O amor como escudo e ariete
O que nós socialdemocratas buscamos é um caminho que garanta oportunidades, que garanta o Estado de bem-estar social, não apenas o lucro dos bancos e dos fundos
O ano era 1998, depois do Natal fui a Madrid fazer um curso, lá ainda se usavam pesetas espanholas e o primeiro-ministro era o liberal José Maria Aznar; aproveitei um final de semana e fui de trem, desde a Estação Atocha até a Estação de Austerlitz, em Paris; faz tanto tempo que a moeda era o franco, o presidente lá era Jacques René Chirac e o primeiro-ministro Lionel Jospin, ambos de esquerda, bons tempos aqueles, sem Trump, Bolsoaro, Milei, Erdogan e outros vírus antidemocráticos.
Durante a viagem pensei muito no que acontecia no mundo e no Brasil desde o chamado Consenso de Washington.
A esquerda governava a França, por aqui o presidente aqui era FHC, que renunciou ao socialismo, atirando-se “de cabeça” no neoliberalismo (que, ao fim e ao cabo, era o projeto de Collor); em 1998 FHC havia sido reeleito, após manter artificialmente o real apreciado em relação ao dólar e a inflação maquiada e, inegavelmente, quebrar o país.
Tenho alguns bons amigos que são apaixonados por Fernando Henrique Cardoso, eles deveriam ler o livro do jornalista Paul Blustein, do “The Washington Post”, que conta a história do fracasso do FMI na crise financeira de 1998, aquela que terminou destroçando o populismo cambial brasileiro em janeiro de 1999; que entre a segunda metade de agosto de 1998 e o dia 13 de janeiro de 1999, torrou perto de US$ 30 bilhões de nossas reservas e mais outros US$ 9 bilhões cedidos pelo FMI, numa política de fingimento, tudo para reeleger FHC e ele continuar sua vassalagem ao mercado.
A política chegou a elevar os juros SELIC para 42% a.a., cortando os investimentos públicos, interrompendo nosso desenvolvimento, com crescimento zero e contração de 1,5% na renda per capita em 1999.
O mercado ama FHC, pois, recebeu até 42% a.a de remuneração, com uma inflação média de 12% ao ano.
Fato é que, com o apoio do FMI, o governo FHC pode criar a tal da “banda diagonal endógena” (que também não sei bem o que é), levando membros do FMI a denunciares a falta de transparência do plano de ajuda, já que eles achavam que a desvalorização era inevitável. Mesmo assim o governo americano impôs aos europeus, canadenses e japoneses o plano de ajuda ao Brasil, anunciando uma rede de proteção de US$ 41 bilhões.
O FMI aproveitou-se da crise brasileira e incluiu as cláusulas 33 e 34, exigindo que o governo FHC encaminhasse ao Congresso Nacional em regime de urgência o Projeto da prevalência do “negociado sobre o legislado”, agravando o dramático ambiente de desemprego, impondo arrocho salarial e precarizando as relações de trabalho, em atendimento às exigências externas.
Quando a tal banda diagonal endógena estourou, houve desespero, pelo temor de ficar sem apoio externo, na segunda semana de janeiro de 1999, um sábado, Malan e o então presidente do Banco Central, Francisco Lopes, estavam no gabinete de Michel Camdessus, então diretor-geral do FMI, em Washington, “de pires na mão”.
O FMI queria que a equipe econômica dolarizasse a economia, o que não foi aceito, pois, na Argentina esse caminho já havia dado errado; então o FMI propôs que a livre flutuação do real fosse acompanhada por uma alta dos juros, para algo entre 60% e 70% ao ano; que também não encontrou apoio, especialmente do economista Chico Lopes.
Fato é que em 29 de janeiro de 1999, o mercado financeiro brasileiro teve uma sexta-feira negra, com corridas aos bancos e o dólar cotado em R$ 2,07, além da pressão para que FHC seguisse o exemplo argentino; Chico Lopes foi afastado e destruído (na lógica do mercado era necessário destrui-lo para desqualificar suas críticas futuras); em 3 de fevereiro, o governo começou a armar um dos maiores programas de contenção de gastos e investimentos públicos da história nacional.
Uma das poucas vozes críticas à política de austeridade de FHC, foi do ex-presidente e então governador de MG Itamar Franco, mas pouca gente deu bola, a lógica neoliberal já era tratada como “o caminho a verdade e a vida” e a imprensa “livre”, financiada por bancos e fundos, já tratava decisões de caráter liberal e neoliberal como decisões “técnicas”, quando são, evidentemente escolhas ideológicas.
Assisti tudo isso do outro lado do Atlântico, lendo no El Pais notícias e opiniões e me valendo da ainda precária internet discada, alguém explique aos mais jovens do que se trata.
Para os liberais o que importa é servir ao mercado, para nós socialdemocratas há um outro elemento, fundamental, as pessoas.
Chegando na estação de Austerlitiz fui tomar um café e pensei em rascunhar um roteiro para o fim de semana, mas, com saudades da Celinha, acabei escrevendo o poema abaixo:
Num café em Austerlitiz
Apenas imagens sobrepostas
reflexos no espelho num café em Austerlitiz
Paris é assim: sobreposição de imagens
a vida também é assim...
O garçon traz o café e água
cobrou dez francos
paguei e ele seguiu servindo outras mesas
não houve um sorriso
são apenas negócios...
O que busco não é troca
busco a surpresa
a eternidade efêmera do amor juvenil
capaz de loucuras
mas, dizem, o tempo transforma tudo em trocas
trocas sem sorriso como o do garçon na estação de Austerlitiz
preocupado com os dez francos...
O que nós socialdemocratas buscamos é um caminho que garanta oportunidades, que garanta o Estado de bem-estar social, não apenas o lucro dos bancos e dos fundos, se vivemos no mesmo pais, no mesmo continente e no mesmo planeta, precisamos cuidar de “amar as pessoas como se não houvesse amanhã”, pois, o amor, e apenas ele, pode ser nosso escudo e nosso aríete.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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