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    Daniela Cabral Gontijo (Danú)

    Advogada e doutora em Bioética Pesquisadora associada da Cátedra UNESCO de Bioética /PPGBioética UnB

    2 artigos

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    O dia em que mataram 28 da gente: uma reflexão sobre a Chacina do Jacarezinho

    Passou da hora de entendermos que é inaceitável um Estado que atira em sua população. E não tem essa de “mas é bandido”. Independentemente de quem seja, simplesmente não se pode sair atirando em pessoas

    Eu não sei o que dizer. Acabo de ler no El País que subiu para 28 o número de pessoas assassinadas pelas mãos do Estado na favela do Jacarezinho, cidade do Rio de Janeiro. Me faltam palavras. Como dar nome pra isso? Isso que não se chama defesa da infância. Isso que não se chama democracia. Nem segurança pública. Muito menos combate ao crime. Menos ainda justiça.

    Passou da hora de entendermos que é inaceitável um Estado que atira em sua população. E não tem essa de “mas é bandido”. Independentemente de quem seja, simplesmente não se pode sair atirando em pessoas. E mesmo que fossem bandidos, se não aceitamos que saiam atirando nos bandidos de nossos bairros, nos bandidos do Congresso Nacional, nos bandidos desse desgoverno, por que aceitamos que façam isso nas favelas? E quem acredita mesmo que estão nas favelas os capitalistas do tráfico de drogas? Até quando vamos alimentar essa grande farsa? Passou da hora de dar um basta à desfaçatez, passou da hora de dizer hi-po-cri-sia com todas as letras. Alguém lembra dos 39 kg de droga no avião presidencial? E os 450 kg de cocaína no helicóptero do deputado Gustavo Perrella? E os 117 fuzis apreendidos na casa do vizinho do presidente da República, no Condomínio Vivendas da Barra? Quantos fuzis foram apreendidos em Jacarezinho? Não digo mais nada. Sabemos bem que os verdadeiros bandidos estão de terno e gravata e contam não somente com a conivência das instituições, mas com a conivência da mídia e de grande parte da sociedade.

    Qual é mesmo o nome disso? Mas não basta dizer que se chama cinismo. Não basta denunciar com palavras. Tampouco basta dizer que se chama justiça seletiva, seletividade racial, criminalização da pobreza. Ou dizer milícias, máfias, desgoverno, “Estado profundo”. Ou mesmo dizer racismo, fascismo, terrorismo de Estado. Eu quero gritar tudo isso, eu quero as palavras escancaradas nas bocas, nas mentes, nas ruas. Mas nem eu sei mais o que dizer, eu que me apoio nas palavras pra levantar de manhã, que respiro as palavras feito oxigênio, eu não sei dizer mais nada quando o hediondo, a carnificina, o genocídio negro e indígena não param há cinco séculos e tudo parece ser palavra muito pequena. Tudo parece ser muito, muito pouco pra traduzir a brutalidade, a truculência. Tudo parece ser insuficiente frente ao absurdo total, frente à insanidade absoluta que se tornou a política de extermínio neste país, a autorização para exterminar pessoas feito baratas. Eles – os que se encontram em cima da gente – estão nadando de braçadas e nós, que lutamos com as palavras, estamos morrendo.

    Mas sei que tampouco podemos prescindir das palavras, porque juntamente com as ideias que elas trazem, são elas as armas mais poderosas, o cerne da economia dos afetos, que é tudo que agencia também a necropolítica vigente. São elas o adobe, o barro fundamental com o qual traçaremos as rotas de fuga, as pontes e plantaremos as hortas e reanimaremos as fontes e as praças e construiremos qualquer coisa próxima do que se pode chamar futuro, possibilidade, coletividade, (re)existência. O que sei é que é preciso juntar essas com outras tantas palavras, com outras tantas ações, com outras tantas pessoas e grupos e movimentos para construirmos um basta mais robusto, concatenado, massivo, concreto.

    Me vem a famosa poesia de Martin Niemöller sobre a indiferença: “Quando os nazistas vieram buscar os comunistas, eu me calei; eu não era um comunista [...]”. Há um genocídio em curso aqui e agora. Enquanto escrevo este texto, recebo a notícia de que garimpeiros invadiram uma Terra Indígena Yanomami. Uma nova tragédia que se anuncia. A indiferença de agora já nos custa um holocausto. Já nos custava antes, segue custando, e custará quantos mais? Como estancar o sangue? Eu não sei. Eu tenho só mais uma dúzia de palavras. Com essas é que digo que tá mais do que na hora de a gente descer as escadas para o entendimento. Digo entendimento, porque para entender não bastam palavras. E digo descer, porque é justamente essa metáfora a que ressoa em mim agora, essa da descida, em patente e sólida referência a “O dia em que o morro descer e não for carnaval”. Porque é essa a música que escuto retumbando na cabeça. Neste exato momento penso no dia em que a aldeia descer pro Planalto Central.

    Mas eu não sou do morro, eu não sou da aldeia, muitas pessoas dirão. É que nós todas precisamos descer. Quem já entendeu e quer e espera e sabe que talvez seja a hora de todos os morros e todas as aldeias descerem juntas em um basta uníssono, dando cara e corpo e mais sangue pra guerra já insana, deveria parar de esperar e simplesmente descer, porque o problema não é só do morro ou da aldeia. O problema é nosso.

    Tá na hora é de toda a gente descer. Entender que é gente e descer. Descer do salto de quem acha que não é gente. Descer do lugar onde pensamos que não é com a gente.

    Descer do alto do muro que a gente acha que nos protege, mas que é só uma casquinha fininha de verniz que não protege mais madeira de cupim, que nem se deu conta, mas tá lá exposta, madeira de fibra fraca contando com a sorte e a bonança das circunstâncias de não ser a próxima madeira a virar pó.

    Descer do alto de nossa indiferença, do alto de nossa arrogância que permite essa apatia sádica, que é na verdade uma imensa ignorância por achar que matar gente na favela não tem nada a ver com a gente. É que enquanto a gente decide onde vai traçar a linha do que é a gente e do que não é a gente, muita gente vai morrer. E do jeito que anda a coisa, não vai sobrar gente. Por isso é tão urgente descer.

    Tolerar a (in)justiça seletiva é tolerar um fim lento e gradual para a gente toda. A miséria de uma parte da população será, mais cedo ou mais tarde, a miséria da gente. Na verdade, o Brasil de Bolsonaro já é a miséria de toda a gente. É uma equação óbvia. E tá mais óbvio para quem carrega uma marca das gentes indesejáveis: negras, indígenas, transexuais, sapatões, gays, com deficiência, periféricas, presas ou ex-presas, pobres, ou com qualquer outra marca subalternizável. A equação estaria mais do que óbvia para 99% das pessoas se nos déssemos conta de quem são nossos verdadeiros inimigos, e que todas estamos fragilizadas frente a eles. 99% da população é feita de gente.

    Quem está em cima da gente? Quem se acha acima da gente? Talvez os dados da OXFAM que mostram que “os 5% mais ricos do país recebem por mês o mesmo que os demais 95% juntos” ajudem a responder a essas perguntas. A pandemia agravou ainda mais esse cenário, e enquanto o “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19” mostra que quase 20 milhões de pessoas passam fome, o Brasil, segundo a Revista Forbes, ganhou 20 novos bilionários. Na dúvida, siga o dinheiro, quem lucra com a miséria da gente e a quem interessa esse cenário de profunda desigualdade.

    Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga,

    nem autoridade que compre essa briga

    Ninguém sabe a força desse pessoal

    Melhor é o Poder devolver a esse povo a alegria,

    senão todo mundo vai sambar

    no dia em que o morro descer e não for carnaval

    Certamente seriam necessários alguns ajustes nesse samba extraordinário. O Poder não devolve alegria que nunca deu, mas uma coisa é certa: ou todo mundo frui de um mundo justo ou vai ser mais que justo uma metralhadora desgovernada girando pra todo lado no asfalto, no morro e no Planalto. E, quando esse momento chegar, não vai ter palavra que dê conta.

    É que a conta precisa urgentemente fechar: ou tem mundo pra todo mundo ou ninguém vai mais sambar.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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