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    Paulo Capel Narvai

    Professor titular de Saúde Pública na USP

    30 artigos

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    O coração do Faustão

    Faustão – que pensava não usar o SUS – estava na lista, que se vale de critérios técnicos e avaliações clínicas, com normas conhecidas e princípios éticos

    Fausto Silva, o Faustão (Foto: Divulgação/Band)

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    (Publicado no site A Terra é Redonda)

    O SUS está no coração do Faustão. No período dificílimo da pandemia de covid-19, o SUS esteve em preces e nas lutas pela vacina. E esteve também na camisa do glorioso Bahia Esporte Clube, naquela inesquecível noite de 22 de julho de 2020, no Estádio de Pituaçu, quando a equipe venceu em Salvador o igualmente glorioso Clube Náutico Capibaribe, do Recife.

    O placar daquele jogo pela Copa do Nordeste não importa tanto quanto o golaço feito pelo tricolor baiano naquela quarta-feira: após quatro meses sem entrar nos gramados, o escudo do Bahia estava com a metade encoberta pelo desenho de uma máscara facial, simbolizando a oposição do clube baiano ao negacionismo científico que, naquele contexto, dividia o país. Mas um outro símbolo, o do SUS, que também motivava a ira dos poderosos de então, estava estampado na camiseta do Bahia. Poderia estar na altura do coração, mas ali estava a máscara. Então, o símbolo do SUS foi deslocado para a parte inferior da frente.

    Desde então, meu coração corintiano tratou de arrumar um lugarzinho para também acolher o Bahia Esporte Clube, em reconhecimento aquele que foi mais do que um gesto bonito e solidário. Estampar o símbolo do SUS ajudou a dar visibilidade ao nosso sistema universal de saúde e aos profissionais que lhe dão vida, diariamente. Os mesmos profissionais que renovaram a vida do Faustão.

    O SUS está no coração do cidadão Fausto Silva, 73 anos, conhecido apresentador de TV (aliás, torcedor do Santos, o “glorioso alvinegro praiano”, como diz o hino do clube), pois Faustão apresentou agravamento de uma insuficiência cardíaca que evoluía havia mais de dois anos. Em 5 de agosto de 2023 o jornalista foi internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e a bem-sucedida operação de transplante ocorreu 22 depois.

    Tão logo a notícia foi divulgada, as redes sociais pulsaram.

    Embora os comunicados médicos e da Central de Transplantes do Estado de São Paulo tenham informado sobre as graves condições do doente, e sua posição na lista de pacientes à espera de um órgão, “o sangue de muita ferveu” e foram postados comentários apressados e desinformados que contribuíram para dar curso a equívocos sobre o que é e como funciona a Central de Transplantes. Frases como “ser rico deve ser muito bom”, ou “nunca duvide do poder de compra de um bilionário” são péssimas, pois desvalorizam o trabalho de centenas de profissionais de saúde, não apenas em São Paulo, mas em todo o Brasil, atingindo-lhes a dignidade e colocando-os, injusta e indevidamente, sob suspeição.

    Ainda que as conhecidas dificuldades de acesso a exames, cirurgias, medicamentos e outros serviços de saúde ofertados pelo SUS, na rede própria ou conveniada, motivem tais desconfianças, a disseminação desses comentários causa muitos prejuízos a quem segue na lista à espera de algum órgão. É um tipo de desabafo que não ajuda, pois as insinuações são injustificadas. Não têm base em fatos e se originam do desconhecimento sobre como opera o sistema de transplantes do SUS, cuja transparência é reconhecida por todos os implicados na lista de espera por um órgão. O acesso a todas as informações é possível a qualquer tempo, a qualquer interessado.

    A doação é anônima. Quem doa não tem controle sobre o destino do órgão doado, nem sabe a quem se destina. Quem recebe, não sabe quem doou. Quem investiga, pode obter informações e identificar quem é quem em cada processo, por seus meios. Mas não oficialmente, pois o sistema de controle da lista (não é uma simples “fila”, conforme por vezes se noticia…) segue princípios normativos e éticos. As normas se referem à tipagem sanguínea, compatibilidade de peso e altura, compatibilidade genética e critérios relacionados com a avaliação médica da gravidade de cada paciente.

    Tendo em vista os desdobramentos e consequências nefastas da ignorância e do preconceito – que contribuem para a diminuição das doações, um enfrentamento permanente de quem tem responsabilidades na gestão do SUS, nessa área – rapidamente especialistas e o próprio Ministério da Saúde vieram a público divulgar posicionamentos oficiais de instituições e entidades implicadas com o que se reconhece como o maior sistema de transplantes de órgãos do mundo.

    Em SUS: terra arrasada, artigo que publiquei no site A Terra é Redonda, em novembro de 2019, assinalei que o SUS é responsável por “três quartos dos atendimentos de urgência e emergência” e “96% dos transplantes de órgãos”, com a realização de “um transplante de pulmão a cada três dias e um de pâncreas a cada dez dias e, diariamente, em média, 16 transplantes de rim, 6 de fígado e 1 de coração”. O Ministério da Saúde divulgou que entre 19 e 26 de agosto foram realizados 11 transplantes de coração no país, sendo sete no estado de São Paulo e que, no primeiro semestre de 2023, foram realizados 206 transplantes de coração no Brasil e que, atualmente, o SUS financia cerca de 88% dessas operações.

    Mas pouca gente sabe disso, daí a surpresa com a operação de transplante cardíaco em uma pessoa muito conhecida e a fake news do “Faustão furando a fila do SUS”. Ignora-se que a lista para transplantes é única e vale tanto para os pacientes do SUS quanto para os da rede privada, todos recebendo assistência integral, equânime, universal e gratuita, incluindo exames preparatórios, cirurgia, acompanhamento e medicamentos pós-transplante.

    O Sistema Nacional de Transplantes (SNT) tem abrangência nacional, sendo coordenado centralmente pelo Ministério da Saúde, por meio da Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplantes (CGSNT). Esse órgão é responsável pela regulamentação, controle e monitoramento do processo de doação e transplantes realizados em qualquer parte do território brasileiro, e realiza suas funções com o objetivo de desenvolver o processo de doação, captação e distribuição de órgãos, tecidos e células-tronco hematopoéticas para fins terapêuticos.

    Sobre como tudo isto funciona, a principal preocupação das pessoas, a animar conversas sobre o tema em redes sociais, bares e espaços de convivência, diz respeito à ordem cronológica de cadastro, ou seja, a ordem de “entrada na lista”. Todo mundo quer saber como é isto, embora a maioria tenha a mais absoluta convicção de que “isso é uma bagunça, quem pode mais chora menos, e quem tem dinheiro se salva sempre”, dentre outras pérolas do senso comum.

    Poucos acreditam que o que vale mesmo são critérios técnicos e avaliações clínicas, segundo normas conhecidas e princípios éticos. A maioria não se conforma quando informada de que a ordem de “entrada na lista” é sim um dos critérios, mas adotado apenas para desempatar, após a consideração, em cada caso, da gravidade da situação.

    Um exemplo da credibilidade da lista brasileira de transplantes, que lamento como tanta gente, se refere ao ex-jogador Sócrates, do Corinthians, Fiorentina e seleção brasileira. Há 12 anos, em agosto de 2011, a doença hepática se agravou e, dada a sua condição clínica, ele poderia “avançar na lista” para uma posição que lhe favorecesse. Mas nem ele nem os médicos que o atenderam poderiam alterar essa posição, segundo o que se noticiou à época. Indagado sobre essa possibilidade, descartou-a: “Não tenho nada contra transplante cardíaco, de rim, de pâncreas, de fígado ou qualquer outro. Só que é o seguinte, eu tenho de estar na lista. Se eu não estiver na lista, eu não furo fila não. E eu não estou em nenhuma lista dessas”.

    Sócrates não estava na lista do SUS, embora tenha sido um dos que lutaram pela democracia no país e pela institucionalização do nosso sistema universal de saúde. Faustão, que pensava não usar o SUS, estava na lista.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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