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    J. Carlos de Assis

    Economista, doutor em Engenharia de Produção pela UFRJ, professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba e autor de mais de 20 livros sobre economia política.

    50 artigos

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    O Estado mínimo e os desastres climáticos

    O avanço das mudanças climáticas evidencia o impasse do neoliberalismo no Brasil

    (Foto: Agência Brasil)

    É uma ironia da História que as mudanças climáticas, provocando desastres extremos em todo o planeta, tenham encontrado no mundo e no Brasil grupos de direita ou de extrema direita que vêm sustentando há décadas a ideologia neoliberal, cuja síntese é justamente a promoção do Estado mínimo. De fato, em poucos momentos da História o País precisou tanto, como agora, de um Estado forte, para dar conta dos imensos custos de reconstrução e de prevenção dos danos materiais e humanos devidos às mudanças do clima. Isso se manifestou principalmente no próprio Rio Grande do Sul.

    Contudo, os principais dirigentes desse estado, o governador Eduardo Leite, do PSDB, e seu aliado Sebastião Melo, prefeito da capital Porto Alegre, do MDB, têm-se destacado como próceres aliados em favor do neoliberalismo. Melo fez um verdadeiro estrago na legislação ambiental, suprimindo dela centenas de artigos e eximindo investidores de apresentar pareceres técnicos para construir empreendimentos em áreas de conservação. Melo também assumiu uma posição privatista, sob críticas de que grandes projetos urbanísticos estavam sendo aprovados, contrariando normas ambientais. Com isso, o extremismo privatista, que, nos tempos de Bolsonaro, efetivamente subordinou os interesses sociais aos interesses específicos de blocos econômicos, confronta-se agora com as consequências de sua própria ideologia, que tem tido como meta afundar o que se tornou agora seu próprio barco de salvação, o Estado. No caso dos bolsonaristas isso não é de estranhar, porque sua radicalização não tem qualquer compromisso com os interesses reais da Nação. Contudo, seus aliados na prática, PSDB e MDB, que se dizem sociais-democratas, não são menos radicais quando se trata de desestatizar. Veja-se o que fez Fernando Henrique Cardoso em seus governos.

    O neoliberalismo não tem sido apenas um projeto econômico de apropriação pelas classes dominantes de parte relevante da renda produzida pelas classes dominadas. É um projeto de utilização consciente da Economia como instrumento para a destruição do Estado Nacional, de forma a limitar a ação deste em favor das camadas mais vulneráveis da população e mais necessitadas de apoio estatal. É na implementação desses dois objetivos que se manifesta o jogo político que, no Brasil, tem colocado secularmente em planos opostos conservadores e progressistas.

    Agora os conservadores, hoje denominados neoliberais, se encontram diante de um impasse. Se insistirem na doutrina do Estado mínimo estarão privando a sociedade de seu principal suporte para se defender ou se adaptar aos desastres climáticos extremos. Não se trata de ideologia. É um princípio de realidade. Leite e Melo foram correndo atrás do governo federal para obter recursos absolutamente necessários para que pudessem superar as tragédias climáticas que as populações que governam estão sofrendo. Um Estado fraco não poderia socorrê-los. E, se negasse o socorro, o governo federal não estaria se opondo a eles, mas ao povo gaúcho.

    Se há dúvidas quanto a isso, o Estado forte é fundamental principalmente para países em desenvolvimento ou emergentes, como o Brasil - onde o setor privado não tem condições de responder por todos os investimentos de infraestrutura essenciais para o desenvolvimento sustentável. Entre esses, destacam-se agora as medidas de prevenção e as ações que devem ser adotadas para enfrentar os danos provocados pela crise climática. O setor privado não tem interesse em fazer isso, a não ser que receba compensações dadas pelo próprio Estado.

    É possível que se tenha de voltar até os anos 1930 do século passado para entender como nasceu e se desenvolveu a ideologia do Estado mínimo no Brasil, hoje francamente dominante e, na Era dos desastres climáticos extremos, também altamente perigosa para a sociedade. Ela representou, originalmente, uma reação liberal por parte das oligarquias rurais à centralização do poder político no Estado Nacional centralizado, comandado justamente por um gaúcho, o presidente Getúlio Vargas, chefe da Revolução de 30 e, especialmente, autor do golpe que a consolidou com o Estado Novo em 1937.

    Por Vargas foram criados importantes órgãos do poder central em setores-chave da administração pública, como IBGE, DASP, Conselho Federal de Comércio Exterior, Conselho Federal de Economia, Conselho Nacional de Petróleo, Conselho de Mobilização Econômica. Tratava-se do ponto inicial da modernização do país, sob a condução do Estado, em choque direto com os oligarcas conservadores e seus asseclas, que queriam manter o sistema de poder político descentralizado através das províncias, que governavam como mandatários supremos.

    Getúlio iniciou paralelamente a construção da infraestrutura industrial e econômica do Brasil. Usando, com habilidade, o propósito norte-americano de nos afastar dos braços de Hitler, aceitou a oferta dos Estados Unidos de ajudar a criar a Companhia Siderúrgica Nacional, ou CSN, em troca da construção de uma base militar contra a Alemanha, no Rio Grande do Norte. Com isso surgia a indústria siderúrgica brasileira, que seria complementada por outra significativa iniciativa do Presidente, a criação da Companhia Vale do Rio Doce. Contando com aço e com minério, e futuramente com petróleo, teríamos as bases de uma economia industrial.

    Diferente do movimento tenentista que o apoiou na Revolução, Vargas tinha importantes compromissos sociais, tendo sido o maior exemplo desses a criação do salário mínimo, que enfureceu ainda mais as oligarquias rurais remanescentes e o empresariado urbano. Isso, contudo, deu-lhe a marca progressista que sobreviveu por décadas. As forças conservadoras, porém, preparavam-se para derrubá-lo em 1937. Ele foi mais rápido. Percebendo que não tinha sucessor capaz de enfrentá-las, antecipou-se e, com apoio do Exército, criou o Estado Novo.

    A guerra que se desenrolaria na Europa a partir de 1939 traria consequências políticas importantes para o País. O Brasil ditatorial, de forma pragmática, havia se aliado ao bloco democrático contra Hitler, e essa contradição, após a vitória dos democratas, deu margem a uma crescente mobilização política interna contra o antigo ditador, depois da democratização de 1945. A eleição para presidente do general Eurico Dutra, ministro da Guerra de Getúlio, muito influenciado pelos Estados Unidos, representou uma virada política importante em favor dos conservadores liberais. Dutra adotou medidas ultraconservadoras, no plano econômico, em confronto direto com o legado progressista de Vargas, inclusive esgotando as reservas externas do País acumuladas durante a Guerra.

    Entretanto, Getúlio voltou ao poder, pelo voto, em 1951. Os conservadores não aceitaram facilmente esse fato. Embora responsável pela maior revolução na infraestrutura econômica do País, de interesse concreto do empresariado e, sobretudo, do Brasil, temiam a possível volta a políticas sociais dele e de seu grupo, que atingiam seus interesses diretos. Disso resultou uma aliança improvável entre a UDN (União Democrática Nacional), liderada por um político extremamente carismático e de convicções democratas, como Carlos Lacerda, e as velhas oligarquias da UDN, agora urbanizadas em torno poder econômico crescente dos setores industrial e bancário.

    Crises políticas recorrentes, entre as quais a que levou Vargas ao suicídio, abalaram o País entre os anos 50 e 60, opondo conservadores e progressistas. Juscelino, o principal herdeiro de Getúlio, foi o último progressista a cumprir, com um notável programa de desenvolvimento, um mandato presidencial completo. Foi sucedido por Jânio e Jango, este também herdeiro de Vargas e progressista. Porém, foi atropelado pelo golpe militar de 1964. O golpe reverteu as pautas sociais de Getúlio e sua obsessão na defesa do Estado Nacional. Manteve, porém, o objetivo de fortalecer a infraestrutura econômica do País, à custa de um elevado endividamento externo.

    O período que sucedeu ao golpe caracterizou, também, o início do desmonte do Estado Nacional pelos conservadores em todos os seus aspectos. É aí que a política econômica desponta como instrumento de aliança do grande capital interno e externo, com o suporte das Forças Armadas, sob o pretexto inicial de afastar o risco comunista, mas, de fato, com o objetivo por parte das oligarquias civis dominantes de desconstrução dos mecanismos institucionais criados por Getúlio para fortalecer os trabalhadores e as classes desfavorecidas contra seus apetites desmedidos.

    É igualmente aí que surge o aristocrata neoliberal no Estado, conquistando postos de carreira privilegiada para destruí-lo por dentro, como fizeram, ainda no Governo Castelo Branco, seus principais ministros liberal-conservadores, Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões. Pelo Decreto-Lei 200, da época, foram eliminadas as precauções importantes de Getúlio contra as oligarquias rurais a fim de preservar o Estado de sua apropriação por grupos de interesse, introduzindo o princípio do concurso público para acesso e progressão nas carreiras da administração pública. O Decreto, como se sabe, passou depois a proteger apenas as carreiras superiores.

    Embaixo, na medida em que o processo de desmonte avançava, permitiu-se inclusive a terceirização de serviços públicos que deveriam ser prestados exclusivamente pelo Estado, transferindo-os a concessionários privados, com a inevitável consequência do aumento de seus custos para o Estado e de degradação de sua qualidade. Entretanto, são os programas de privatização, exigidos pelos Estados Unidos para a negociação da Dívida Externa conduzida pelo FMI, que representaram uma verdadeira expropriação do patrimônio público, construído com suor e sangue do cidadão brasileiro, o qual, uma vez privatizado, passou a render dividendos bilionários para particulares que não precisaram de investir previamente em sua construção um único centavo.

    Esses ativos seriam extremamente valiosos, hoje, como garantias do Estado para ter acesso a investimentos e créditos externos a fim de criar um programa abrangente para minimizar os efeitos e fazer a prevenção dos desastres climáticos extremos. Imagine se uma megaempresa como a Vale do Rio Doce, cujo controle foi vendido por menos de um terço do que valia, lançasse hoje, na condição de estatal, títulos verde, garantidos por seu imenso patrimônio, para absorver recursos externos e internos para o financiamento da preservação ambiental!

    Tudo isso tem sido parte da ação deliberada dos conservadores/neoliberais, apoiados do exterior, para enfraquecer o Estado Nacional e nos deixar à deriva no sistema internacional controlado pelas potências estrangeiras. Já o controle político da economia, dentro do País, garante a apropriação da renda nacional pelas classes dominantes internas e externas, a serviço das quais se alinham a grande mídia, a aristocracia dos servidores públicos que asseguram a si mesmos salários crescentes, e os políticos corruptos que, formando blocos como o Centrão, fazem de seus mandatos meios para assaltar os cofres públicos através de emendas parlamentares.

    No plano político, antes da redemocratização que se seguiu ao fim do regime ditatorial, houve, na campanha das Diretas Já para derrubá-lo, uma breve articulação entre progressistas e conservadores, estes ainda não chamados de neoliberais, para desmontar o controle hegemônico dos militares sobre o Estado nacional. Esses haviam atendido aos interesses das classes dominantes em dois sentidos contraditórios: primeiro, controlando os trabalhadores e as massas em suas reivindicações econômicas e socais; segundo, complementando o processo de construção da infraestrutura econômica iniciado por Vargas e pelos presidentes progressistas que haviam assumido seu legado, Juscelino Kubistchek e João Goulart.

    Na redemocratização, quando a vitória da aliança entre conservadores e progressistas deu ao PMDB, que a liderava, uma posição política hegemônica, o presidente Sarney, inicialmente cercado por um ministério conservador herdado do não menos conservador Tancredo Neves, que morreu antes de assumir a Presidência, ofereceu a Dilson Funaro o Ministério da Fazenda. Funaro, um empresário progressista de São Paulo, trouxe para o Governo, como seus principais assessores, Luiz Gonzaga Belluzzo e João Manoel Cardoso de Mello, destacados economistas progressistas da Unicamp.

    Dessa forma, com um toque político surpreendente e inesperado em sua biografia, o Presidente, que havia sido um dos próceres do PDS, partido que sucedeu à Arena da ditadura, cercou-se de um grupo de conselheiros políticos de vanguarda, que o levaram a decretar o Plano Cruzado, em 1985, a mais progressista tentativa de estabilização da economia entre as muitas que viriam depois. É verdade que o Plano Cruzado fracassou. Não por seus erros, porém. Nem pela falta de coragem de Sarney de baixá-lo, no início. Mas por sua falta de coragem posterior em não complementá-lo com uma moratória da Dívida Externa, que era uma condição fundamental para a estabilidade interna.

    O Plano Cruzado determinou um ponto de inflexão entre neoliberais e progressistas nos domínios econômico, social e político. E teve efeito direto na elaboração da Carta de 1988. A linha neoliberal assumiu seu caráter político em face da linha progressista, dissimulando sua posição real por trás da concordância com os dispositivos constitucionais que asseguram amplos direitos sociais à cidadania. Contudo, no plano econômico, revelou abertamente seu caráter conservador, em especial na política fiscal-monetária e na posterior Lei de Responsabilidade Fiscal, que, desde então, amarra o desenvolvimento sustentável do Brasil.

    Temos de considerar que não houve concretamente controle político no Brasil por parte de progressistas, a não ser por Vargas e seus sucessores aliados, e no breve momento acima assinalado de Sarney. Mesmo com Lula, antes e agora, há uma oscilação entre medidas progressistas e conservadoras, ora sociais, ora econômicas, essas em geral dominantes, por causa da forte influência da mídia controlada pelo grande capital nas decisões políticas do Estado. Ademais, somos uma democracia e, como toda democracia, temos de nos apoiar no voto popular. Mas o voto popular no Brasil é majoritariamente o voto do semianalfabeto, do evangélico ingênuo, do pobre comprado a dinheiro e, em outros meios, do voto suscetível à manipulação pelos ideólogos das classes dominantes.

    Diante disso, a política econômica que foi introduzida no País com o golpe de 64 reflete ainda hoje as características essenciais do neoliberalismo contra os progressistas. Da forma como está inscrita na Constituição de 88, e conforme foram sendo acrescentados depois dispositivos legais coerentes com ela, mantém, em nossa estrutura fiscal-monetária, seus fundamentos neoliberais. Nesse ponto, ela tem grande coerência econômica, pois está sujeita à hegemonia conservadora apoiada pela grande mídia e sustentada pelo grande capital e por uma maioria parlamentar corrupta no Congresso, contra a qual os progressistas não têm força para se contrapor.

    A única forma de se romper esse círculo neoliberal de ferro em torno das políticas econômicas que mantêm o Brasil prisioneiro das forças conservadoras e regressivas, que impedem seu desenvolvimento sustentável a altas taxas, é alguma força externa que, por ventura, possa desafiá-lo a partir de fatos incontornáveis da realidade objetiva. Poderia ser, por exemplo, uma grande crise internacional, diante da qual teríamos de reagir a qualquer custo. Ou pode ser as crises causadas pelas mudanças climáticas, que nos colocam o desafio da própria sobrevivência, exigindo, para confrontá-las, a reconstrução do Estado Nacional nos termos de Getúlio Vargas.

    Entretanto, como o neoliberalismo está incrustado na consciência de grande parte das elites financeiras brasileiras, inclusive altos funcionários públicos, os quais comandam o aparelho midiático, qualquer tentativa de escapar de seu “quadrado” esbarra em terríveis resistências. Entre essas destacam-se as chantagens segundo as quais, se tentarmos evitar as políticas neoliberais, o Brasil enfrentaria uma corrida cambial desastrosa. Isso se aplica sobretudo à defesa da política fiscal e monetária, sobretudo dessa última, que sustenta uma moeda financeira e taxas de juros extravagantes, inexistentes em qualquer outra parte do mundo, e que garantem transferências imensas de renda de pobres para ricos.

    Na verdade, temos uma posição favorável em reservas internacionais para funcionar como garantias de empréstimos externos para investimentos internos em máquinas e equipamentos necessários para o desenvolvimento sustentável da indústria (US$ 355 bilhões), e recursos naturais abundantes para que o País possa progredir. A partir desses recursos, e com uma prévia e profunda mudança em sua política econômica, superando divergências ideológicas, o País poderia entrar numa fase de desenvolvimento a altas taxas. Isso implicaria, na era dos desastres climáticos extremos, voltar ao Estado máximo da era getulista para dar suporte ao que virá a ser exigido pela Sociedade a fim de garantir a sua segurança e sobrevivência.

    Este texto é o quarto de uma série de cinco que estão sendo publicados sobre as mudanças na política econômica exigidas na era dos desastres climáticos extremos, e foca o imperativo de fortalecer o Estado para enfrentar os prejuízos deles decorrentes e cuidar de sua prevenção.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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