Roberto Calazans avatar

Roberto Calazans

Psicanalista, Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei. Co-autor do livro Pandemia e Neoliberalismo: A melancolia contra o novo normal (Mórula, 2021)

2 artigos

HOME > blog

O canto da sereia do método científico

Os fundamentos sustentados (mas não apresentados claramente por Natália Pasternak e Carlos Orsi) também têm uma história política

Natalia Pasternak (Foto: Paulo Vitale)

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Natália Pasternak e Carlos Orsi dizem que ninguém respondeu seriamente às críticas endereçadas ao livro e às entrevistas que eles estão dando para divulgá-lo. Bom, como escrevemos - eu e minha amiga Profª Drª Rosane Lustoza - uma crítica ao trabalho deles, creio que seria de bom tom, em um debate que se propõe de ideias, apresentar a falta de seriedade de nossa parte. Caso contrário eles continuam cometendo a mesma petição de princípio: os fundamentos de seu posicionamento no debate epistemológico não podem ser questionados. Afirmações sem comprovações, sem citação de autor e sem análise da citação não é prova de bom encaminhamento científico. 

Mas algo mais interessante de analisar é que esses fundamentos sustentados (mas não apresentados claramente por eles) também têm uma história política. E ela não é das mais bonitas. Por isso que a repetição incessante da mesma cantilena - é o método científico! é o método científico! - nos faz abrir os olhos pela falta de clareza sobre os objetivos do livro. Pois essa cantilena serve, no mais das vezes, como um canto da sereia para enebriar a maioria e evitar o debate. Principalmente quando propalada por dois dirigentes do Instituto Questões de Ciência que querem intervir, como eles dizem em seu site, nas políticas públicas a partir de evidências científicas.

Como apontamos brevemente no texto anterior, foi esse mesmo tipo de argumento, sustentado ora em uma má biologia, ora na extrapolação das descobertas biológicas, que fundamentou o projeto higienista no país. E esta história tem uma lógica que começa com Herbert Spencer em meados do século XIX. 

Patrick Tort escreveu um livro demonstrando que a lógica que tenta aplicar princípios liberais à biologia vem de Herbert Spencer. Não foi preciso esperar por Darwin para praticar esta extrapolação individualista da sociedade para a natureza. A bem da verdade, a ideia de Darwinismo Social é anterior ao próprio Darwin - e tem praticamente relação nenhuma com ele. 

Spencer procede por analogia: analogia do sistema social com o biológico e deste com o físico. Assim, os princípios liberais da propriedade privada conquistada pela lei do mais forte e pela livre concorrência são lidos como princípios naturais tanto para sociedade, quanto para as espécies. Ora, quando Pasternak e Orsi fazem suas análises, não recorrem mais à analogia do que à crítica propriamente séria, para usar um significante que eles gostam muito? Analogia que se ampara sempre na mesma repetição da cantilena: é o método científico! é o método científico!

Sem entender esses fundamentos do pensamento analógico, não entenderemos como ele se atualiza sistematicamente com outras roupagens mas sempre com a mesma cantilena: é o método científico! é o método científico! Em 2006 Susan Mckinnon apontou para o mesmo estratagema quando analisa psicólogos evolucionistas  - destes, Pasternak e Orsi nunca reclamaram de seus pressupostos patriarcais assentados sobre dados da evolução da espécie tais como a defesa de que os homens são naturalmente promíscuos e as mulheres naturalmente buscam homens para sua proteção. Mesma lógica, mesma analogia, mesmo ignorar os dados antropológicos que os questionam e a mesma cantilena: é o método científico! é o método científico!

No Brasil, Nicolau Sevcenko aponta como o impacto do aburguesamento da sociedade brasileira por meio da modernização e capitalização do pós 1888-1889 tornou a população mais pobre ainda mais pobre e suas vidas ainda mais indignas, segregadas e controladas. Como ele lembra a reação da população “não foi contra a vacina, foi contra a história” (2010, p.120). História que justificava um sistema de opressão na modernização que a ciência traria, modelo de ciência escrito na bandeira brasileira até hoje com o mote positivista Ordem e Progresso. Ordem armada para a maioria em nome da ciência, Progresso para os poucos de sempre e amor para ninguém, já que ele foi deixado de fora bandeira. Mas com a mesma cantilena: é o método científico! é o método científico!

E foi justamente aí que o princípio eugênico e higienista se abateu sobre o país. A ampla literatura clássica sobre o assunto dentro do movimento negro - Abdias Nascimento; Lélia Gonzalez, Clóvis Moura, Guerreiro Ramos, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro - demonstra como a biologia era usada para eliminar o negro e o indigena do país. Seja pela mestiçagem como projeto de embranquecimento, seja pelo mito da democracia racial que visava fazer a mestiçagem pela educação, em que as duas colocam o branco como o ápice da cultura moderna e liberal e o negro como algo a ser doutrinado a se tornar branco - ou a ser eliminado. Branco e negro é questão de cor de pele mas é, também e principalmente, a recusa a história de povos e modos de viver que não sejam liberais. E aqui era a mesma cantilena: desenvolvimento a partir da ciência e do método científico: é o método científico! é o método científico

Deste modo, creio que é preciso dar um passo ao lado. Não se trata aqui apenas de defender a psicanálise na sociedade como um processo emancipatório - o que nem sempre foi, mas devemos lembrar que ela foi fundada por um judeu em uma Europa abertamente antisemita do século XIX que resolveu escutar mulheres que não eram ouvidas e sem direitos, muito menos se fossem consideradas loucas - mas de apontar que os pressupostos políticos dessa cantilena sempre podem também nos levar ao pior - a processos segregatórios. O filme do Oppenheimer está aí para provar. Assim como prova o sistemático apagamento da história do povo africano e indígena do nosso país. Mas tudo bem desde que a mesma cantilena - é o método científico! é o método científico - seja dita para encantar alguns, seduzir outros e evitar o debate científico para todos e se tornar possibilidade de opressão para a maioria de sempre da sociedade - os negros, indigenas, pobres e todos os segregados deste debate. E já imaginamos Pasternak e Orsi não se dignando a nos responder e só a dizerem com desdém a todos que os contradizem, escondendo-se atrás da mesmo e antiga cantilena: é o método científico! é o método científico!

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: