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    Moisés Mendes

    Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.

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    O caos dos socorristas no mundo que está acabando

    “Pessoas que se mobilizam para ajudar os outros nas tragédias climáticas são muitas vezes as mesmas que negam o processo de destruição”, escreve Moisés Mendes

    Enchente na Espanha (Foto: Reuters/Susana Vera)

    O governo espanhol enfrenta um desafio inusitado. Autoridades se mobilizam para organizar e até conter a romaria caótica de socorristas voluntários de outras regiões em direção às áreas das cheias que já mataram mais de 200 pessoas.

    O excesso de gente nas estradas e nas cidades atrapalha o socorro de equipes treinadas para isso. Não são técnicos, é gente comum, inclusive de países vizinhos, com pás, vassouras, baldes, cordas. 

    E aí se apresenta de novo aquela pergunta singela, banal e aparentemente sem sentido: por que o sentimento do coletivo ainda se manifesta nas urgências, se foi desprezado e fragilizado quando de decisões políticas e cotidianas em que prevalece o individualismo, a competição, o interesse particular?

    Por que o sentimento nessas horas é o de que as pessoas são salvas muito mais por outras pessoas do que pelo Estado? Como aconteceu no Rio Grande do Sul, onde espalharam que até o véio da Havan teria socorrido mais gente em seus helicópteros do que os militares treinados para salvar gente e bichos.

    Uma abordagem simplificadora informa que o véio da Havan foi apresentado como herói como parte da estratégia do bolsonarismo de exaltar os seus e depreciar o setor público e o ‘sistema’.

    Os helicópteros dos homens fardados seriam de Lula e deveriam ser diminuídos. Assim como espalharam pelas redes sociais que surfistas brancos de classe média, com imagem vinculada à direita, teriam resgatado o cavalo Caramelo que subiu no telhado. O cavalo foi resgatado por bombeiros e veterinários, por servidores públicos. 

    Mas esses dois exemplos não explicam tudo, mesmo que se saiba da ação organizada do bolsonarismo para capitalizar e lucrar com a propaganda do socorro aos desabrigados e ao mesmo tempo atingir Lula. 

    São incompletas as abordagens sobre os impulsos de gestos grandiosos de benemerência e filantropia, que muitas vezes aplacam falhas pessoais até sob o ponto de vista moral. Na base do eu sou reaça e individualista, mas na hora que precisam eu ajudo os outros.

    Há muita coisa além do desejo de aparecer bem montado no jet ski no Jornal Nacional. A mobilização que impulsiona as pessoas para a emergência do socorro e dá sentido a uma rede coletiva poderia ser melhor estudada no contexto político e social da gritaria antissistema, anti-instituições, anti-Lula e antitudo. 

    É nesse cenário que avança a pregação de que os esforços pessoais são o que importam. Foi a mensagem da ação e da prosperidade individual que consagrou políticos de direita e extrema direita eleitos em outubro. Foi o que quase levou Pablo Marçal ao segundo turno em São Paulo.

    Em 2022, o desprezo pelo interesse coletivo quase reelegeu Bolsonaro, que negou vacina e solidariedade na pandemia, estava negando até auxílio financeiro e debochou das mortes por Covid. E mesmo assim continuou com grande apoio popular. E era uma emergência.

    Dirão que não há como comparar o nosso caso com o da Espanha, mas não é disso que se trata. Estamos apenas observando que a teologia do salve-se quem puder, que prospera em toda parte, inclusive na Europa, é o que contribui para a sabotagem dos direitos e das demandas coletivas das maiorias. As virtudes do egoísmo teriam finalmente vencido? 

    Adeptos da teologia da prosperidade votaram nos deputados que rejeitaram na Câmara a taxação de fortunas. Pobres votaram nos que vão contrariar seus interesses de pobres e defender os ricos. Sempre foi assim? Mas tanto quanto agora?

    Gente que socorre quem nem conhece, nas emergências climáticas, nega vacinas aos próprios filhos, nega a ciência e nega que a crise do clima provocada por nós mesmos é que mata no Rio Grande do Sul e na Espanha. 

    É gente que vota nos gestores das cidades invadidas pelas águas por omissões e gestão precária, como aconteceu com a reeleição do prefeito Sebastião Melo (MDB) em Porto Alegre. Melo venceu em todas as zonas eleitorais, com o apoio maciço de moradores de áreas alagadas.

    Solidariedade genuína, altruísmo, heroísmo e benemerência oportunista, tudo se mistura nas incoerências expostas nessas horas. O mundo do individualismo é também o que acolhe gestos de heroísmo público, televisionado e selfiado, porque não são coisas conflitantes e talvez sejam afins e complementares. O heroísmo que assume feições coletivas aparentes é muitas vezes primo do individualismo.

    Essas mesmas pessoas das vassouras e dos baldes seriam mobilizadas para salvar o mundo, se convocadas hoje em campanha mundial liderada por Ailton Krenak e Greta Thunberg, e não só para fazer faxina de emergência na Terra que todos nós destruímos todos os dias? Parece conversa de autoajuda?  

    É a conversa que parte da esquerda se nega a fazer, porque envolve afetos, emoção, sentimentos, subjetividade, coisas com as quais a direita vem lidando muito bem. E as esquerdas? As esquerdas continuam achando que só irão sobreviver se forem extremamente racionais. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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