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    Luciano Cerqueira

    Pesquisador do Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior (GEA-ES) da Flacso Brasil; Pesquisador associado do Laboratório de Políticas Públicas (LPP-UERJ) e Doutor no Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da UERJ

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    O aumento do preconceito e do ódio

    Muitas pessoas que estudam as formas de discriminação e preconceito há anos (das quais muitos de nós somos vítimas) estão tentando compreender se o que acontece hoje é o aumento dos casos ou uma maior exposição destes por conta da internet. Em minha opinião, a hipótese mais provável é que estamos diante das duas coisas, tanto no Brasil quanto no mundo

    Charlottesville (Foto: Luciano Cerqueira)

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    Quase todos os dias aparecem nos jornais e nas redes sociais casos de discriminação e preconceito. Artistas de TV, cantoras/es, estudantes, atletas, donas de casa, adultos, intelectuais e crianças são vítimas de algum tipo de discriminação baseada na raça/etnia, na crença, no gênero, na opção sexual, na preferência política e etc. Para um país que até outro dia era conhecido como exemplo de cordialidade e de democracia racial, os casos constantes de discriminação mostram uma dura realidade para pessoas que dizem que somos todos iguais perante a lei, que não somos racistas. 

    Muitas pessoas que estudam as formas de discriminação e preconceito há anos (das quais muitos de nós somos vítimas) estão tentando compreender se o que acontece hoje é o aumento dos casos ou uma maior exposição destes por conta da internet. Em minha opinião, a hipótese mais provável é que estamos diante das duas coisas, tanto no Brasil quanto no mundo.

    A primeira razão para termos a sensação de aumento destes casos deve-se à internet. Pessoas gravam atitudes discriminatórias nas ruas, fazem desabafos, compartilham falas em vídeos, expõem estabelecimentos e estas informações se espalham em segundos pelas redes sociais. Estas imagens e depoimentos, muitas vezes, servem como prova em processos contra aquelas pessoas que “não são racistas”, que “estavam só brincando” ou que estão sendo “mal interpretadas”. No entanto, mesmo nos casos em que estes registros não podem ser utilizados como prova para que haja a punição adequada (o que acontece na maioria das vezes), um objetivo é alcançado: registrar o ato e não deixar cair no esquecimento. Normalmente, o infrator tenta apagar estes registros da rede, mas é quase impossível. Sempre que alguém achar necessário, ele será lembrado dos seus atos. Se um dia o brasileiro cordial existiu, isso foi muito antes da internet. É nas redes sociais que o país mostra sua face mais desumana e despolitizada, dissemina falsas informações e colabora para a multiplicação da desinformação e da ignorância. 

    Na internet, a quantidade de ódio que é publicada todos os dias impressiona os que ainda acham que todo brasileiro é “gente boa”. Hoje são comuns discursos que defendem preconceitos e desrespeitam direitos humanos básicos, ignoram totalmente a empatia e estimulam a violência. Basta entrar num grande portal de notícias e procurar a caixa de comentários para a tristeza bater.  Nesses locais é muito comum que os comentários raivosos não sejam apenas frequentes, eles são maioria. Temos a sensação de que hoje a ira é o sentimento que mobiliza muito mais do que sentimentos positivos. A conectividade que reduziu fronteiras e aproximou o mundo parece ter aumentado preconceitos e gerado ódio. Num mundo em que as pessoas viajam cada vez mais e que se diz aberto ao diferente, impressiona a quantidade de gente que está pronta para odiar o próximo. Mas não podemos nos enganar, todo esse ódio não é novo e tem endereço certo, estamos apenas assistindo a reafirmação de preconceitos milenares. 

    Por exemplo, entre em qualquer notícia que fale sobre um caso de estupro, qualquer uma, os comentários dão nojo e quase sempre vão da “historinha mal contada” para o “foi merecido” e “o que ela queria vestida desse jeito”. Os tempos são outros, mas a culpa é sempre da mulher. 

    A segunda razão para a escalada dos casos de preconceito (e essa eu considero mais grave) foi o aumento do ódio ao diferente. Após as manifestações de junho de 2013 deu-se início a uma campanha de “demonização” explícita do diferente, com destaque para o ódio a pessoas e “coisas” consideradas de esquerda, e em especial aos petistas. A partir daquele momento, odiar abertamente voltou a ser o “normal” no Brasil. Essa campanha para incitar o ódio – levada a cabo pelos meios de comunicação e partidos de direita – atingiu não só pessoas de esquerda, mas também a população negra, a comunidade LGBTT, as pessoas pobres, feministas, políticas públicas, profissões e (inacreditavelmente) uma cor. 

    Na obra de Eric Hobsbawn “Tempos Interessantes” 1 há uma parte dedicada a tratar dos males do século XX, e ele aponta como um dos principais desastres deste tempo o nazismo, que propagou como sendo fundamental para o sucesso da Alemanha duas coisas: a manutenção da estrutura de classe e o ódio ao diferente. Estopim de uma das maiores catástrofes humanitárias vistas até hoje, o discurso do ódio ao diferente corre livre hoje no Brasil, e não é só na internet.

    No Brasil depois que odiar ficou “liberado”, pode tudo: pode ofender, pode xingar, pode perseguir nas ruas, hospitais e restaurantes, nas redes sociais, pode humilhar, pode desrespeitar todas aquelas pessoas que não pensam como você, que não se parecem com você, que não agem como você, e – principalmente a partir de 2010 – que não vota como você. Incentivado por uma mídia parcial até a sua medula, o ódio se espalhou pelo país como uma praga. 

    Aberta a “Caixa de Pandora” não se sabe o que acontecerá ao certo, mas sabemos quais pessoas já estão sofrendo as consequências. Um dos primeiros grupos a sentir essa onda fomos nós, pessoas negras. Esse ódio sempre existiu, diga-se de passagem, mas agora não temos um governo preocupado em defender as populações historicamente desfavorecidas e criar constrangimentos às atitudes discriminatórias e violentas. Nenhum homossexual pode mais andar tranquilo nas ruas, pois pode ser surpreendido por alguém que irá questioná-lo por discordar da sua forma de amar; nenhuma feminista pode lutar pelos seus direitos que logo é taxada de mal-amada, de radical, de vitimista; usar uma guia de umbanda ou candomblé é pedir para ser enxotado dos lugares; não se pode mais vender esfiha; nenhuma pessoa com ideias progressistas poderá expressar sua opinião sem ouvir um “petralha”; nenhum trabalhador ou trabalhadora poderá fazer greve e reivindicar um salário justo, pois estará “atrapalhando” o trânsito e querendo mordomias.  

    Cresceu muito também nos últimos anos o ódio de classes. Parece que foi demais para a classe dominante ser governada por um nordestino sem instrução; depois por uma mulher que foi torturada. Foi demais para esta classe ter de dividir o avião, o shopping, a universidade; não deu para aguentar dentista, médico/a e engenheiro/a negro/a; o filho do zelador de carro; a filha da empregada fazendo intercâmbio; todas estas pessoas comprando eletrodomésticos, eletrônicos, roupas, casas. Sim estavam comprando casas, foi demais. Nestes tempos de uma maior “mistura” social, o “sabe com quem você está falando?” virou mantra na boca da classe que tem que se distinguir de qualquer forma. Digo maior porque a integração sempre existiu, mas de forma subordinada (sou contrário a ideia de cidade partida), cada um no seu lugar, e aí foi só misturar um pouquinho que ficou evidente a necessidade de diferenciação. Outro dia na praia – ainda um dos lugares mais democráticos do país – tinha um grupo de pessoas com taças de vidro tomando prosecco. Sim, prosecco. Estou na praia, divido (porque não tenho opção) a areia, água do mar e o sol com você, mas veja eu não sou um de vocês, jamais serei. 

    Esse tal de Marx e suas ideias ultrapassadas. Luta de classes no Brasil? Coisa de comunista, claro!

    Goste você ou não é preciso admitir que o ódio que mais cresceu neste país foi o ódio à esquerda, especificamente contra o Partido dos Trabalhadores (PT). Este ódio começou em 2005 com o “mensalão” e de lá para cá só fez crescer. Temos pessoas hoje na classe média que odeiam o PT com toda força da alma e não conseguem pensar com isenção sobre qualquer questão em que o partido esteja envolvido. Existem políticos que se candidatam com uma única plataforma de campanha: destruir o PT. Muitas pessoas estão cegas pelas luzes da mídia e não conseguem mais dialogar com ninguém que tente mostrar aspectos positivos (que não são poucos) dos governos petistas. Estas pessoas não sentem nenhuma vergonha em odiar os pobres, odiar aqueles que tiveram uma pequena ascensão social, que entraram nas universidades, que começaram a usufruir de direitos que sempre lhes foram negados. Eles odeiam o governo que permitiu isso e não fazem questão de esconder.  

    Para ilustrar minhas palavras lembremos o caso das fotos da presidenta Dilma Rousseff de pernas abertas em automóveis, ou sentada em um vaso sanitário; a detenção do ex-ministro Guido Mantega no hospital enquanto sua mulher preparava-se para uma cirurgia; o enterro de José Eduardo Dutra (ex-senador do PT) quando lançaram panfletos com a frase “petista bom é petista morto”; comemoram como um gol o câncer do Lula, desejando-lhe a morte 24 horas por dia, e os médicos que compartilhavam alternativas para matar a ex-primeira-dama Marisa Letícia e que depois comemoraram sua morte. O paradoxo destas ações é que o partido que eles querem destruir cresceu no último ano e as pessoas que eles atacam – com o passar do tempo – são inocentadas de todas as acusações. Junto a isso os políticos que destilam veneno contra a esquerda estão envolvidos em todas as formas de corrupção e com o futuro político comprometido. 

    Talvez um dia esse ódio diminua ou acabe, mas as sequelas desta doença estão aí. A campanha para destruir um partido destruiu amizades, relacionamentos, laços familiares, destruiu a civilidade, a compaixão, matou pessoas. 

    Muitas pessoas acreditam que estamos caminhando a passos largos para um retrocesso sem igual, eu também acredito nisto. No Brasil de hoje querem que todos e todas venerem a meritocracia e abominem as políticas de promoção de igualdade e dignidade; enalteçam o agronegócio e ridicularizem os integrantes do movimento sem-terra; comemorem a morte do pequeno traficante – negro e pobre – e se calem sobre toneladas de droga em poder de políticos; comprem vaga nas universidades e sejam contra as cotas. Político que propaga o ódio vira a salvação de um país. Viramos o país dos absurdos.

    E aquelas pessoas que se posicionam contra estes absurdos são comunistas, são “mortadela”, são ladrões, são acomodados, mamam nas tetas do governo e por aí vai. Batem na gente com cassetete, atiram balas de borracha (ou não), nos fazem inalar gás lacrimogêneo, soltam os cães em cima, nos acertam com jatos de água, nos prendem e, em alguns casos, somem com um/a de nós. Tudo isso sob os aplausos da classe média e de uma parcela da população pobre que é refém dos grandes meios de comunicação. Mas tudo isso é permitido porque somos os “inimigos” deste país e podemos ser odiados livremente e em alguns casos, porque não, até exterminados. Faz parte. 

    Mas se revidarmos com uma bolinha de papel ou com um ovo, somos radicais de esquerda adeptos da violência. Já estamos acostumados a sermos odiados, faz parte. Até mesmo Jesus de Nazaré seria odiado hoje por suas ideias “socialistas”, vai entender. Mas não faremos como ele e daremos a outra face, vamos continuar na luta. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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