O conveniente bico policial
"A participação de agentes públicos é proibida tanto na prestação direta de serviços de proteção quanto na gestão de empresas privadas de segurança"
A pesquisa “Vitimização e Percepção sobre Violência e Segurança Pública”, obra do sempre importante Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgada em 3 de setembro, traz alguns aspectos que mereceriam pautas especiais da imprensa. Os colegas jornalistas não deram muita bola para o que a sondagem constatou sobre o famigerado bico policial, atividade justificada pela necessidade de aumento da renda desse profissional, porém ilegal.
A questão foi analisada com propriedade pelo professor da Universidade Estadual de Londrina Cléber Lopes, coordenador do Legs (Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança), na newsletter Fonte Segura, distribuída pelo FBSP.
A participação de agentes públicos é proibida tanto na prestação direta de serviços de proteção quanto na gestão de empresas privadas de segurança. A pesquisa apurou que há cerca de 30 milhões de brasileiros - 18% dos entrevistados - com mais de 16 anos residindo em bairros onde policiais realizam serviço de segurança de modo privado. Trata-se de um trabalho velado, por fora da lei.
Assim escreveu o professor: “Os policiais são um ativo valorizado por muitos no mercado de proteção. Podem ser empregados informalmente para prestar serviços de segurança em seu horário de folga sem grandes riscos trabalhistas, afinal, a ilegalidade do bico inibe a busca por direitos trabalhistas. Além disso, os policiais podem oferecer recursos que não estão disponíveis às suas contrapartes privadas (os vigilantes) da mesma forma: o porte de arma (mesmo fora de serviço), o treinamento investido neles, o contato privilegiado com outros policiais e o poder legal para impor a lei. Em conjunto, esses recursos também contribuem para dotar os policiais de poder simbólico, ou seja, a capacidade de serem vistos como portadores de soluções ‘mágicas’ para problemas de segurança”.
Os policiais que fazem bico como segurança particular portam uma autorização tácita das instituições públicas a que pertencem - mais fácil fazer vista grossa à ilegalidade do que aumentar o salário do policial.
Cléber Lopes afirma que o bico policial compromete a qualidade da segurança pública. Cria conflitos de interesse, aumenta o estresse e o risco de vitimização do profissional: “No bico, os policiais costumam trabalhar sem a retaguarda de outros policiais, sem uniforme e equipamento de proteção adequado, tornando-se assim mais vulneráveis a confrontos letais com criminosos. Esse é um dos motivos pelos quais os policiais brasileiros são mais vítimas de violência letal intencional fora de serviço do que no serviço”.
Em 2023, 60% dos policiais civis e 57% dos policiais militares assassinados o foram em horário de folga, segundo o Anuário de Segurança Pública 2024.
Como esclareceu o professor, a atuação de policiais na segurança privada, pela característica do sua função pública, viola os preceitos que deveriam nortear o trabalho particular de segurança - este, uma atividade essencialmente preventiva, sem poder coercitivo para imposição da lei. Um segurança privado não busca prender criminosos em nome da lei, mas gerencia riscos. “Ocorre que a penetração de policiais no universo da segurança privada pode fazer com que esse estilo de policiamento característico da segurança privada ceda espaço a um policiamento mais repressivo”, observa Lopes.
O tema abriga um nó de desatamento complicado. Parte da sociedade - a mais endinheirada - quer segurança privada e paga por ela; essa atividade supre parte da dificuldade financeira do policial, que ganha mal; a manutenção dessa situação é conveniente para as autoridades públicas de segurança.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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