O dia em que Oswald de Andrade resolveu matar e morrer
Em janeiro deste ano, a obra de Oswald de Andrade caiu em domínio público
Em janeiro deste ano, a obra de Oswald de Andrade caiu em domínio público. Tudo. Poesias, crônicas, memórias, romances, peças. Setenta anos da sua morte. Tal como ele pregava, antropofagicamente degluti seus romances, diários e peças de teatro, e os transformei numa farsa tropicalista em cinco atos e um epílogo, na qual ele contracena com pessoas reais em situações reais (como este episódio) e com os personagens que criou, em situações que eu criei.
A seguir, um trecho da peça “Amor-te de Oswald de Andrade”. Kamiá era sua mulher na época.
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SEGUNDO ATO
cena 2
Um bolero ou um samba-canção dor de cotovelo, na voz de um cantor romântico, ainda no escuro. Um cabaré. Duas ou três mesas. Mulheres semi-despidas circulando. Oswald na mesa com dois amigos. Há muitas garrafas vazias. Eles continuam enchendo a cara. Mulheres assediam Oswald. Uma senta no seu colo. Outra morde seu pescoço. Outra ainda beija na boca. Ele não lhes dá atenção. Está mais interessado em beber. Depois de duas ou três tentativas de assédio ele levanta. Está completamente bêbado.
OSWALD - Estou com a cabeça esburacada. É incurável o meu mal. Mal de poeta, de romancista, de burro. Estou sendo devorado vivo. Fui batido, humilhado e ofendido pela mais bela e mais infame das mulheres. Landa é a mais extraordinária das putas! Ouviram bem? A mais ordinária e a mais extraordinária das putas! Ela sabe que carrega o inferno entre as pernas. Eu a vi saindo do banho de mar, hoje, às quatro da tarde. Pensei que fosse miragem. Não acreditei no que via. Ela me olhou, abriu a boca, voltou violentamente a cabeça e cobriu-a com a mão, num gesto inconfundível de pavor. Ela me tem pavor! Filha de três gerações de putas!
Luzes off
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cena 3
Oswald lê uma carta com os olhos. Sozinho em cena. Num lugar indefinido.
VOZ DE LANDA - Querido amigo e benfeitor. Eu sou uma infame. Não aceitei as suas sugestões de fuga porque me deixei levar pela minha mãe… quer dizer, minha avó, ela não é minha mãe, forjou documentos da minha mãe… ela fazia contatos com homens que me procuravam. Me afastou de você. Não aconteceu nada, mas sinto que tenho sido infiel ao nosso sonho. Não mereço mais a vida que nos prometemos. Por favor, me ajude a voltar para São Paulo. Não quero mais ficar no Rio. Não quero mais servir a uma cafetina. Landa.
Oswald sai de cena. Luzes off.
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cena 4
Estúdio da Rádio Clube.
LOCUTOR - Está no ar o seu “Coquetel de notícias”.
LOCUTORA - Num oferecimento de Pulmotosse. Ainda não cessou a sua tosse? Experimente o Pulmotosse.
LOCUTOR - Petróleo Soberano. Preparado scientífico contra caspa e queda dos cabelos.
LOCUTORA -Mau hálito? Elixir Doria. Estômago. Fígado. Intestinos. Tanto na falta de apetite quanto nas digestões difíceis.
LOCUTOR - Notícias policiais. Um fato inusitado sacode o mundo artístico de São Paulo. A altas horas da noite de quarta-feira passada, compareceu ao forum a dançarina Landa Kosbach.
LOCUTORA - Nosso informante assegura que a visita ao forum deu-se logo após a sua apresentação do balé A morte do cisne, de Saint-Saenz, no Teatro Municipal, para onde ela se dirigiu a pé, acompanhada pelo advogado Vicente Rao.
LOCUTOR - Atendida pelo juiz de plantão, a jovem dançarina de 16 anos que foi aplaudida de pé no Municipal, denunciou a sua própria mãe, ou seja, a sua própria avó pelo crime de cafetinagem!
LOCUTORA - Brinquedos! A começar de 800 réis. Colossal sortimento acaba de receber “A Lieigiana”. O vosso dinheiro para tudo chegará. Direita, 141.
LOCUTOR - J. Costa & Cia. Ltda. proprietários da Casa Gaúcho, a afortunada agência de loterias, à rua Barão de Itapetininga número 3 cumprimenta seus clientes e amigos por ocasião do ano novo.
LOCUTORA - No dia seguinte à denúncia, a mãe de Landa Kosbach, ou seja, a avó, reagiu dizendo por meio de seu advogado que trata-se de um golpe do sr. Oswald de Andrade, o sedutor de Landa Kosbach, o verdadeiro criminoso. E que ele, sim, deveria ir para trás das grades.
LOCUTOR - O juiz decidiu internar a menor num colégio de freiras.
LOCUTORA - Ainda não cessou a sua tosse? Experimente Pulmotosse.
Luzes apagam.
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cena 5
Casa de Seu Andrade. Oswald, Kamiá e Seu Andrade.
SEU ANDRADE - (Deixa de lado o jornal que estava lendo.) Que vergonha, meu filho! Que escândalo! A nossa família nas páginas policiais. Ainda bem que sua mãe não está mais entre nós. Graças a Deus.
Entra em cena SÃO PEDRO.
SÃO PEDRO - Quem falou em Deus aí? Eu sou materialista. Não acredito em Deus. Não acreditei nem quando atravessei com ele a Terra Santa.
São Pedro sai.
OSWALD - Jornais sensacionalistas. Tudo mentira. Tudo invenção. A imprensa, ora a imprensa, conheço bem seus truques cafajestes. São todos uns salafras! Salafras e patifes!
SEU ANDRADE - Não negue! Você raptou a moça para casar com ela. É pecado mentir. Esqueceu as lições de catecismo?
KAMIÁ - É clarrrro que foi! Você é um fauno insaciável! E ela tem o inferrrno entre as perrrnas!
OSWALD - Não é verdade. Não raptei. O juiz mandou internar. Contra a minha vontade. Ele acabou com a carreira dela! A nova Isadora Duncan!
SEU ANDRADE - Daqui a pouco você vai lá e desinterna e casa com ela. É como você sempre faz. Compra a madre diretora do colégio. Compra o juiz. E casa com ela.
KAMIÁ - Mande o convite do batizado. Estão dizendo que ela está grrrrávida!
OSWALD - Onde estão dizendo?
KAMIÁ - N’”A Gazeta”. Olha a manchete: “Landa Kosbach estará grávida”? Tem a tua foto. E olha o que diz embaixo da tua foto: “o sedutor”. Vai assumirrrr a criança? Ou vai mandar aborrrrtar?
Luzes apagam.
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cena 6
Oswald sozinho em cena. Depois, mais Repórter 1 e Repórter 2.
OSWALD - Grávida? Landa grávida? Se está grávida eu não sou o pai. Landa grávida? Absurdo! Grávida de quem? Do Coelho Neto? Do padrasto?
Luz que estava sobre OSWALD agora está sobre REPÓRTER 1 e REPÓRTER 2. Oswald fica no escuro.
REPÓRTER 1 - Oswald foi checar se era verdade o que Kamiá lhe contou. Na redação do “Jornal do Commercio” um colega confirmou. Landa está grávida. Ele ficou furioso.
REPÓRTER 2 - Mas ela estava ou não estava grávida?
REPÓRTER 1 - Ninguém tinha certeza. Na dúvida, Oswald resolveu tirar a questão em pratos limpos. Deu um beijo no filho de dois anos e meio, pegou a sua Browning e chamou um táxi. Mandou seguir para o colégio das freiras, em Santana. Chamou Landa para confirmar os boatos.
Luz sobre OSWALD. Entra em cena LANDA.
OSWALD (aponta o revólver para ela) - Você está grávida?
LANDA - Não!
OSWALD (recolhe a arma) - Ainda bem. Caso estivesse, eu a levaria para as matas próximas da Cantareira, onde seriam encontrados dois cadáveres no dia seguinte.
Luzes apagam.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.


