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    Pepe Escobar

    Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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    O Emirado Islâmico do Afeganistão está de volta com um estrondo

    A "perda" do Afeganistão é um reposicionamento, e a nova missão não é uma "guerra ao terror", mas sim à Rússia e à China

    (Foto: Reuters)

    Pepe Escobar, para o Asia Times

    Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

    Espere até a guerra acabar
    E a gente ficar um pouco mais velho
    O soldado desconhecido
    Café-da-manhã lendo as notícias
    Crianças alimentadas a televisão
    Não-nascidos, vivos, mortos
    Balas atingem a cabeça de capacete
    E tudo acaba
    Para o soldado desconhecido

    The Doors, "O Soldado Desconhecido" 

    Ao final, o momento Saigon aconteceu mais rápido do que esperavam os "especialistas" dos serviços de inteligência do Ocidente. Essa é para entrar para os anais: quatro dias frenéticos que resolveram a guerrilha blitzkrieg mais estarrecedora de tempos recentes. Bem ao estilo afegão: muita persuasão, muitos acordos tribais, zero colunas de tanques, derramamento de sangue mínimo.

    O dia 12 de agosto montou o cenário, com a captura quase simultânea de Ghazni, Kandahar e Herat. Em 13 de agosto, o Talibã estava a apenas 50 quilômetros de Cabul. 14 de agosto começou com o cerco a Maidan Shahr, o portal para Cabul. 

    Ismail Khan, o lendário Leão de Herat, firmou um acordo de auto-preservação e foi enviado a Cabul pelo Talibã como mensageiro de primeiro escalão: O presidente Ashraf Ghani tem que renunciar, senão...

    Ainda no sábado, o Talibã tomou Jalalabad – e isolou Cabul a partir do leste até a fronteira Afeganistão-Paquistão em Torkham, entrada para o Passo de Khyber. Sábado à noite, o Marechal Dostum fugiu com um bando de militares para o Uzbequistão pela Ponte da Amizade, em Termez; muito poucos foram os que tiveram permissão para se juntarem a eles. O Talibã, como era de se esperar, ocupou o palácio ao estilo Tony Montana de Dostum.

    Bem cedo na manhã de 15 de agosto, só restava ao governo de Cabul o vale de Panjshir – no alto das montanhas, uma fortaleza naturalmente protegida - e hazaras esparsos: não há nada nessas belas terras centrais exceto Bamiyan.  

    Há exatamente vinte anos eu estava em Bazarak, me preparando para entrevistar o Leão de Panjshir, o comandante Masoud, que então preparava uma ofensiva contra... o Talibã. A história se repetindo, com um toque especial. Desta vez me enviaram provas visuais de que o Talibã – seguindo o clássico manual das células guerrilheiras adormecidas – já estavam no Panjshir.

    E então, o meio da manhã de domingo trouxe a estarrecedora reencenação visual do momento Saigon, para o mundo inteiro ver: um helicóptero Chinook pairando sobre telhado da embaixada americana em Cabul.  

    'A guerra acabou' 

    Ainda no domingo, o porta-voz do Talibã, Mohammad Naeem, proclamou: "A guerra no Afeganistão acabou", acrescentando que o formato do novo governo logo seria anunciado. 

    Os fatos reais são muito mais intrincados. Negociações vêm acontecendo em ritmo frenético desde a tarde  de domingo. O Talibã estava pronto para anunciar a proclamação oficial do Emirado Islâmico do Afeganistão em sua versão 2.0 (a 1.0 foi de 1996 a 2001). O anúncio oficial seria feito dentro do palácio presidencial. 

    Mas o que havia sobrado da Equipe Ghani estava se recusando a transferir o poder para um conselho de coordenação que irá de fato organizar a transição. O que os talibãs querem é uma transição desimpedida: eles são agora o Emirado Islâmico do Afeganistão. Caso encerrado.

    Na segunda-feira, um sinal conciliador veio do porta-voz talibã Suhail Shaheen. O novo governo terá integrantes não pertencentes ao Talibã. Ele se referia a um futuro "governo de transição", provavelmente co-administrado pelo líder político do Talibã, o Mulá Baradar e por Ali Ahmad Jalali, ex-ministro das relações exteriores que foi também, no passado, funcionário da Voz da América. 

    No final das contas, não houve batalha de Cabul. Milhares de talibãs já estavam dentro de Cabul – mais uma vez o clássico manual de instruções das células adormecidas. O grosso de suas tropas permaneceu nos arredores. Uma ordem oficial do Talibã determinou que eles não entrassem na cidade, que deveria ser capturada sem luta para evitar mortes civis.

    O Talibã avançou a partir do oeste, mas "avançar", neste contexto, significava conectar-se às células adormecidas de Cabul, que estavam então em plena atividade. Em termos táticos, o cerco de Cabul foi uma manobra "anaconda", tal como definida pelo comandante talibã: comprimida pelo norte, sul e oeste e, com a captura de Jalalabad, isolada a leste. 

    Em algum momento da semana passada, deve ter sido sussurrada ao comando talibã a informação de que os americanos estariam vindo para "evacuar". Pode ter sido inteligência paquistanesa, ou mesmo turca, com Erdogan jogando seu característico jogo duplo na OTAN.  

    A cavalaria de resgate americana não apenas se atrasou, mas viu-se também em um beco sem saída,  já que não poderia bombardear seus próprios efetivos em Cabul. O péssimo timing foi agravado quando a base militar de Bagram - o Valhala da OTAN no Afeganistão por quase vinte anos - foi finalmente tomada pelo Talibã. 

    Isso tudo levou os Estados Unidos e a OTAN a literalmente pedirem  ao Talibã que os deixasse evacuar tudo o que pudessem de Cabul - de avião, às pressas, à mercê do Talibã. Um desdobramento geopolítico que evoca suspensão de descrença.

    Ghani versus Baradar

    A fuga apressada de Ghani soa como "um conto contado por um idiota, significando nada" - sem o pathos shakespeariano. O cerne de toda a questão foi uma reunião de última hora entre o ex-presidente Hamid Karzai e o eterno rival de Ghani, Abdullah Abdullah.

    Eles discutiram detalhadamente quem iriam mandar para negociar com os talibãs – que, àquelas alturas, estavam não apenas totalmente preparados para uma possível batalha de Cabul, mas haviam também anunciado há semanas sua intocável linha vermelha - eles querem o fim do atual governo representante da OTAN.   

    Ghani, finalmente, entendeu a mensagem e desapareceu do palácio presidencial sem sequer falar com os possíveis negociadores. Com sua mulher, seu chefe de gabinete e seu consultor para assuntos de segurança nacional, ele fugiu para Tashkent, a capital uzbeque. Algumas horas depois, o Talibã entrou no palácio presidencial, e as  imagens impressionantes foram devidamente captadas.

    Ao comentar sobre a fuga de Ghani, Abdullah Abdullah não mediu palavras: "Deus o responsabilizará". Ghani, um antropólogo com doutorado em Colúmbia é um daqueles casos clássicos de pessoas do Sul Global exiladas no Ocidente que "esquecem" tudo o que é importante sobre seus países de origem. 

    Ghani é um pashtun que se comportou como um nova-iorquino arrogante. Ou ainda pior, um pashtun tão seguro de seus privilégios que não cansava de demonizar os talibãs, que são esmagadoramente pashtun, para não falar dos tadjiques, dos uzbeques e dos hazaras, incluindo seus anciãos tribais.  

    É como se Ghani e sua equipe ocidentalizada não tivessem aprendido nada com a fonte importante que é o grande antropólogo social norueguês Fredrik Barth, já falecido (aqui vai uma amostra de seus estudos sobre os pashtuns).

    Em termos geopolíticos, o que importa agora é que o Talibã escreveu um enredo novo em folha, mostrando às terras do Islã, e também ao Sul Global, como derrotar o auto-referente e aparentemente invencível império Estados Unidos/OTAN.

    O Talibã alcançou esse objetivo com fé islâmica, paciência infinita e força de vontade, que moveram cerca de 78.000 combatentes - 60.000 deles na ativa - muitos com treinamento militar mínimo, nenhum apoio de um estado estrangeiro - diferentemente do Vietnã, que tinha a China e a URSS - zero das centenas de bilhões de dólares da OTAN,  sem um exército treinado, sem força aérea e sem tecnologia estado-da-arte. 

    Eles contavam apenas com Kalashnikovs, granadas propelidas a foguete e pick-ups Toyota – antes de, nestes últimos dias, capturarem equipamento americano, inclusive drones e helicópteros. 

    O líder Talibã, o Mulá Baradar foi extremamente cauteloso. Na segunda-feira ele afirmou: "É cedo demais para dizer como iremos organizar o governo". Antes de mais nada, os talibãs querem "ver a partida das forças estrangeiras antes de a reestruturação começar".

    Abdul Ghani Baradar é um personagem muito interessante. Ele nasceu e foi criado em Kandahar. Foi lá que o Talibã começou em 1994, tomado a cidade praticamente sem luta e, em seguida, equipando-se com tanques, armamentos pesados e muito dinheiro vivo para subornar os comandantes locais, capturando Cabul há quase 25 anos, em 27 de setembro de 1996. 

    Antes disso, o Mulá Baradar havia lutado na jihad dos anos 80 contra a URSS, talvez - informação não-confirmada - lado a lado com o Mulá Omar, com quem ele co-fundou o Talibã. 

    Depois do bombardeio e da ocupação pelos Estados Unidos após o 11 de setembro, o Mulá Baradar e um pequeno grupo de talibãs  enviaram uma proposta ao então presidente Hamid Karzai sobre um possível acordo que permitiria que o Talibã reconhecesse o novo regime. Karzai, sob pressão de Washington, rejeitou o acordo.  

    Baradar chegou a ser preso no Paquistão em 2010 – e mantido sob custódia. Acredite ou não, a intervenção americana levou à sua libertação em 2018. Ele, então, transferiu-se para Catar. E foi lá que ele foi designado chefe do setor político do Talibã, tendo supervisionado a assinatura do acordo sobre a retirada das tropas americanas, no ano passado.

    Baradar será o novo governante em Cabul - mas é importante notar que ele está subordinado à autoridade do Líder Supremo do Talibã desde 2016, o Haibatulá Akhundzada. É o Líder Supremo - na verdade, um orientador espiritual - que reinará sobre a nova encarnação do Emirado Islâmico do Afeganistão. 

    Cuidado com um exército de camponeses guerrilheiros 

    O colapso do Exército Nacional Afegão (ENA) era inevitável. Eles foram "educados" ao modo militar americano: tecnologia maciça, poderio aéreo maciço e praticamente nenhuma inteligência territorial local. 

    O que é importante para o Talibã são os acordos com os anciãos tribais e os laços familiares – e também um enfoque de guerrilha camponesa, paralelo aos dos comunistas do Vietnã. Eles, há anos, vinham esperando o momento propício, limitando-se a forjar conexões - e a montar as tais células adormecidas. 

    As tropas afegãs, que há meses não recebiam salário, foram pagas para não lutar contra eles. E o fato de que eles não atacavam as forças americanas desde fevereiro de 2020 fez com que eles conquistassem um  respeito ainda maior: uma questão de honra, de importância essencial no código pashtunwali.

    É impossível entender o Talibã - e, menos ainda, o universo pashtun – sem entender o pashtunwali. E também os conceitos de honra, hospitalidade e a inevitável vingança por qualquer malfeito. O conceito de liberdade implica que nenhum pashtun tende a obedecer a autoridade de um governo central - neste caso, Cabul. E em nenhuma hipótese eles entregarão suas armas. 

    Em poucas palavras, esse é o "segredo" da blitzkrieg rápida como um relâmpago, com mínimo derramamento de sangue, característica do grande terremoto geopolítico. Depois do Vietnã, aqui temos o segundo protagonista do Sul Global a demonstrar ao mundo inteiro que um império pode ser derrotado por um exército de camponeses guerrilheiros. 

    E tudo isso alcançado com um orçamento que talvez não exceda 1,5 bilhão de dólares ao ano – vindos de impostos locais, dos lucros das exportações de ópio (sendo proibida a distribuição interna) e da especulação imobiliária. Em vastas regiões do Afeganistão, o Talibã já vinha comandando de fato a segurança e  os tribunais locais, e até mesmo a distribuição de alimentos.  

    O Talibã de 2021 é um animal totalmente diferente do Talibã de 2001. Não apenas eles agora foram curtidos na batalha, mas tiveram tempo suficiente para aperfeiçoar sua capacidade diplomática, o que ficou mais que visível em Doha e nas visitas de alto nível a Teerã, Moscou e Tianjin. 

    Eles sabem muito bem que qualquer conexão com remanescentes da al-Qaeda, do ISIS/Daesh, do ISIS-Khorasan e do ETIM seria contraproducente – como seus interlocutores na Organização de Cooperação de Xangai deixaram bem claro.

    A unidade interna, entretanto, será extremamente difícil de alcançar. O labirinto das tribos afegãs é um quebra-cabeça de solução praticamente impossível. Em termos realistas, o que o Talibã pode conseguir é uma confederação frouxa de tribos e grupos étnicos sob um emir talibã, acoplado a um gerenciamento muito cuidadoso das relações sociais. 

    As impressões iniciais apontam para uma maior maturidade. O Talibã vem anistiando funcionários da ocupação da OTAN e não irá interferir nas atividades empresariais. Não haverá campanha de vingança. Cabul está de volta ao jogo. Há informações de que não há histeria de massa na capital: esse é o território exclusivo da mídia convencional anglo-americana. As embaixadas russa e chinesa continuam abertas e em funcionamento.

    Zamir Kabulov, o representante especial do Kremlin para o Afeganistão, confirmou que a situação em Cabul, surpreendentemente, é de "calma absoluta" – ao mesmo tempo em que reiterava: "Não temos pressa com relação ao reconhecimento [do Talibã]. Vamos esperar e observar como o regime irá se comportar".

    O Novo Eixo do Mal

    Tony Blinken pode tagarelar que "estávamos no Afeganistão com um propósito principal – o de lidar com a gente que nos atacou no 11 de setembro". 

    Todos os analistas políticos sérios sabem que o "principal" propósito geopolítico do bombardeio e da ocupação do Afeganistão, há quase vinte anos, foi o estabelecimento de um ponto de apoio de importância essencial para o Império das Bases, situado na intersecção estratégica entre a Ásia Central e a Ásia do Sul, seguido pela ocupação do Iraque, no Sudoeste Asiático.

    A "perda" do Afeganistão deve ser interpretada como um reposicionamento. Ela se encaixa na nova configuração geopolítica, onde a principal missão do Pentágono não é mais a "guerra ao terror", mas sim a tentativa de, simultaneamente, isolar a Rússia e fustigar a China por todos os meios possíveis para evitar a expansão das Novas Rotas da Seda. 

    Ocupar países pequenos deixou de ser a prioridade. O Império do Caos pode sempre fomentar o caos - e supervisionar uma variedade de bombardeios - a partir de sua base CENTCOM, no Catar.

    O Irã está prestes a ingressar na Organização de Cooperação de Xangai como membro pleno - mais um ponto de virada. Mesmo antes de reinstalar o Emirado Islâmico, o Talibã, cuidadosamente, cultivou boas relações com os principais atores eurasianos – Rússia, China, Paquistão, Irã e os "istãos" da Ásia Central. Os "istãos" estão sobre a plena proteção da Rússia. Pequim já planeja um volumoso negócio de terras raras com o Talibã.  

    No front atlanticista, o espetáculo de incessante auto-recriminação irá consumir o Beltway por anos a fio. Duas décadas, dois trilhões de dólares, o debacle de caos, morte e destruição provocado por uma guerra eterna, um Afeganistão ainda arrasado, uma saída literalmente na calada da noite - para quê? Os únicos "vencedores"  foram os Senhores da Quadrilha dos Armamentos.   

    Mas todo enredo americano precisa de um bode expiatório. A OTAN acaba de ser cosmicamente humilhada no cemitério dos impérios por um bando de pastores de bodes - e não por encontros imediatos com o Sr. Khinzal. O que restou? Propaganda.

    O novo bode expiatório: o Novo Eixo do Mal.  O eixo Talibã-Paquistão-China. O Novo Grande Jogo na Eurásia acaba de ser recarregado.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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