplo, foi decisivo para tornar a Embraer uma empresa de grande sucesso internacional. Naquele período, frise-se, o PIB per capita brasileiro cresceu ao ritmo de 3,7% ao ano, ficando apenas um pouco abaixo do Japão, cujo PIB per capita aumentou 3,8%.
Fomos campeões mundiais de crescimento, no período desenvolvimentista, hoje tão demonizado. No início da década de 80 do século passado, a indústria brasileira produzia mais que a Coréia do Sul e a China, combinadas. Éramos responsáveis por pouco mais de 3% da produção industrial do mundo.
Entretanto, nos anos 90 e no início deste século, com o predomínio do paradigma neoliberal, essas políticas se retraíram e passaram ser demonizadas, especialmente em países em desenvolvimento, os quais, em razão das crises das dívidas, foram fortemente pressionados a adotarem medidas econômicas liberalizantes, como condição única e sine qua non para voltar a crescer. O Estado tornou-se vilão, como sustenta até hoje Milei. Mas essas políticas neoliberais fracassaram no mundo inteiro e, nos últimos anos, as políticas industriais voltaram com tudo.
Além do fracasso do liberalismo econômico ideologizado e “falso, na prática”, como diria Hamilton, há outros fatores que explicam esse renovado e forte investimento em políticas industriais.
Em primeiro lugar, a grande crise mundial do liberalismo “financeirizado”, iniciada em 2008, combinada com os gargalos de oferta causados pela pandemia, desarranjou fortemente as cadeias produtivas globais, revelando grandes fragilidades em setores estratégicos, como o da saúde e o de chips e semicondutores.
Em segundo, há o desafio monumental das mudanças climáticas, as quais impõem investimentos maciços e urgentes em energias renováveis, transportes etc., e a migração acelerada para uma economia “descarbonizada”.
Em terceiro, a ascensão meteórica da China provocou grandes rivalidades econômicas com os EUA e Europa. Tanto os EUA quanto a Europa estão, há muitos anos, preocupados com a crescente fragilidade de muitos de seus setores industriais. Há uma tendência de regionalização e de nacionalização de segmentos cruciais das cadeias de produção. Todos querem dominar esses setores estratégicos.
Hoje, a China produz 28,4% da produção industrial do mundo. Os EUA, antigos campeões absolutos, produzem “apenas” 16,6 %. A Alemanha produz 5,8%. O Brasil produz cerca de 1,3%. Em breve, a China produzirá o dobro do que os EUA produzem, mais de cinco vezes o que a Alemanha produz e cerca de 25 vezes o que o Brasil consegue produzir.
Como bem assinalou Willy C. Shih, em artigo publicado na liberal Harvard Business Review, intitulado “A nova era da política industrial está aqui”, muitos países temem que suas tecnologias ou setores estratégicos estejam enfraquecendo, o que representa uma ameaça ao crescimento econômico, à segurança nacional e à capacidade de inovação.
Por isso, nesse artigo menciona-se que “governos de todo o mundo estão intervindo cada vez mais no setor privado por meio de políticas industriais projetadas para ajudar os setores domésticos a alcançar metas que os mercados sozinhos provavelmente não alcançarão.”
Segundo o FMI, são mais de 2,5 mil medidas de política industrial já implementadas globalmente. Portanto, o empenho nessas políticas é geral. Nos EUA, em especial, esse empenho na nova industrialização é monumental. Somando-se tudo, o esforço ascende a cerca de US$ 2 trilhões, nos próximos 10 anos, conforme estimativas recentes. No Reino Unido o esforço é de US$ 1,7 trilhão. Na União Europeia, é de US$ 1,6 trilhão,
Algumas novas políticas industriais se concentram na criação de empregos; outras em influenciar o comércio internacional. Exemplos notáveis no mundo todo incluem o Acordo Verde Europeu, o Horizonte 2020 e o Fórum Estratégico para Projetos Importantes de Interesse Europeu Comum (IPCEI), na UE; a Lei de Investimento e Empregos em Infraestrutura (IIJA), a Lei de Redução da Inflação (IRA) e a Lei CHIPS and Science, nos Estados Unidos; o Made in China 2025 e a Belt and Road Initiative, na China, para dar citar somente alguns programas.
Tais políticas não se limitam a oferecer subsídios e empréstimos significativos, mas também estabelecem tarifas protetivas e regras de conteúdo doméstico, como as previstas no Crédito Fiscal Federal de Produção Industrial Avançada da Lei de Redução da Inflação nos EUA.
Programas específicos dessas políticas já apresentaram resultados importantes. A Operação Warp Speed, por exemplo, foi muito bem-sucedida na aceleração dos testes clínicos e na introdução de novas tecnologias, como vacinas, diagnósticos e terapêuticas de RNA mensageiro, para combater a Covid-19. A Autoridade de Pesquisa e Desenvolvimento Avançado Biomédico dos EUA (BARDA-entidade governamental) assumiu grandes riscos financeiros, algo que as multinacionais farmacêuticas não estavam dispostas a fazer, apostando em um portfólio de tecnologias inovadoras, incluindo aquelas que nunca haviam sido testadas.
Assim, temos hoje modernas vacinas baseadas em RNA mensageiro graças a essas políticas.
Pois bem, o Brasil, país que se desindustrializou bastante nas últimas décadas (caiu, como vimos, de ao redor 3% da produção industrial mundial para cerca de 1,3%), não pode ser exceção nessa tendência mundial inexorável.
Observe-se que a Nova Indústria Brasil está muito longe de ser mera repetição de políticas anteriores, como argumentam setores mal-informados. O programa da Nova Indústria Brasil, conforme resume bem o Portal da Indústria, reúne as seguintes características:
- Ele foi pensado para um cenário internacional completamente novo, em que a corrida pela transição ecológica e a transformação digital se impõem como condições necessárias para o crescimento e o desenvolvimento. A nova política colocará o país na fronteira tecnológica da Indústria 4.0.
- Em sintonia com outras políticas industriais de países desenvolvidos, a Nova Indústria Brasil é organizada por missões, que buscam resolver desafios do país, num cenário mundial cada vez mais competitivo, com linhas horizontais de financiamento. Com o fortalecimento das nossas cadeias produtivas, seremos um país mais resiliente para enfrentar crises e turbulências internacionais.
- Não será criado nenhum tributo adicional nem haverá aumento de impostos e tarifas existentes pagas pela população para financiar a nova política industrial. Os R$ 300 bilhões anunciados são quase integralmente de créditos para ações de promoção do desenvolvimento industrial - incluindo incentivos para inovação - e serão empregados ao longo de quatro anos.
- Todo projeto financiado será acompanhado por um sistema de metas, métricas, monitoramento e sanções, quando não houver cumprimento do que foi acordado, incluindo devolução dos recursos.
Lula, Mercadante e Alckmin não estão “voltando para o passado”. Aqueles que estão numa bolha arcaica são parte da nossa mídia e os ideólogos do rentismo e de um país eternamente preso a um modelo primário-exportador.
Nenhum país poderá ser realmente desenvolvido sem uma indústria competitiva, digital, moderna e sustentável. E nenhum país poderá alcançar esse objetivo sem políticas públicas e o apoio inteligente do Estado. O resto é desvario ideológico de Conan, a alma canina que inspira Milei e, aparentemente, o CEO da Suzano, entre outros;
A Nova Indústria do Brasil não é uma jabuticaba obsoleta. É o futuro do Brasil e de todo o mundo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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