O Chile entre o passado e o futuro
"Como entender que dois anos depois das intensas e tensas manifestações públicas contra o modelo liberal e exigindo mudanças estruturais, o cenário seja esse?", questiona o jornalista Eric Nepomuceno sobre a disputa presidencial do Chile
Por Eric Nepomuceno, para o Jornalistas pela Democracia
O resultado do primeiro turno nas eleições presidenciais chilenas, que aconteceu no domingo 21 de novembro, traz inquietantes paralelos com o que vivemos no Brasil em 2018.
Lá, como cá, os partidos tradicionais no campo conservador, e também no liberal, se esfacelaram. Para o segundo turno vai, por um lado, o ultradireitista José Antonio Kast. E, pelo campo progressista, Gabriel Boric.
A diferença entre os dois foi pequena, 27,9 a 25,8%. Porém, e como destaca Jeferson Miola em artigo aqui no 247, direita e extrema direita somaram votos suficientes para manter uma distância de sete pontos na frente da esquerda e dos progressistas (53,5 a %3,5 a 46,5%). Alterar esse quadro é o maior desafio que Boric enfrenta.
Outro ponto que surpreendeu: o voto no Chile não é obrigatório. Ainda assim, houve uma participação bastante alta nas eleições constituintes do ano passado, e esperava-se uma repetição no domingo passado. Pois agora só 43,6% dos eleitores votaram, uma porcentagem menor até que a registrada nas presidenciais de quatro anos atrás.
Leio aqui no Brasil e também nos meios de comunicação de outros países que Kast é uma espécie de Jair Messias versão chilena.
Pura conclusão apressada. Kast é equilibrado, fala de maneira coerente, tem argumentos sólidos. Mente, é verdade, mas não da maneira compulsiva e descontrolada que vemos diariamente por aqui.
Não é uma figura patética, bizarra e perigosa: só coincide com Jair Messias no quesito “perigoso”. Muito, por certo. Mas não é um desequilibrado.
Assim, apresenta para o seu país e, indiretamente, para todas as comarcas da nossa América, uma ameaça mais sólida que Jair Messias.
Boric, por seu lado, é jovem – 35 anos, idade mínima para se apresentar disputando a presidência do seu país –, e está em seu segundo mandato como deputado federal. Foi líder universitário, e nessa condição apareceu entre os mais destacados dirigentes das mobilizações estudantis de 2011. Filho de um militante do Partido Democrata Cristão, desde a juventude se aproximou da esquerda.
Terá agora pela frente um Kast ultradireitista, admirador entusiasta não apenas de Donald Trump e Jair Messias, mas também do falecido general Augusto Pinochet e defensor de sua ditadura sanguinária.
O cenário tenso, graças à novidade – um pinochetista radical enfrentando um jovem com trajetória firme porém nada extremista de esquerda –, de certa forma surpreendeu, e a muita gente, a começar, claro, pelos chilenos, leva agora à busca de explicações: a esta altura, como um pinochetista vence um primeiro turno e aparece com chances de vencer o segundo e virar presidente?
Como entender que dois anos depois das intensas e tensas manifestações públicas contra o modelo liberal e exigindo mudanças estruturais, o cenário seja esse?
Há um ano, 80% dos que votaram por uma nova Constituição, que irá substituir a herdada de Pinochet e sua ditadura, abriram as portas para um novo futuro. Há cinco meses, na votação dos que integrariam a Constituindo a direita só conseguiu 37 das 155 cadeiras da Assembleia.
Como entender que um negacionista dos direitos humanos, defensor de um regime sanguinário, com um programa de governo irremediavelmente reacionário e retrógrado, tenha liderado o primeiro turno?
Os chilenos querem mudanças, mas boa parte do eleitorado tem medo de radicalismos. Nos últimos dois anos houve amplas mobilizações sociais, com focos de explosão de fúria entre os manifestantes.
Foi possível constatar que havia um descontentamento amplo, forte e generalizado. Mas também difuso. E esse é o pano de fundo daquilo que se vê hoje no Chile: qual o foco do descontentamento que mais pesa? Qual exatamente é o medo que faz com que se apoie, inclusive em regiões de alta pobreza, um pinochetista?
Pois este será o maior desafio da esquerda: fazer com que a esperança vença o medo.
E com isso impeça que um Jair Messias lúcido, coerente, articulado, equilibrado – ou seja, o contrário do que destroça o Brasil – seja uma ameaça para o equilibro regional.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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