O desafio de Arthur Lira
As ameaças de Lira foram cristalinas
Arthur Lira explicitou na Câmara dos Deputados, em discurso sobre as emendas no orçamento vetadas pelo presidente Lula, a profunda divisão política prevalecente no Brasil, hoje e sempre. É entre conservadores e progressistas. Entre o atraso e a esperança. Entre os oportunistas, e os compromissados com um futuro que torne o país mais igualitário. Não é, certamente, entre siglas e blocos partidários. Esses são, na maioria, ajuntamentos para centralizar interesses de exploradores do povo. .
A parte da nação minimamente esclarecida deve ter ficado chocada com a sinceridade do presidente da Câmara. Ficou claro que, se não houver o dinheiro que os deputados de maior apetite em relação às verbas públicas enfiaram no orçamento, à revelia do Executivo, haverá “guerra” entre os Poderes. As ameaças de Lira foram cristalinas. Segundo ele, enganam-se os que pensam que não haverá na Câmara uma reação contundente diante da audácia de Lula de conter seu apetite.
Obviamente, o que importa é o subtexto do discurso. Para Lira, propor emendas representa o exercício “democrático” dos poderes que o povo conferiu aos parlamentares, segundo a Constituição. Esquece, porém, que a função principal que a “inocente” Constituição de 88 conferiu ao Presidente é a de elaborar o orçamento anual, por certo aceitando emendas parlamentares, porém justificadas. Além disso, sem especificar o montante aceitável de cada uma delas.
A especificação desse montante faz parte justamente da desejável negociação de alto nível entre o Executivo e o Congresso. A característica essencial que o orçamento público deve ter, além do respeito aos limites legais da despesa, é a coerência interna. Fazer um orçamento público coerente, por sua vez, é a principal função do Ministério do Planejamento. Emendas sem limites de despesa podem violar a coerência com que o governo deve tratar o orçamento proposto.
O que a temerária “guerra” entre poderes, anunciada na fala do presidente da Câmara, reserva para o país é uma ameaça, não a Lula, mas ao povo. O Presidente já cedeu demais quando reservou uma parte substancial do orçamento do próximo ano para as emendas. A rigor, exagerou em concessões. Se as divisões de função entre os Poderes fossem efetivamente respeitadas, o Congresso só poderia contestar o orçamento quando encontrasse incoerências nele, ou provados prejuízos para o povo.
Na medida em que inventa novas formas de emendas, como agora, além das emendas individuais, o Congresso está sobrecarregando as despesas orçamentárias globais e reduzindo os gastos propostos pelo Executivo em funções específicas e investimentos essenciais para o desenvolvimento do País. Isso é uma tremenda distorção, em prejuízo de prioridades indicadas pelo dirigente do Executivo, e que foram estabelecidas e aprovadas pelos eleitores já nas eleições.
Entretanto, na “democracia” de Lira, cada parlamentar individual, representando apenas uma parcela do povo, vale mais que o Presidente, eleito e representante de todos. Infelizmente, essa ambiguidade tem origem na própria Constituição, na medida em que prevê as emendas parlamentares, embora sem estabelecer seu valor máximo. Com isso, temos um presidencialismo manco, distorcido, perverso, que enfraquece a capacidade de investimento do Estado.
Claro que o Constituinte de 88 não poderia prever que passaríamos por experiências políticas tão traumáticas quanto sete anos de presidência de Temer e Bolsonaro. Foi o período da radicalização neoliberal, que empurrou os progressistas para a minoria no Congresso. Com este último sob controle dos conservadores, foram aprovadas leis fiscais regressivas com o propósito de manter o poder Executivo sem espaço de manobra para perseguir um programa desenvolvimentista.
Foi uma “perfeita” manobra regressiva para a hipótese de Lula ganhar as eleições. Não era certo, mas era melhor prevenir-se da ameaça. Contavam, sim, com manter a maioria no Congresso, o que aconteceu. A consequência disso, porém, é que Lula ganhou, e ficou travado pelo Centrão de Arthur Lira. Hábil negociador, o Presidente conseguiu levar um governo de relativo equilíbrio até se defrontar, agora, com o imperativo de dar mais dinheiro para satisfazer o Centrão ou abandonar parte de seus projetos de desenvolvimento do país.
Essas considerações acima estão no campo teórico. Não são muito fáceis de serem entendidas pelo povão, que por certo não entende bem a distinção entre conservadores e progressistas, neoliberais e sociais democratas. Na prática, o que ele entende é o que um empresário me contou sobre o modo de operar do Centrão de Lira, na hora de montar o programa e por em prática as emendas parlamentares, que são projetos específicos para fidelizar currais eleitorais.
O parlamentar vai a Lira e, em troca de fidelidade ao Centrão, mostra-lhe a emenda que, previamente acertada com um prefeito ou outro cabo eleitoral, ele quer que seja aprovada. Lira anota e se compromete a levá-la para aprovação. Uma vez aprovada, é preciso colocá-la em prática. Como se trata de uma obra pública, é preciso a liberação da verba correspondente pelo Executivo. Lira trata disso na Casa Civil (pelo menos era assim no tempo de Bolsonaro).
O prefeito beneficiado faz, então, um acordo com o empresário que vai realizar a obra. Para isso, formalmente, é preciso fazer e publicar um edital. Contudo, há vários expedientes para contornar essa formalidade. Às vezes nem se publica edital. Ou às vezes se faz uma obra grande, anunciada por edital, e a empreiteira vencedora, também grande, distribui partes dela com empresas médias e pequenas, numa relação privada, sem necessidade de editais. A propina rola a cada passo desse percurso!
A Polícia Federal sabe disso. Os jornais, principalmente os eletrônicos, eventualmente publicam notícias de expedição de mandados de prisão e de busca e apreensão em casas e escritórios de empresários e políticos envolvidos com obras públicas suspeitas, mas os jornalistas param por aí e não rastreiam a origem do dinheiro. Se rastreassem pra valer, acabariam encontrando, no fim da linha, a emenda de um deputado federal ou de um senador ligado ao Centrão.
Um caso publicado em jornal eletrônico envolveu a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba), e duas empreiteiras no Maranhão, cujos donos chegaram a ser presos, tendo a Justiça expedido cerca de 20 mandados de busca e apreensão de suspeitos de pagamento de propinas. Os presos foram soltos e a PF de Bolsonaro não falou mais no assunto. Aliás, o Maranhão é um dos Estados mais beneficiados por obras públicas financiadas através da Codevasf.
Por aí se vê como o Centrão se tornou estratégico para a corrupção no meio parlamentar. Provavelmente tem sido muito difícil para Lula tratar com seu grande cacique num nível elevado de interesse público. E o fato é que, se a opinião pública não se levantar contra essa tentativa de ditadura congressual através do orçamento, o futuro do Brasil ficará comprometido nesses próximos três anos (ou até depois) pelo desvio do investimento em infraestrutura para parlamentares corruptos.
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