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    Valéria Dallegrave

    Jornalista, escritora e dramaturga

    35 artigos

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    O Descarnaval ao Lado do Paraíso – um relato pessoal

    Esta segunda-feira posso dizer que nada me faz lembrar da existência do carnaval... apenas o desfile que vejo em minha mente, de tantas vítimas de um estado macabro, à merce de um despresidente cercado por assombrações de farda, que saíram das tumbas para tomar o país

    Nasci em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. Por ter desde sempre um grande amor pelo mar, acabei traçando meu caminho de forma a hoje me considerar um cearúcha. Estou no Ceará há mais de quinze anos. Morei em Fortaleza, onde exerci por muitos anos a profissão – e missão – de professora de jornalismo. Em meio a grave crise pessoal, profissional e etc, larguei tudo e mudei sabaticamente para Jericoacoara, considerada uma das praias mais lindas do Brasil e do mundo. Eu quis superar as crises morando no paraíso. Tolice, todo paraíso tem um lado infernal, como diz sabiamente o simbolo do Tao. Acabei mudando novamente para uma localidade vizinha, a praia do Preá, onde comecei a viver em relativo isolamento, contato com a natureza e reflexão sobre a vida, a sociedade e o mundo. Testemunhei aqui o início da pandemia. 

    As pessoas, embriagadas da vizinhança do paraiso, e de ventos que embalam voos de kitesurf, consideraram que o tal vírus não chegaria aqui. Era impossível que se atrevesse a desafiar tanto sol, tanto vento, tanta vida organizada para suprir a felicidade dos turistas. No entanto, comecei a receber um pequeno boletim pelo whatsapp em que havia o número de confirmações de covid, de suspeitas e até, pasmem, mortes. Tudo muito modesto. Aparentemente o vírus não tinha coragem de chegar com vontade nessas praias. E eu ouvia ainda buggys passarem em alta velocidade, com gritos de turistas enlouquecidos de alegria com a ideia, claro, de que aqui tiravam férias da pandemia.

    Minha vida já distante de tantos agitos tornou-se um isolamento perpétuo (essa é a impressão, não!?) Mas tenho meus privilégios,o jardim para cuidar e as caminhadas com os cães pela praia, muitas vezes quase deserta - que foram, e ainda são, uma oportunidade única de vida, embora aconteçam cada vez mais raramente. Não há vontade de ficar  exposta ao mar e à sua imensidão profusa de tudo que há no mundo, estando o mundo tão deplorável. Por mais de um ano de pandemia, ouvi, nos finais de semana, o som de música alta na praia, onde, a exemplo de Jeri, se instalaram barracas de caipirinha. E o ano novo foi angustiante e barulhento como sempre. Muitos fogos, muita música, muito barulho de gente passando  na rua, e eu escondida em casa, me esforçando para fazer a cachorrinha superar a crise de pânico. 

    Me acostumei a ouvir o barulho animado de jogos no ginásio aberto na praça nova, não longe daqui. Como há muito vento, ele se encarrega de trazer os sons. No inicio, fiquei insone com esses gritos animados dos amantes do esporte, horrorizada com a ideia de jogos em que as pessoas criavam o ambiente propício para a dissseminação do vírus. Depois de alguns meses, acabei me acostumando a isso e tudo mais, e pensei que talvez eles tivessem razão. Torci para não ter razão, talvez o vírus não conseguisse chegar com toda a sua força aqui nas terras ao lado do paraíso.

    Enquanto eu acompanhava os comentários sobre a situação politica deplorável no Brasil, e via o despresidente estimular as aglomerações e condenar o uso de máscaras, também ouvia muita gente de esquerda compartilhar seu desejo maior de morar no Nordeste, onde o bolsonarismo não existiria. Mentira. Não só existe, como é forte. É forte porque os bolsonaristas se julgam acima da lei, acima dos outros, acima do Brasil e de Deus (que nunca veio desmentir o que publicam em seu nome), e se expressam sem qualquer noção ou vergonha, sempre com truculência e uma impressionante sensação de impunidade, como aquele que os “inspira”. 

    Por um bom tempo, fiz parte do grupo de whatsapp da Associação local, responsável pelo fornecimento de água, para estar bem informada sobre este abastecimento e suas crises regulares.  Mas ali criou-se um ponto de disseminação de memes bolsonaristas, aos quais tentei contrapor informações verdadeiras e bem embasadas, mas sendo a única a fazer isso, acabei me enojando de lidar com tanto dejeto, e me retirei do mesmo. Quando eu me manifestava, os infelizes humanos transformados em robôs bolsonaristas reivindicavam o mantra de que ali era proibido falar de política, encontrando eco. Quando eu usava o mesmo argumento, o silêncio era absoluto.

    Dai que, mesmo depois de ter saído deste grupo há meses, não me supreendi ao ouvir pessoas duvidando da existência do vírus, outros que só usavam máscara quando cobrados, e muitos que, mesmo sendo bem esclarecidos, preferiam continuar vivendo em “estado paradisíaco”. Pois, senhoras e senhores, é bem dificil aceitar que seu modo de vida foi roubado por um “monstro” invisível. A negação que se espalha de diversas formas é, muitas vezes, a dificuldade em aceitar tantas perdas do que traz alegria e prazer (e até lucro), ou de um modo costumeiro e simples de vida, de conversar com os vizinhos na porta de casa...

    Também não me surpreendi ao ouvir relatos de subnotificação às avessas. Como a desinformação espalhada pelo whatsapp insistiu por muito tempo que o vírus não existia ou seria inofensivo, e os Governadores seriam os responsáveis pela desgraça das pessoas, cerceando o direito de exercer suas atividades e conseguir o sustento de cada dia, era normal que, para muitos, a capacidade de julgamento da realidade estivesse comprometida. 

    Em lugares pequenos, os memes do whatsapp viram histórias verdadeiras contadas de boca em boca, não é incrível? Ouvi uma história de um amigo de amigo que contou que alguém de sua família havia morrido em um acidente de moto e os médicos teriam colocado, na certidão de óbito, que era covid. E li, com muita suspeita, a nota de pesar de um dos mercados locais, pela morte de uma funcionária jovem, em um acidente de moto, aliás... 

    Mas na última semana fiquei sabendo (por whatsapp) de duas pessoas conhecidas que estavam com covid, uma com possíveis graves sequelas (graças a Deus não confirmadas) e outra ainda em recuperação. Como meu círculo social aqui é bem limitado, considerei isso um indício de que o vírus havia finalmente chegado à beira do paraiso. As notícias de jornal, que colocam o municipio como local de altissimo risco apenas vieram confirmar a constatação. 

    Agora estamos na baixa estação do turismo, e começa a época das chuvas. Isso nunca foi motivo para impedir música alta e caipirinhas na beira da praia, mas nesta segunda-feira posso dizer que nada me faz lembrar da existência do carnaval... apenas o desfile que vejo em minha mente, de tantas vítimas de um estado macabro, à merce de um despresidente cercado por assombrações de farda, que saíram das tumbas para tomar o país. No primeiro bloco, os torturados e mortos na ditadura  militar; no segundo, as vítimas da covid, desassistidas, sem oxigênio ou vacina e, às vezes, desinformadas o bastante para sambar alegremente até os braços da morte...

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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