Nuances da sustentabilidade: visões fantásticas da Amazônia
Um ensaio ficcional que reafirma a complexidade e importância da Amazônia para a humanidade
“A floresta nasce de uma semente que brota no útero da terra. A floresta é também uma plantação de símbolos. Há, na região amazônica, um emaranhado de símbolos, a começar pela simbologia própria da floresta de todos os homens, resultado do sonho de sair de si à procura do ‘outro que somos nós ainda, numa expressão dialética do próprio ser’" - Medeiros, Maria Lúcia.
Nota Metodológica
O Estado do Amazonas, principal referência cultural e ecológica da Amazônia, continua sendo uma região periférica de um país ainda sem futuro. Educação precária, sistema de saúde pública deficiente e insalubre, segurança pública despreparada ao combate das milícias e do crime organizado, culturas e ambientes em rápido processo de destruição, serviços sociais que não protegem as mulheres, as crianças e os grupos minoritários, acessibilidade urbana e rural colapsada, ausência de planejamento urbano, entre outras tragédias sociais e econômicas. Enfim, o Estado do Amazonas insiste em permanecer, por décadas subsequentes, entre os piores indicadores de desenvolvimento humano do Brasil, e também do mundo subdesenvolvido. E o mais grave: abriga 1/5 de sua população em condições de miséria extrema, recebendo, em média, menos de 260 dólares ao mês. A naturalização deste cenário pelas autoridades e instituições públicas e privadas constitui um atentado político ao acesso aos direitos de cidadania propugnados em nossa carta magna e nos tratados internacionais. A recente tragédia associada à falta do gás oxigênio para garantir a sobrevivência das pessoas acometidas de covid-19, resultando em milhares de mortes nas calçadas dos seus hospitais, semelhante à morte de peixes fora d’água, a falta de caixões em número suficiente para o sepultamento destas vítimas, e as covas coletivas sem a devida identificação destas mesmas vítimas constituem o simulacro da modernidade amazônica. Tudo isso, online, em tempo real para o Brasil e o Mundo. Após o controle desta pandemia, ainda em curso, continuamos cercados pelo fogo criminoso que se alastra em todas as direções eliminando faunas e floras, e transformando parte importante de nossa história em fumaças, e em novas doenças semeadas pelos exterminadores de nosso futuro. E pondo em risco a nossa sobrevivência física e espiritual. Em geral e normalmente, nossa temperatura interna varia entre 36,5°C e 37,2°C. Quando a temperatura externa é suficientemente alta fazendo com que nossa temperatura corporal ultrapasse 40°C, o funcionamento de nosso organismo começa ficar comprometido, podendo parar de funcionar. As grandes e contínuas queimadas das florestas amazônicas têm potencializado esta situação trágica e gerado inúmeras graves doenças respiratórias. Mais de 50 mil garimpeiros e milhares de madeireiros em atividades ilegais na região agravam este quadro desolador e distópico. As quantidades de mercúrio em diversos rios, várzeas e atmosferas amazônicas atingiram níveis que afetam a qualidade da saúde desta e das futuras gerações. Contraditoriamente, a Amazônica é a região mais poluída do planeta. E os poderes estaduais e municipais instituídos, legislativo, executivo e judiciário, continuam funcionando e atuando normalmente como vivêssemos na Suíça. No Amazonas, os criminosos agem certos que o crime compensa. Há outros aspectos estruturais que tornam o Amazonas, um lugar diferenciado. Pergunta-se: O que seria o Brasil sem a Amazônia? Esta questão suscita outra indagação: O que seria a Amazônia sem o Estado do Amazonas? Nesta Era da sustentabilidade, assentada no combate contínuo à mudança climática, à injustiça ambiental e à desigualdade social, o Estado do Amazonas assume o protagonismo de principal unidade federativa do planeta. Sua complexidade cultural e ecológica o torna único, diferenciado e desafiador aos especialistas responsáveis pela formulação e o aperfeiçoamento de suas políticas públicas. Desafios que reverberam no futuro dos brasileiros, e também da humanidade. Sua criminosa destruição cultural e ecológica demonstra a incapacidade gerencial e política em se formular uma política de desenvolvimento sustentável para a região. Demonstra também a conivência de setores institucionais estatais com o crime organizado. Mostra a falência de o atual poder político na região. Por isso, sempre pergunto: Quem salvará a Amazônia? E o Amazonas? Como? Quando? Na verdade, na Amazônia, a incompetência de seu poder executivo e político, em nome do “povo” e do progresso ilimitado, continua distribuindo destruição cultural e ecológica, sofrimento e dor às suas populações. Tudo isso contribui para que ela se mantenha refém de forças políticas externas à região. A Amazônia precisa se libertar das amarras do subdesenvolvimento. Mas, esta história será narrada por ela mesma.
“Nuances da sustentabilidade: visões fantásticas da Amazônia” é um ensaio ficcional que reafirma a complexidade e importância da Amazônia para a humanidade. Ele compõe-se de cinco textos integrados que, em ordem, serão publicados em quatro semanas subsequentes. Por meio de macro cenários, a própria Amazônia apresenta fragmentos etnográficos que permeiam a sua vida plena, sequestrada durante a sua colonização forçada e a autocracia das relações políticas governamentais na região. Serena, insiste na promoção de seus povos e se põe como a principal protagonista na narrativa de sua própria história, por meio de cenários fantásticos construídos a partir das resiliências de seus parentes e das solidariedades de setores das sociedades nacionais e internacionais. Altiva, mostra como a ideologia da sustentabilidade do mercado tem guiada a sua inserção aos processos mundiais e imobilizada as suas escolhas de “ser”, “estar” e “relacionar”, conforme os seus desejos e perspectivas civilizatórias. Preocupada, clama por sua liberdade refém das barbaridades do capitalismo predatório e da estupidez dos sucessivos governantes. Perspicaz, esclarece ao mundo porque ela instiga o imaginário das pessoas e se faz presente nos projetos dos estados nacionais dos países industrializados. Explica porque ela é uma entidade mágica e abençoada, alegre e surpreendente, diferenciada e única no planeta e nos cosmos. Sem melancolia, denuncia as dores e os sofrimentos impingidos aos seus povos, desde o passado remoto, em nome de um tipo de desenvolvimento predatório que continua dizimando os seus parentes e pondo em risco a estabilidade ecológica do planeta. Sagaz, distribui desafios e compromissos civilizatórios, a partir de processos que ressignificam o sentido da vida no mundo da sustentabilidade, simultaneamente, espiritualizada, situada e globalizada. É fantástico, com elegância descreve a sua grandeza cultural e ecológica: “somos mais de 385 povos originários, 2000 grandes rios e 500 bilhões de árvores em minhas vastidões territoriais, que iluminam a humanidade e se apresentam como estratégicas à estabilidade climática planetária.”. Sem arrogância, insiste em sua importância global para a construção da sustentabilidade plena, referenciada em suas formas de convivências integradas à natureza. Alerta e esclarece que a sua destruição cultural e ecológica, transformará a sua condição de dádiva ao Brasil e ao Mundo em desgraça aos seus povos e ao futuro da humanidade. Quantas doenças e sofrimentos serão disseminados ao mundo durante esta tragédia anunciada? Sensível, alerta as crianças e a juventude sobre o seu colapso cultural e ecológico e as consequências imediatas. Pede proteção e convida todos para conhecê-la.
Deprimida, a Amazônia anuncia a sua morte lenta e contínua e insiste em seu desenvolvimento sustentável. Prevê seu fim: “Num passado recente, a Terra foi morada da Amazônia, filha de ‘As Amazonas’ e mãe de culturas milenares que orientaram ‘o nosso saber, ser, estar e relacionar’ com as naturezas e os parentes, em bases sustentáveis. A arrogância e a alienação do mundo das técnicas aliadas ao capitalismo predatório se transformaram numa arma mortífera contra ela, que se despediu da humanidade clamando por justiça social e sustentabilidade plena.” Epitáfio inscrito em sua lápide. Em amargas lembranças relembra sua longa jornada em defesa de sua sobrevivência.
Amazônia: rupturas e convergências civilizatórias
Esta é uma história de alegrias e sofrimentos, moldada no mundo fantástico da sabedoria de meus povos originários e de minhas naturezas. Neste breve ensaio ficcional, apresento fotografias literárias de cenários de diferentes momentos de minha vida, desde a chegada dos primeiros europeus, aventureiros e genocidas, no início do século 16, até a atual Era da sustentabilidade, invenção da civilização ocidental, em processo de decadência ética e política.
Minhas mães chamavam-se “As Amazonas”, mulheres guerreiras, libertárias e defensoras intransigentes de minhas culturas e territórios. Habitavam as florestas profundas e tinham pleno domínio sobre o mundo das águas que inundam a imensidão dos meus ambientes e vivificam as minhas faunas e floras. Sempre me protegeram contra as maldades dos invasores e a colonização forçada imposta aos meus filhos que compunham os diferentes povos que habitavam meus domínios territoriais, desde os Andes até o entorno do oceano Atlântico. Chamam-me Amazônia, sinto-me grata e honrada em manter esta tradição, embora ela tenha origem ocidental. Tenho consciência que a ocupação e a expropriação de minhas culturas e ecologias faziam parte de um projeto imperialista que, também, se estendia a outras culturas, territórios e continentes longínquos. Posso afirmar que as primeiras manifestações acerca de minha sustentabilidade surgiram quando os parentes me defendiam das hordas de bárbaros.
Sou testemunha e vítima das rupturas irreversíveis provocadas pelos encontros de duas ou mais civilizações, para o bem ou para o mal, dependendo do ponto de vista. As chegadas dos invasores em meus territórios foram épicas. Bandos de aventureiros em grandes naus movimentadas por centenas de marujos. Sonhos, delírios e preconceitos anunciados pelos seus mosquetes, arcabuzes e balestras que trucidavam as nossas crianças, mulheres e pajés, abrindo novos caminhos às suas crenças e aos seus desejos de dominação. Chegavam cantando hinos religiosos e trechos de músicas épicas de guerras, que ecoavam pelas florestas e pelos rios, em linguagens desconhecidas até então. Chegadas de aventureiros que espalhavam ódios, dores, doenças, sofrimentos e sentimentos de posse e conquista, em meus ambientes e culturas surpreendentes e atraentes à violência própria do expansionismo imperial europeu. Invasões que desde 1500, se repetiram durante séculos eliminando centenas de minhas culturas, povos, ambientes e memórias importantes para a história das civilizações. Invasores que se apropriavam dos hábitos, dos artefatos culturais e dos meus mitos e ritos, transformando-os em mais-valia para os mercados e consumos europeus. Estimulavam a frivolidade imperial do continente europeu, que transbordava eugenia e racismo no ‘Novo Mundo’, apresentado como o ‘Paraiso Perdido’, o ‘País da Canela’, e o Eldorado de sua ganância e arrogância em busca da fonte da juventude eterna.
Antes, éramos mais de 1000 povos e 7 milhões de pessoas livres em meus territórios, resistindo - com nossas lanças, arcos e flechas, zarabatanas, tacapes, fundas e espiritualidades - às fúrias e às guerras europeias, num mundo complexo e desconhecido para eles. Após três séculos consecutivos, passamos de maioria à minoria, com as minhas culturas e ambientes contaminadas pela ambição, pelas doenças físicas e morais, pela exploração econômica e social e a desespiritualização de meus povos submetidos à triste história da ‘Era dos Descobrimentos’ de novos mundos. Moradas de sociedades sofisticadas que já tinham existências próprias e floresciam com fartura, alegria, musicalidade e integração com a natureza.
Hoje somos pouco mais de 870 mil parentes, 51% do total nacional, espalhados nas imensidões de meus territórios abrigados no Brasil, ainda resistindo às investidas sanguinárias sobre as nossas culturas e organizações, em nome do progresso e da defesa do estado Nacional. Nossas 500 bilhões de florestas e mais de 2000 rios, inventados e cultivados pelos nossos ancestrais, continuam sendo depreciados pela ambição e arrogância dos humanos civilizados, que insistem num tipo de desenvolvimento predatório, que deprecia a natureza e põe o futuro da humanidade em risco de extinção e decadência moral.
Os “países industrializados” já inventaram uma nova era da civilização denominada “Antropoceno” que, segundo eles, delimita um longo período de destruição das culturas e dos ciclos da natureza. Época em que foi exterminada grande parte de meus povos, territórios, floras, faunas, águas, atmosferas, religiões, mitos, ritos, conhecimento tradicional, e as diferentes sociedades, ecologias e concepções de mundo. Período marcado por epidemias e pandemias decorrentes da depreciação e manipulação inadequada da natureza, tipo: ‘cólera, peste negra, gripe espanhola, ebola, gripe suína, AIDS, doença da vaca louca, gripe aviária, e covid-19’. Doenças que são construções sociais das ‘civilizações desenvolvidas’, e desconhecidas pelos meus povos até a chegada do progresso, trazido pelos europeus ao Novo Mundo, ‘selvagem e primitivo’.
Antropoceno, longo período no qual testemunhei o nascimento e o florescimento da ciência e tecnologia, e das artes e cultura da civilização ocidental numa perspectiva privatista, concentradora e hierarquizada estimulando o sentimento de posse da natureza e do planeta. Antropoceno do mercado globalizado que, também, apreende as minhas complexidades e clama pela proteção aos meus povos e às minhas naturezas, por justiça ambiental e emergência climática. Acredito, também, ser necessário compromissá-lo com o combate da miséria e da desigualdade social e econômica de minhas populações, ignoradas, desprezadas e perseguidas pelos governantes e os poderes políticos e econômicos, alienados e concentradores.
A sustentabilidade do mercado precisa ser humanizada e compartilhada em forma equânime. As sustentabilidades dos meus povos, das religiões, águas, atmosferas, luzes, territórios, várzeas, faunas, floras, répteis, aves, peixes, músicas, artes, culturas, conhecimento tradicional, e também dos meus mitos e ritos, entre outras, não podem ser regulamentadas por interesses econômicos privatistas. São patrimônios da humanidade imbricados à gênese da vida. Da mesma forma, as relações entre os meus povos e as naturezas estão assentadas em sentimentos de pertencimento, acolhimento e compartilhamento mútuos, movimentados por crenças num mundo indivisível e integrado pelo amor e pela solidariedade.
Neste sentido, pode-se dizer que a minha destruição constitui um marco da decadência ética e política da humanidade, principalmente do Brasil e das elites econômicas sediadas em meus territórios. Sou uma luz pluricultural e biodiversa, que se apagará acelerando o retorno da humanidade à Era da barbárie e da truculência civilizatórias, envernizada com as suas técnicas amorais e desespiritualizadas. As instituições internacionais, os governos sensatos, as religiões, e as sociedades organizadas precisam parar esta tragédia mundial, criando as condições necessárias para a perenidade de meu desenvolvimento sustentável. Os povos originários do mundo domesticaram as plantas e os animais, construíram as tecnologias navais, classificaram as floras e as faunas, inventaram o uso farmacológico das plantas, e construíram as primeiras linguagens da astronomia e dos climas. Eles também conceberam formas de adaptabilidades integradas às naturezas, descobriram métodos alternativos para o uso sustentável da natureza, criaram linguagens e metodologias para educar os jovens numa perspectiva coletivista e solidária, enfim, construíram várias enciclopédias de inovações que constituem as sociedades do saber. Tudo isso com forte participação nossa.
Os meus registros históricos informam que as origens da noção de sustentabilidade do mercado estão correlacionadas com a expansão da hegemonia europeia nos continentes asiático, africano e americano, especialmente em meus universos existenciais. A ciência, a religião e a política, associadas à economia, moldaram os processos civilizatórios imperialistas instalados nessas regiões. Por muito tempo, as nossas culturas e riquezas naturais revitalizaram, recriaram e financiaram novas pautas de investigação e de abordagens científicas nos países centrais. As ciências da natureza, as ciências da terra, as técnicas, a filosofia, a literatura e a economia revigoraram-se, ao agregarem aos mercados internacionais novas demandas de produtos e gestão e novos significados e sentidos de consumo.
Estes processos de colonização em nossos territórios foram guiados pela concepção Darwiniana de luta pela preservação da vida, desprezando totalmente a coexistência não competitiva e pacífica. Espelhavam-se também, na transposição da noção de diversidade biológica para as nossas culturas e populações humanas. Noção que permeia o comportamento de todas as espécies biológicas, e segundo a qual os sistemas biológicos se adaptam às modificações do seu contexto, às perturbações ao seu ambiente. Constato que, em forma ampla, os cientistas positivistas utilizam o termo biodiversidade para expressar a variedade de organismos existentes no mundo, incluindo sua diversidade genética e os grupos que lhes formam. Esquecem que são os povos originários que me reconstroem diariamente, em forma sustentável, e que para nós todas as entidades orgânicas ou inorgânicas têm espíritos. Declaro ao mundo, que a biodiversidade da ciência ocidental é mutilada e não apreende a complexidade da vida plena de meus parentes e naturezas.
Mas, o longo e triste período de nossas colonizações foi dominado pelo escravismo, a destribalização, os aldeamentos e o trabalho forçado; práticas comuns da história da humanidade que deram sustentabilidade aos processos econômicos e à riqueza material acumulada no continente europeu, à época.
Os trópicos úmidos, em especial, as minhas representações materiais e simbólicas foram referências centrais aos estudos sobre os povos mundiais. Como parte desse processo civilizatório, até a primeira década do século 20, predominavam duas grandes teorias etnográficas de alcance mundial, de matrizes europeias, e que se contrapunham entre si nos estudos gerais sobre a organização e à dinâmica das raças. A teoria do meio que tinha seus representantes mais extremados em H. Taine e Tomás Buckle, e que atribuía à influência do ambiente, todas as diferenças existentes entre as pessoas e os povos; e a teoria da raça, defendida principalmente por Gobineau, que centrava a raça como a única origem decisiva de todas as diferenças culturais e etnológicas da humanidade. As demais vertentes mesclavam elementos de ambas as teorias, procurando conciliar e harmonizar as suas posições mais extremadas.
Este é, em forma aproximada, o cenário-síntese da concepção etnográfica que representava e movimentava a ocidentalização planetária, própria daquela época. Seus agentes esqueciam ou fingiam desconhecer que a nossa origem é comum, e certamente também o nosso futuro. O racismo, a prepotência e a arrogância europeia cegavam e funcionavam como lentes civilizatórias que filtravam somente o que era conveniente aos seus interesses. Outra questão prevalecente na história destas civilizações é a que condiciona a dinâmica das diferentes culturas com as condições do meio ambiente acessíveis a cada povo. Segundo elas, a utilização dos recursos naturais tem sido um elemento constitutivo e determinante dos modelos de desenvolvimento e dos modos de existência dos diversos povos, o que contribuiu para a incorporação da natureza nessas culturas. Esta concepção reducionista confunde natureza com recursos naturais e meio ambiente.
Caro leitor, cara leitora, no meu mundo amazônico e nas vivências e gêneses dos povos originários, a cultura encontra-se imbricada à natureza, nós somos também a natureza. Nossa concepção de natureza tem caráter não reducionista e não positivista. Centra o processo de construção de nosso saber e de nossas relações com a natureza, em forma sistêmica. Estabelece novas interlocuções e articulações, e as integram às nossas culturas e às realidades postas. Criam condições para que se possam fundir os pressupostos ontológicos de nossas vidas plenas às diferentes manifestações terrenas e celestiais. O nosso mundo existencial articula-se, indissociável e dinamicamente, a uma “ontologia humanizada”, plural, não homogênea e não pasteurizada.
As crianças, a juventude e os diferentes povos precisam saber que estou morrendo. A destruição de minhas culturas e ecologias, desde o século 16, parece não ter fim. Considerada uma dádiva e benção, eu posso me transformar em perigo ao futuro da humanidade. O mercado global e os governos dos países industrializados não tiraram nenhuma lição positiva da história de seus desenvolvimentos econômicos.
Lembro a todos que a história do capitalismo emergente na Europa ocidental ilustra a natureza destrutiva das relações de seus processos de produção econômica com a questão ecológica. Um caso singular é o relacionado ao desenvolvimento da indústria de ferro e à questão ambiental. Durante os séculos 16, 17 e primórdios do século 18, ocorreram destruições sistemáticas das matas inglesas, para o seu uso no tratamento do minério de ferro e para a sua utilização na engenharia naval, elementos indispensáveis para a revolução industrial que se desenrolava naquele país, à época. Observo que durante o feudalismo, a Europa ficou submetida a intenso processo de reconfiguração territorial, com a terra assumindo o papel do mais importante meio de produção, o signo da propriedade, da riqueza e do poder na sociedade. Paralelamente ao seu crescimento demográfico, intensificou-se o ritmo e a extensão do desmatamento, de acordo com os recursos técnicos disponíveis à época.
A história registra que a situação assumiu contornos dramáticos... a tal ponto que os Irlandeses, por não possuírem mais árvores para produzir a casca necessária a seus costumes, foram obrigados a compra-la na Inglaterra e madeira na Noruega, e a exportar seus couros em estado bruto. Este problema acelerou o desenvolvimento de técnicas que possibilitaram o uso da hulha, disponível em grandes reservas, em substituição a madeira, cara e rara. O pleno domínio da técnica de preparação do aço, aliado ao uso da força motriz transmitida pelas rodas d’água, possibilitou o aparecimento da produção metalúrgica, em grande escala, abrindo caminho para a emergência da Era da máquina a vapor, encerrando, assim, um período impulsionado pelas necessidades práticas e o empirismo.
Pressionado pelas demandas e necessidades emergentes, as pessoas agiam sobre a natureza, transformando-a, humanizando-a e criando parte das condições históricas necessárias para consolidar a revolução industrial, que teve como principal marco a construção da máquina a vapor. Os entrelaçamentos da mecânica clássica com a termodinâmica durante o século 19, e com o eletromagnetismo a partir da segunda metade deste mesmo século, geraram as condições teóricas e empíricas para consolidar e ampliar os processos tecnológicos, que possibilitaram produzir e expandir os mercados em âmbito mundial.
Este novo ciclo civilizatório incorporou definitivamente os métodos científicos à história da tecnologia, acelerando o desenvolvimento da revolução industrial. As artes e as literaturas reafirmaram este novo ciclo de desenvolvimento da civilização europeia que floresceu destruindo, desnecessariamente, os saberes tradicionais. Irrompeu-se a revolução social na Inglaterra, e novos processos econômicos e políticos passaram a guiar a globalização econômica e cultural europeia durante os séculos seguintes, criando as condições históricas que deram origem aos graves problemas ambientais presentes no mundo contemporâneo.
A posterior transnacionalização das redes de grandes indústrias não impediu a planetarização dos problemas ambientais, em certo sentido, até os agravaram, com a transformação do mundo em uma gigantesca fábrica, regulada e mantida por profundas e crescentes relações de desigualdade social e subalternidade política.
A construção do eletromagnetismo, na segunda metade do século 19, criou as condições científicas e tecnológicas para a eletrificação do mundo, ampliando o alcance do capital e incorporando as correntes elétricas e os imãs, às novas concepções políticas mundiais. Novas perspectivas foram projetadas para os processos elétrico-eletrônicos que passariam a permear todos os aspectos da sociabilidade humana, principalmente, a partir do início do século 20. A conexão das questões agrárias com a superprodução industrial pôs novos problemas e dilemas. A mecanização da agricultura intensiva integrada aos desenvolvimentos da climatologia, da química e da biologia aplicadas aos processos agrícolas, reafirmou a tendência deste novo ciclo.
Mas o período de transição para a sociedade industrial também teve suas contradições ampliadas; somente entre o período de 1730 e 1795, a história registrou, através de anúncios em jornais, 375 motins de todos os tipos na Inglaterra, sendo 275 deles por falta de alimentos. Estavam postas as condições para o agravamento das tensões entre o capital e o trabalho, uma das principais contradições dos sistemas políticos vigentes desde então.
A fome, herança maldita trazida pelos colonizadores, não existia em nossos territórios habitados por sociedades de abundância, desconhecedoras desta dimensão social que, desde então, tem atingido os nossos povos.
Tenho conhecimento que segundo Marx: “[...] Parte da sociedade exige da outra o tributo pelo direito de habitar a Terra, assim como está implícito na propriedade fundiária o direito dos proprietários de explorar o corpo terrestre, as entranhas da Terra, da atmosfera e, portanto, a manutenção e o desenvolvimento da vida [...]”. Comportam-se como se fossem donos da natureza, dos territórios e das tradições, sem compromissos com os seus usos sustentáveis.
Sempre orientei meus povos para que não fiquem reféns dos historiadores que glorificam e premiam aventureiros, justiceiros e carniceiros, imortalizando-os como exploradores e heróis nacionais nos salões palacianos, fontes de contínuas opressões.
Digo-lhes: minhas filhas e filhos não se deixem sequestrar pelas histórias colonizadoras, e pelos historiadores racistas e preconceituosos, subalternos e bajuladores das culturas opressoras. Protegem-se do niilismo intelectual e da subalternidade adocicada. Tenho orgulho de todos vocês, que continuam construindo novas resiliências e concepções civilizatórias centradas na liberdade e nas sustentabilidades, irradiadas a partir de nossas culturas e lugares. Minhas queridas crianças rebelem-se contra a história imperialista, cínica e prepotente, e revelem-se ao mundo. Construam a sua própria história, e se protejam das raposas fantasiadas de cordeiro.
Minhas queridas filhas e filhos, eu tenho dificuldade em me movimentar, pois estou cercada pelos fogos das trevas da ambição e do ódio, e não consigo respirar, pois as fumaças me sufocam e imobilizam os ciclos de minhas existências. A passividade e a indiferença dos parlamentos políticos, dos sistemas judiciários e dos governantes fazem-me acreditar que há um complô dirigido ao meu extermínio pleno.
* * *
Lembro-lhes também que a minha destruição cresceu à medida que a ciência e a tecnologia, controladas pelo mercado, se globalizaram. Construções sociais que melhoraram as políticas públicas, mas também impingiram dez pecados capitais em minhas vidas e crenças. A civilização ocidental só sossegará quando apodrecer todos os meus rios, derrubar todas as minhas árvores e eliminar todas as minhas filhas e filhos. Mas, resistiremos, pois o que está em jogo é a sobrevivência de nossas culturas e o futuro nobre das crianças da sustentabilidade plena.
Continuaremos resistindo à sustentabilidade do mercado assentada nos dez pecados originais. Precisamos construir os fundamentos, as diretrizes e os mecanismos operacionais de minha sustentabilidade plena, abraçada e também concebida por meus povos.
Eu preciso descansar. No próximo e terceiro texto apresentarei para vocês este novo capítulo de minha história.
Manaus, 20 de Setembro de 2024
Texto, parcialmente, publicado no livro autoral “Nuances da sustentabilidade: visões fantásticas da Amazônia”.
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* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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