O capital não gosta da democracia
Ao longo dos três primeiros quartos do século XIX o capitalismo prosperou sobre o sangue de homens, mulheres e crianças que trabalhavam à exaustão em jornadas de trabalho abusivas, sem direitos trabalhistas
Economista do Santander emitiu relatório para os clientes do banco defendendo um golpe de Estado para impedir que Lula se eleja em 2022. O Santander nega ter ele em seus quadros e informa que o economista é terceirizado.
No mesmo dia, pesos pesados da economia nacional - Pedro Passos, dono da Natura, Pedro Wongtschowski, do grupo Ultra e Horácio Lafer Piva, do grupo Klabin – publicam artigo intitulado Nem Lula, nem Bolsonaro no Estado de S. Paulo, porta-voz do que há de pior entre a burguesia neocolonial brasileira. Logo abaixo do título e o editor do jornal pinçou do artigo a frase lapidar “persistir no que já se mostrou errado não será apenas burrice, mas covardia”, referindo-se a Lula e Bolsonaro. Por si só a análise desta frase já daria uma enciclopédia com muitos tomos. Deu errado? O que deu errado no governo Lula para esses grandes parasitas da economia nacional? Foram favorecidos e ganharam muito dinheiro durante os 13 anos dos governos do PT.
Os autores tiveram a desfaçatez de propor ao eleitor “não se entregar aos malfadados benefícios privados que aniquilam a Nação”, sem explicar que benefícios são esses e quem a eles se entregou. Isso vindo da pena daqueles que, como bem já mostrou Jessé Souza, utilizam o Estado como um banco privado para financiar seus negócios, que criaram impérios privados com dinheiro público soa como uma ofensa para os trabalhadores e trabalhadoras brasileiros. Dizem desejar um novo caminho, diferente das políticas de Lula e Bolsonaro. Contudo, o trabalhador e a trabalhadora brasileiros os conhecem bem e sabem que o que eles chamam de novo é o velho caminho da exploração que flerta com o autoritarismo.
O relatório do Santander é mais explícito. Nele o autor defende, abertamente, que “ninguém apoiará um golpe em favor de Bolsonaro, mas é possível especular sobre um golpe para evitar o retorno de Lula.” Bolsonaro é blindado por esta gente porque segue implementando políticas que asseguram gordos dividendos ao capital.
Relatório e artigo publicados compõem o tabuleiro no qual a direita neolib, democrática por interesse e conveniência, movimenta desesperada suas peças em busca de um opção que consiga rivalizar com a candidatura de Lula em 2022. Se não conseguir, voltarão a apoiar Bolsonaro sem nenhum pudor, como já o fizeram em 2018.
Outra peça desse tabuleiro foi explicitado em tuíte publicado por Ciro Gomes convidando seus seguidores para acompanharem um debate de “ideias e projetos para o Brasil” do qual ele participou juntamente com Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde de Bolsonaro, e Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul. Este debate chamou-se Segundo Debate dos Presidenciáveis do Centro Democrático e teve como uma de suas hashtag #Primarias. Primárias entre os candidatos do “centro democrático”. Os neolibs testando para ver quem melhor serviria aos seus interesses.
O tal centro democrático votou em peso na aprovação da MP 1045 (que pode ser conhecida como meu jovem escravo, meu lucro), pela privatização dos correios e em todas as outras leis e reformas que liquidaram com os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras e venderam patrimônio público.
Além do Estadão, essas “primárias” foram organizadas pelo CLP (Centro de Liderança Pública), think tank da direita que procura formar novos Tábata Amaral (sem partido-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES), lideranças travestidas de oposição que possam defender as políticas neolibs no Congresso Nacional.
Essa direita que se autodenomina centro democrático é a mesma que financiou, organizou e apoiou em massa o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e apoiou Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018, a quem conhecia intimamente.
Na verdade, o capitalismo nunca se deu muito bem com a democracia.
Ao longo dos três primeiros quartos do século XIX o capitalismo prosperou sobre o sangue de homens, mulheres e crianças que trabalhavam à exaustão em jornadas de trabalho abusivas, sem direitos trabalhistas. Em termos de exploração, a conjuntura ao longo do século XIX tem muitas semelhanças com a conjuntura atual do capitalismo 4.0 contemporâneo.
Foi a organização dos trabalhadores e trabalhadoras que impôs aos capitalistas no final do século XIX e início do século XX limites para essa exploração excessiva, através de medidas que democratizaram o regime político liberal da época. Esta democratização foi a forma que os capitalistas desenvolveram de manter seu controle sobre a massa operária e camponesa.
A resposta dos capitalistas aos limites impostos à exploração dos trabalhadores e trabalhadoras no continente europeu foi o imperialismo e o colonialismo, que recaíram com ferocidade e sem limites sobre os trabalhadores e trabalhadoras dos territórios colonizados, obrigados a trabalhar sob condições muito semelhantes à escravidão. Os regimes políticos e o controle a que os colonizados foram submetidos condicionavam-nos a relações de trabalho e exploração abusivas.
Lênin defende a tese de que democracia liberal-representativa é um regime político do Estado capitalista, é uma das formas políticas que, em certas condições históricas, o Estado capitalista pode assumir, assim como, em outras condições históricas, tal Estado pode assumir outras formas políticas. Quando há uma forte pressão organizada dos trabalhadores e trabalhadoras, o Estado capitalista é forçado a negociar e a burguesia, a contragosto, abre mão de uma parcela de seus lucros, o que diminui a acumulação de riqueza e a democracia prospera. Em momentos de crise, com as organizações dos trabalhadores e trabalhadoras fragilizadas, a burguesia abre mão da democracia e instaura um regime político autoritário que assegure suas margens de lucro.
O fascismo e nazismo surgem em momentos de crise do capitalismo em que a democracia liberal-representativa não consegue assegurar à burguesia o controle da conjuntura político-econômica e atrapalha a acumulação e concentração do capital. Assim sendo, a burguesia descarta a democracia e implementa um regime político autoritário que perdurará até que os trabalhadores e trabalhadoras consigam se reorganizar e forçá-la a aceitar medidas que distribuam as riquezas e assegurem direitos.
Todos os pesos pesados da economia industrial, agrícola e financeira da Itália apoiaram Mussolini e o mesmo aconteceu com Hitler que contou com apoio dos grandes conglomerados industriais e financeiros da Alemanha, bem como dos grandes proprietários rurais.
Os barões ladrões juntaram fortunas incalculáveis no final do século XIX nos EUA. O fizeram a contrapelo da lei ou modificando a legislação a seu bel prazer de maneira a explorar ao máximo o trabalho, gastando uma enorme quantidade de trabalhadores e trabalhadoras, sobretudo imigrantes chineses, alemães e de outras nacionalidades que chegavam aos EUA fugindo da pobreza em seus países de origem. Nos territórios roubados aos mexicanos ou às primeiras nações, o que prevalecia era a lei do mais forte e os direitos dos mais fracos eram vilipendiados pelos capitalistas.
Vigoravam nestes momentos históricos uma conjuntura similar a do capitalismo 4.0 que vivenciamos hoje.
A conjuntura político-econômica contemporânea é marcada pelo refluxo das organizações e dos movimentos dos trabalhadores e trabalhadoras que assumiram uma posição defensiva frente ao ataque do capital aos direitos sociais e às políticas redistributivas.
Os regimes democráticos mundo afora estão sob constante e contundente ataque das forças reacionárias de extrema-direita aliadas às forças do “centro democrático”.
Para este capitalismo 4.0, capitalismo de vigilância, capitalismo gângster ou seja lá que outro sobrenome queira se dar a ele a democracia é um estorvo que deve ser extirpado ou reduzido ao mínimo possível. Isso não é nenhuma novidade porque o autoritarismo é imanente ao capitalismo. Desde a primeira Revolução Industrial, marco da implantação do capitalismo no mundo, os momentos de liberdade e democracia são mais raros do que os momentos em que estas prevaleceram no mundo. Mesmo a democracia liberal-representativa europeia só foi possível às custas do sangue, do suor e das lágrimas dos povos colonizados e graças à gigantesca transferência de riqueza dos territórios colonizados ou periféricos para os conglomerados econômicos sediados nos países imperialistas que, desta maneira, repuseram as perdas que o movimento sindical lhes havia imposto na Europa e nos EUA.
Quando Winston Churchill afirmou que “a democracia é o pior dos regimes políticos mas não há nenhum sistema melhor que ela” ele o fez enquanto continuava a explorar as colônias submetidas à força das armas do império britânico.
A lógica do capitalismo é a valorização crescente do capital. O melhor dos mundos para o capitalista seria uma conjuntura onde existisse um gigantesco desemprego que pressionasse os salários para baixo, onde o consumo fosse mais facilmente controlável e influenciável, onde houvesse fartura de matéria-prima e governos maleáveis que não só não atrapalhassem como executassem prontamente todas as medidas necessárias para assegurar a valorização do capital. Na conjuntura contemporânea, a informatização da produção e outras medidas asseguram uma enorme massa de desempregados. Os algoritmos e a publicidade permitem uma influência maior sobre os consumidores e seu consumo final, bem como sobre os eleitores. Junto com os algoritmos, a corrupção assegura a eleição de governos maleáveis dispostos a trabalhar contra a democracia e a favor da exploração máxima dos trabalhadores e trabalhadoras pelo capital. A matéria-prima vem se tornando escassa, mas de todos os elementos necessários à reprodução do capital este é o único que, no momento, encontra-se em situação desfavorável.
Não há capitalistas bonzinhos ou malvados. Não se trata de uma questão moral. Há capitalistas e como tais se organizam, se movimentam e agem sempre em busca de extrair a maior taxa possível de mais-valor, no menor tempo possível, com a maior produtividade possível, empregando a menor quantidade de mão de obra possível. Para que isso seja exequível, o melhor é o regime político onde a participação e o controle populares sejam reduzidos ao menor nível possível e interfiram o menos possível para limitar os ganhos do capital.
O relatório do Santander e o artigo publicado no Estadão são peças movidas pela burguesia neocolonial brasileira no tabuleiro político que procura desenvolver estratégias que evitem a provável eleição de Lula em 2022. Para alcançar este intento, ela está disposta a se livrar da incômoda democracia. Desta maneira, a burguesia neocolonial procura assegurar que ninguém colocará em risco as extraordinárias margens de lucro que vem auferindo desde o golpe de Estado contra a presidenta Dilma Rousseff, apoiado por estes mesmos que defendem o fim da democracia no Brasil, assim como o fim dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros. O tal “centro democrático”.
P.S.: Precisamos defender uma reforma constitucional que substitua o impeachment, instrumento utilizado pela burguesia neocolonial para retomar o controle do poder, pelo recall, instrumento que coloca nas mãos do povo a destituição daqueles que ele mesmo elegeu.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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