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    Osvaldo Bertolino

    Jornalista e escritor

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    O Afeganistão, o Talibã e as precipitadas análises talibanistas

    País tem singularidades históricas e lugar estratégico na geopolítica.

    Guerrilheiros talibãs (Foto: Reuters)

    Prever o futuro, desde que o mundo é mundo, tem sido um desafio. A começar pela cigana que lê a mão, até os videntes e futurólogos de todos os matizes. Mas ainda não se conheceu ninguém capaz de predizê-lo regularmente e com precisão. Seria demasia, portanto, esperar que os “analistas” políticos que proliferam sobre os acontecimentos no Afeganistão formassem um gênero diferenciado e mais eficaz de pitonisas. Aquele país tem singularidades, já constatadas por Friedrich Engels em artigo publicado na The New American Cyclopaedia no século XIX.

    Segundo ele, os afegãos são um povo corajoso, resistente e independente. “Para eles, a guerra é exaltante e os alivia de suas ocupações monótonas e laboriosas”, escreveu. “Entretanto, na ausência de provocações, os afegãos são vistos como um povo generoso e liberal. Os deveres da hospitalidade são sagrados. Os afegãos são de religião muçulmana e pertencem à corrente sunita, mas não são sectários, fazendo alianças frequentes com a corrente xiita”, prosseguiu.

    A realidade atual tem singularidades que se somam às daquele tempo, em especial o tabuleiro da geopolítica. A retomada do poder pelo Talibã, movimento fundamentalista islâmico dito nacionalista, está inserido no âmbito da ocupação norte-americana na região no pós-bloco soviético, uma ação para remover focos de resistência ao pleno domínio do regime da Casa Branca. A violação do direito internacional, naquela ofensiva, começou no Iraque, com a agressão do início da década de 1990.  E se estende para a atualidade com a guerra contra a Síria.

    Na segunda agressão, também com requinte de crueldade e cenas de barbárie – como a execução do então presidente iraquiano Saddam Hussein, uma encenação que serviu a um espetáculo midiático mundial, que logo se repetiria na Líbia, com Muammar Kadafi –, a justificativa, conforme anunciado pelo “guru” do vice-presidente de George W. Bush, Dick Cheney, o professor emérito da Universidade Princeton, Bernard Lewis, era fazer a “democracia” criar raízes no Oriente Médio.

    A verdade é que aquele espaço sempre despertou o interesse dos impérios por ser uma rica fonte de matéria-prima e estar no entroncamento de três continentes. Já no pós-Primeira Guerra Mundial, os trustes norte-americanos se empenharam em conseguir ali concessões petroleiras, apesar da resoluta oposição da Inglaterra e da França – países que controlavam a região. Em 1940, as petroleiras inglesas controlavam 72% de todas as reservas de petróleo exploradas, enquanto as empresas norte-americanas controlavam 9,8%.

    No pós-Segunda Guerra Mundial, a região passou a ser um dos principais pontos de prioridade da política exterior de Washington. Por estar nas proximidades da Rússia e da China, o Oriente Médio também sempre mereceu atenção dos Estados Unidos quanto à influência de ideias que poderiam se traduzir em ações concretas de anti-imperialismo.

    Logo após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos iniciaram uma série de “tratados” e “pactos” envolvendo Inglaterra, França e alguns países da região – com o intuito de jogá-los uns contra os outros. No centro da estratégia imperialista estava o Estado de Israel, que desde a sua criação agiu como força de choque da política imperialista no Oriente Médio.

    Segundo dados do Instituto Internacional de Estocolmo de Estudos para a Paz, nos cinco anos transcorridos depois da guerra de outubro de 1973 entre Israel e seus vizinhos árabes os países pró-Estados Unidos do Oriente Médio receberam 70% de todas as armas norte-americanas exportadas para os países do chamado Terceiro Mundo. Em 1979, o Irã fez a revolução que derrocou o regime dos Estados Unidos no país e desencadeou mais uma onda de ações anti-imperialistas na região.

    A guerra é contra os povos

    No mesmo ano, o conflito no Afeganistão, ocupado por forças militares soviéticas, marcou mais uma etapa da presença dos Estados Unidos no Oriente Médio – que armaram grupos fundamentalistas para combater os invasores. Mais tarde, esses grupos angariaram para si o resultado de toda uma reserva de ódio, medo e desesperança e levaram a efeito o ataque terrorista do dia 11 de setembro de 2001. E rezaram por uma reação violenta por parte dos Estados Unidos, que terminaria mobilizando outros movimentos em torno de sua causa.

    Assim o mundo entrou num círculo vicioso – um efeito gerando outro e mergulhando os povos da região na hedionda “guerra infinita” de Bush. Os terroristas fundamentalistas compartilharam de um ódio que é sentido em todo o Oriente Médio pela presença norte-americana em países da região, pelo apoio dos Estados Unidos às atrocidades cometidas por Israel contra o povo palestino e pela devastação da sociedade civil no Iraque.

    A carnificina de Bush e seus aliados no Iraque chocou porque, primeiro, foi cruenta e, depois, porque criou assustadoras perspectivas. Foi, a rigor, uma guerra contra os povos – uma vez que não havia nenhum outro motivo para tamanha insanidade. As velhas senhoras do continente europeu – em particular o establishment da Inglaterra – não se mostraram dispostas a perder o sono em decorrência do conflito.

    A oposição à guerra por parte da França, Alemanha e Rússia era importante, mas não reuniu condições para usar seu poderio – inclusive bélico, uma das garantias de suas posições no cenário global – em favor de uma ordem mundial mais equilibrada e de paz. Havia, por trás do conflito, a força dos Estados Unidos sobre grupos como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), pela regra da força bruta, pela qual chora menos quem pode mais.

    Era o que se chamou de “doutrina Bush”, que sempre esteve na contramão dos direitos humanos e do direito internacional. No caso, estava em questão a história do cartel mundial do petróleo, que merece um capítulo à parte na história do capitalismo. No livro A Ditadura dos Cartéis, o autor Kurt Rudolf Mirow descreve como o país entrou na divisão mundial patrocinada pelo cartel do petróleo.

    Segundo ele, uma das mais ricas reservas, conhecida desde 1929, ficou escondida por um bom tempo para que não surgisse um dilúvio de petróleo que afetaria a rentabilidade das corporações. São essas mesmas corporações, aliadas a outras, sobretudo as produtoras de armamentos, que constituem o cerne dos lobbies do poder da Casa Branca. Para esse condomínio, o controle das principais artérias da geopolítica mundial constitui um ponto nevrálgico, uma tarefa vital ao domínio dos depósitos de matérias-primas estratégicas, como petróleo e gás natural.

    Peso do PIB dos Estados Unidos

    O Iraque, por exemplo, flutua sobre um mar de petróleo de 112 bilhões de barris comprovados ao longo de um cinturão de campos petrolíferos que correm paralelos à fronteira iraniana. E um verdadeiro maná ainda está invisível: existem projetos no papel para a exploração de várias jazidas com um potencial de produção gigantesco, de um custo estimado de US$ 38 bilhões. Mas não é só: o país é o único da região com múltiplas vias para as exportações, uma das quais — através da Turquia — evita o vulnerável Estreito de Ormuz, que pode ser fechado com facilidade, por onde passa um quinto do petróleo consumido no mundo.

    Para os Estados Unidos, maiores consumidores do planeta, responsáveis todos os anos pela combustão de 30% do petróleo extraído, aquele pote de ouro negro – assim como a Venezuela – é crucial para a sua hegemonia. Assim, ao mesmo tempo em que gastam fortunas no desenvolvimento de alternativas energéticas, como as células de hidrogênio, por exemplo, procuram assegurar-se de suprimentos que permitam ao país atravessar as próximas décadas. Para tanto, pretendem explorar até jazidas localizadas em áreas protegidas como reserva ambiental, no Alasca.

    É evidente que uma economia com essas características, com o peso de um PIB que rompe a barreira dos US$ 8 trilhões, não tem como conviver com uma potencial paralisia das engrenagens que lhe são peculiares. Os Estados Unidos, que têm crescido uma mixaria diante dos vistosos índices da China, certamente não abrirão mão dessas fontes essenciais para a sua sobrevivência econômica. A retomada do poder pelo Talibã precisa ser analisada considerando todas essas condicionantes, o que não autoriza qualquer triunfalismo precipitado. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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