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    José Luis Oreiro

    Professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. Pesquisador Nível IB do CNPq, Membro Senior da Post Keynesian Economics Society e Líder do Grupo de Pesquisa Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento

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    O Banco Central deve ser autônomo? O que diz a Teoria Econômica?

    "Não existe nada de sacrossanto na autonomia do Banco Central", afirma Oreiro

    Entrada do Banco Central em Brasília 22/03/2022 (Foto: REUTERS/Adriano Machado)

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    Nas últimas semanas o debate sobre conjuntura econômica no Brasil finalmente saiu da mesmice sobre o sacrossanto “Teto de Gastos” (cuja missa de réquiem está marcada para o dia 31/08/2023) e passou para a autonomia do Banco Central do Brasil. A questão de fundo é o patamar elevado da taxa Selic, tanto em termos nominais como em termos reais, o que parece ser inconsistente com o cenário macroeconômico internacional caracterizado por inflação elevada nos países desenvolvidos, devido ao choque de oferta decorrente da política de covid zero na China e da guerra da Ucrânia, e taxas de juros reais ainda em campo negativo. O presidente Lula tem reiteradas vezes mostrado seu descontentamento com esse situação a qual, no seu julgamento, poderia comprometer a performance macroeconômica do seu governo. Caso a autonomia do Banco Central não tivesse sido aprovada em lei durante o governo Bolsonaro, o Presidente Lula teria a liberdade para nomear o presidente e a diretoria do Banco Central como ocorreu com todos os presidentes eleitos no Brasil desde a nova república desde Fernando Henrique Cardoso em 1995, passando por Lula em 2003, Dilma em 2011, Temer em 2016 e Bolsonaro em 2019. A aprovação da lei de autonomia do Banco Central se deu apenas após a elegibilidade do Presidente Lula em 25 de fevereiro de 2021. As circunstâncias apontam para uma lei feita sob medida para tirar poder do Presidente Lula se eleito fosse em 2022, fato que acabou ocorrendo.

    Acontece que 11 em cada 10 economistas ligados direta ou indiretamente ao mercado financeiro dirão que “a mulher de César é honesta mesmo que não pareça ser”, ou seja, que não existe nenhuma relação entre o ciclo político e as decisões sobre a taxa de juros, as quais são um problema eminentemente técnico.

    Os economistas liberais gostam de propagar a ideia de que a economia é uma ciência dura (hard science) como a física. Dessa forma, pode-se dissimular as paixões e os interesses dos economistas, principalmente quando eles estão em posições nas quais a sua remuneração presente ou futura depende de serem capazes de não enxergar certos problemas. Aqui quero fazer uma ressalva. Eu não estou afirmando que eu como economista não tenha paixões ou interesses, mas apenas o fato inegável que minha situação financeira presente ou futura não é impactada pelas análises que faço como economista. Posso errar como qualquer mortal, mas meus erros, se e quando ocorrem, não são devidos a ignorância premeditada ou miopia consentida.

    Mas vamos aos argumentos. Quais as razões que fundamentam a tese da “autonomia” do Banco Central, ou seja, a ideia de que a autoridade monetária tem que estar protegida contra a ameaça de demissão arbitrária na forma de mandatos fixos e não coincidentes (com o mandato do Presidente da República) para a diretoria dessa instituição?

    A tese da autonomia ou independência do Banco Central tem sua origem nas décadas de 1980 e 1990 no bojo do debate entre regras versus comportamento discricionário da política monetária. A tese apresentada então era que se a autoridade monetária atuasse de forma discricionária, ou seja, escolhendo a melhor resposta em termos de juros e oferta de moeda ao estado da economia (inflação e desemprego) a cada momento, o resultado seria a criação de um “viés inflacionário”, ou seja, de uma inflação mais alta do que a inflação ótima do ponto de vista social (por simplicidade suposta ser igual a zero). No modelo utilizado para fundamentar esse resultado se supõe que (i) a existência de rigidez nominal e real faz com que a autoridade monetária tenha incentivo para criar surpresa inflacionária e (ii) o setor privado, no entanto, está ciente desses incentivos e incorporam as suas consequências inflacionárias no processo de fixação de preços e salários. Daqui se segue que no equilíbrio com expectativas racionais, as autoridades monetárias são incapazes de surpreender os agentes do setor privado, de forma que a inflação inesperada é igual a zero, e os salários reais e a taxa de desemprego são iguais aos seus níveis naturais de mercado. O único resultado é uma taxa de inflação mais alta do que a socialmente ótima (Franceze, 2004, p.106).

    Para resolver esse problema a solução proposta foi a institucionalização de um Banco Central conservador, ou seja, com um grau de aversão a inflação maior do que o da sociedade como um todo, com relativa autonomia com relação aos políticos para conquistar credibilidade, entendida como o compromisso com uma taxa de inflação baixa e estável, de preferência próxima de zero.

    Uma hipótese explicita desses modelos é que a autoridade monetária tem controle completo sobre a taxa de inflação, a qual é uma variável que está sob sua discrição. Nesse contexto, a inflação discricionária, ou seja, a taxa de inflação que maximiza a função objetivo do Banco Central é dada por:

    equaçao

    Onde: A é o coeficiente de aversão a inflação na função objetivo do Banco Central (o qual mede o seu grau de conservadorismo), alpha mede a sensibilidade do emprego à surpresa inflacionária, N* é o emprego socialmente ótimo e Nn é o emprego natural, ou seja, aquele nível de emprego para o qual a surpresa inflacionária é igual a zero.

    O argumento pró autonomia do Banco Central é que quanto menor for o coeficiente A menor será a taxa de inflação discricionária e, portanto, maior o bem-estar social. A política monetária é tida como neutra sobre o nível de emprego pois não é capaz de afetar nem a taxa de emprego socialmente ótima ou a taxa de emprego natural. A única função da política monetária é entregar uma taxa de inflação o mais baixo quanto possível e para tanto maior deve ser o seu conservadorismo, o qual só será crível por intermédio da autonomia do Banco Central.

    O modelo apresentado tem, no entanto, uma série de limitações. A que mais salta aos olhos é hipótese de que o Banco Central tem controle absoluto sobre a taxa de inflação. Tal hipótese assume implicitamente que os preços e os salários nominais de toda a economia são fixados de maneira absolutamente coordenada pelo setor privado, o qual toma suas decisões de formação de preços e salários levando em conta apenas o comportamento do Banco Central. No mundo real os salários são fixados com graus variados de coordenação a depender das instituições que regulam as negociações salariais entre firmas e sindicatos. As firmas também fixam preços em intervalos distintos de tempo de maneira que podem surgir situações mais ou menos persistentes de desequilíbrio de preços relativos entre as empresas, as quais darão ensejo a aumentos de preço de maneira descoordenada.

    Devemos ressaltar que no modelo que fundamenta a tese de autonomia do Banco Central não existe espaço para inflação causada por choques de oferta: a inflação é sempre e em todo lugar um problema monetário. Embora a teoria econômica tradicional tenha a muito tempo abandonado o monetarismo e a teoria quantitativa da moeda, o status teórico do problema inflacionário continua o mesmo. A inflação é o resultado de uma política monetária permissiva, voltada para a obtenção de uma taxa de emprego maior do que a que é compatível com o equilíbrio entre oferta e demanda em todos os mercados. Não há espaço para inflação de custos pois o equilíbrio de mercado garante que os agentes econômicos, sejam firmas ou sindicatos, estarão sempre satisfeitos com os preços que recebem de seus produtos ou serviços. A inflação só pode ter sua origem “fora” do setor privado, ou seja, no Banco Central e no governo.

    Mas a crítica mais geral a tese de autonomia do Banco Central é que ela não é a única solução para o problema da inflação discricionária. Conforme podemos visualizar na equação acima qualquer política que reduza o valor de A, ou a sensibilidade da taxa de emprego a surpresa inflacionária ou diminua a diferença entre a taxa de emprego socialmente ótima e a taxa natural de emprego irão produzir o mesmo resultado (Franzese, 2004, p. 107).

    Quando saímos do mundo fantástico da concorrência perfeita, a taxa de emprego de equilíbrio é aquela que equaliza o salário real que as firmas estão dispostas a pagar com o salário real que os sindicatos desejam obter nas negociações salariais com as firmas, dado o estado da economia e um conjunto de outras variáveis institucionais que afetam o poder de barganha relativo dos sindicatos na negociação coletiva como, por exemplo, o grau de sindicalização da força de trabalho, o percentual dos salários que é negociado coletivamente, o grau de centralização e coordenação das barganhas salariais (Carlin e Soskice, 2010, 2015). O desemprego atua como um mecanismo disciplinador dos sindicatos e das firmas, forçando esses agentes a entrarem num acordo a respeito do salário real prevalecente na economia.

    Nesse contexto, um choque de oferta decorrente, por exemplo, do aumento do preço relativo da energia irá reduzir o salário real que as firmas estão dispostas a pagar, fazendo com que a taxa de emprego que compatibiliza as demandas salariais dos sindicatos com o que as firmas estão dispostas a pagar se reduza, aumentando assim a inflação discricionária, dado o grau de “autonomia do Banco Central”. O aumento da taxa de inflação não será um fenômeno temporário, mas irá durar enquanto persistir o preço relativo mais alto da energia.

    O Banco Central poderá reduzir a inflação neste caso apenas se aumentar o seu grau de conservadorismo, ou seja, se reduzir o valor do coeficiente A na equação acima. Os defensores da tese de autonomia do Banco Central implicitamente assumem que não existe nenhuma relação entre o parâmetro A e os demais parâmetros da equação que determina a inflação discricionária, particularmente o emprego de equilíbrio. Nesse contexto, um aumento do grau de conservadorismo da política monetária não teria nenhum efeito sobre o lado real da economia, particularmente sobre o mercado de trabalho.

    O problema é que existem boas razões para acreditarmos que isso não é verdade. A moderna teoria econômica ja identificou pelo menos dois canais pelos quais uma redução persistente da taxa de emprego pode levar a uma redução cumulativa da taxa de emprego de equilíbrio, fenômeno esse conhecido como efeito histerese. O primeiro canal é o efeito insider-outsider e o segundo e o problema de sucateamento do capital.

    • Efeito Insider/Outsider
    • Considere que os desempregados perdem o seu status de membros do sindicato após alguns períodos de desemprego. Dessa forma, eles se tornam “outsiders” sendo incapazes de influenciar nas decisões dos sindicatos.
    • Considere também que os sindicatos só se preocupam com o nível de emprego e de salário real dos seus filiados. Dessa forma, quando o desemprego aumenta e permanece elevado por um certo período de tempo; os sindicatos perdem filiados e passam a demandar salários mais altos para os membros remanescentes.
    • Uma queda da demanda agregada irá aumentar a taxa de desemprego. Esse aumento da taxa de desemprego irá diminuir o número de insiders, levando a um aumento do salário real desejado pelos sindicatos e, portanto, a uma queda da taxa de emprego de equilíbrio.
    • Capital Scrapping (“sucateamento de capital”)
    • Uma recessão prolongada leva as firmas a “sucatear” uma parte do seu estoque de capital á medida que os gastos de investimento não são suficientes para cobrir as necessidades de reposição devido a depreciação ou mesmo a obsolescência tecnológica.
    • Quando a economia se recupera, as elevadas taxas de utilização da capacidade produtiva fazem com que as firmas aumentem as suas margens de lucro, reduzindo assim o salário real que estão dispostas a pagar. Com isso, ocorre uma redução da taxa de emprego.

    As questões levantadas acima apontam para a possibilidade de que um Banco Central excessivamente conservador possa agravar o problema inflacionário ao invés de resolve-lo. Se uma redução do valor do parâmetro A, ou seja, um aumento do grau de aversão do Banco Central a inflação, desencadear uma redução da taxa de emprego de equilíbrio pelos mecanismos expostos acima, então a taxa de inflação discricionária pode ficar constante ou até mesmo se elevar, agravando assim o quadro inflacionário.

    O que deve ser feito então para reduzir a inflação discricionária? Uma alternativa seria a adoção de políticas de rendas que aumentassem a coordenação e a centralização das negociações salariais de forma a incentivar o setor privado a moderar as demandas por reajustes de preços e salários. Outra possibilidade, bastante pertinente no caso brasileiro, é reduzir a sensibilidade do emprego a surpresa inflacionária (o coeficiente alpha), diminuindo o grau de indexação de preços e salários a inflação passada. Para tanto, o governo brasileiro deveria proceder a uma reforma monetária (Sobre essa proposta ver Oreiro e Costa Santos, 2023), decretando por intermédio de lei complementar, o fim da indexação de todos os contratos assinados em território nacional.

    Isso posto, não existe nada de sacrossanto na autonomia do Banco Central. Trata-se de um arranjo institucional para a condução da política monetária que tem efeitos dúbios sobre o problema que pretende resolver. Existem outras alternativas para o controle da inflação no Brasil que não passam pela manutenção da autonomia do Banco Central. Tal como o ocorrido com o Teto de Gastos, esse é um debate urgente e necessário para o Brasil.

    Referências:

    Carlin, W; Soskice, D. (2015). Macroeconomics: Institutions, Instability, and the Financial System. Oxford University Press: Oxford.

    Carlin, W; Soskice, D. (2010). “Teaching Intermediate Macroeconomics using a 3-Equation Model” In: Fontana, G and Setterfield, M. (Eds.). Macroeconomic Theory and Macroeconomic Pedagogy. Palgrave Macmillan: London.

    Franzese, R.J. (2004). “Institutional and Sectoral Interactions in Monetary Policy and Wage/Price-Bargaining” In: Hall, P; Soskice, D (orgs.). Varieties of Capitalism: the institutional foundations of comparatice advantage. Oxford University Press: Oxford.

    Oreiro, J.L; Costa Santos, J.F. (2023). ” The unfinished stabilization ot the Real Plan: an analysis of the indexation of the Brazilian economy” In Ferrari-Filho, F and De Paula, L.F. (orgs.). Central Banks and Monetary Regimes in Emerging Countries. Edaward Elgar: Aldershot.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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