O Estado salva
"O socorro do Estado não se faz presente apenas em eventos de calamidade extremos", escreve José Guimarães
Os prejuízos são enormes, mas a conclusão é de que sem a presença do Estado não haveria socorro à população nem reconstrução do Rio Grande do Sul. É lamentável que, nesse momento dramático por que passa o povo gaúcho, devastado por um evento climático extremo, forças políticas negacionistas, antidemocráticas, criem ondas de desinformação, na tentativa de politizar ideologicamente a tragédia e suas vítimas.
Negam a presença do governo federal, que está utilizando todos os recursos estatais disponíveis, num esforço conjunto com o governador Eduardo Leite mais os prefeitos das regiões afetadas, para salvar vidas, prestar toda a assistência necessária às pessoas atingidas pela intempérie e reconstruir o Estado. Em contraposição a isso, pessoas de todos os estados da Federação estão demonstrando seus valores mais sublimes: solidariedade e empatia.
O investimento total do governo federal em apoio ao estado do Rio Grande do Sul chegou a R$ 60,7 bilhões, podendo aumentar, a depender da necessidade. Foram mobilizados 39,5 mil profissionais para as funções de resgate e assistência às ações emergenciais; 8,7 mil equipamentos; um Navio Multipropósito, da Marinha, para assistência e atendimento de saúde; 10 hospitais de campanha; 25 mil toneladas de medicamentos; 871 toneladas de alimentos entregues ou em trânsito; 2,7 mil toneladas de doações transportadas pelos Correios; 9 mil botijões de gás para cozinhas comunitárias; 328 mil clientes com energia reestabelecida; 384 municípios com internet restabelecida; suspensão da dívida do Estado com a União, pelo Governo Federal, por 3 anos, perfazendo um total de R$ 27 bilhões. Suspensão do pagamento, R$ 11 bilhões. Juros e correção, R$ 12 bilhões; Auxílio Reconstrução, pagamento de benefício no valor de R$ 5.100,00 mensais para todas as famílias afetadas pelas chuvas, valor total R$ 1,2 bilhão; unificação do Bolsa Família para 620 mil beneficiários, prorrogável enquanto necessário; desbloqueio de todas as rodovias federais que cortam o Estado; mapeamento das necessidades habitacionais nos municípios; renegociação de dívidas de empresas, e muitas outras medidas de assistência e de apoio à reconstrução econômica.
Tendo em vista os alertas das comunidades científicas, os eventos climáticos extremos entraram na pauta de decisões estratégicas dos governos em todo o mundo. Quem deve nos salvar das consequências das catástrofes climáticas? O Estado. Um dos exemplos recentes é a reconstrução de Nova Orleans, devastada pelo furacão Katrina, que matou mais de 1.800 pessoas em várias cidades. Imediatamente, o Congresso dos Estados Unidos aprovou, em regime de urgência, a destinação de US$ 20 bilhões, disponibilizou todo o aparato estatal disponível de defesa civil e assistência, para a população atingida e para a reconstrução. Em seguida, mais ajuda foi dada ao longo de duas décadas, para que o Estado se reerguesse.
Todavia, o socorro do Estado não se faz presente apenas em eventos de calamidade extremos. A Crise de 1929, por exemplo, foi um verdadeiro furação. Levou de roldão as economias de todos os continentes. Derreteu a economia dos Estados Unidos, o PIB nominal caiu aproximadamente 50%, o desemprego, que era 4% chegou a 27%, faliram 110 mil empresas e mais de 4 mil bancos, a pobreza e a fome chegaram a níveis alarmantes no campo e nas cidades. Na Europa, o desemprego chegou a índices assustadores. Grã-Bretanha: 23%, Bélgica: 23%, Suécia: 24%, Áustria: 29%, Noruega: 31%, Dinamarca: 32%, Alemanha: 44%. Quem salvou os Estados Unidos e o mundo da grande depressão? O Estado. O então presidente Franklin Roosevelt aprovou um pacote de medidas que colocou em xeque as ideias ultraliberais e demonstrou que sem o Estado não haveria salvação. Regulamentou o sistema financeiro e a produção, criou o programa New Deal com forte investimento na construção civil e em outros setores, reergueu a economia e resgatou a dignidade do povo com emprego e renda. Não se pode esquecer que a devastação da economia europeia foi o berço do nazifascismo.
Desde a Segunda Guerra Mundial, a ordem econômica global acelerou a construção e a destruição de coisas belas. Não se pode negar o desenvolvimento científico e tecnológico em todas as áreas onde o pensamento e a criatividade humana foram capazes de chegar, nem o Estado de bem-estar social que garante os melhores índices de desenvolvimento humano na Europa.
Também não se pode negar a ultra concentração da riqueza nas mãos de poucos, a desigualdade alargando o vão entre classes sociais, a pobreza e a fome se alastrando pelos continentes, as migrações forçadas, os recentes eventos climáticos extremos, as guerras entre grandes potências rondando o mundo à beira do colapso, e o esforço de governos comprometidos com a democracia e o desenvolvimento, para distribuir a renda e assegurar direitos humanos. Assim como não se pode negar os sinais de desagregação da velha ordem.
A emergência da China, como a maior potência fabril do planeta, resultada de uma economia planejada pelo Estado, também colocou em xeque o modelo neoliberal, ideologicamente reciclado na era Reagan/Tatcher, centrado no “Estado mínimo” e no “mercado”, como panaceias para todos os problemas da humanidade.
Levado ao maior reduto do poder financeiro do mundo, numa reunião do (Tesouro dos Estados Unidos, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional), o projeto neoliberal foi reciclado no chamado “Consenso de Washington”, em 1989, tendo em vista a recente gambiarra da internet, que possibilitou a integração de bolsas de valores de todo o mundo.
Foi imposto aos países periféricos, principalmente os mais endividados no pico da crise do petróleo, em 1971, um conjunto de regras de subordinação às agências internacionais dominadas pelas nações centrais. Uma das mais draconianas foi a desregulamentação do sistema financeiro, para que o capital pudesse circular pelas praças do mundo, a fim de realizar negócios mais lucrativos com as altas taxas de juros de países dependentes.
Mas o projeto do “Consenso de Washington” não tardou causar a mais grave crise econômica, desde a grande depressão de 1929. Submergiu na bolha de especulação financeira do subprime, em 2008, nos Estados Unidos, epicentro da debancle. Mais uma vez, a crise causou estragos em toda a economia mundial. Quem salvou os Estados Unidos? O Estado. Com dinheiro do contribuinte. Cinco anos depois, um estudo do Federal Reserve de Dallas calculou os custos da crise de 2008 e chegou ao valor astronômico de US$ 14 trilhões, com todas as regalias dadas aos bancos.
O projeto neoliberal, do “Consenso de Washington”, que insiste em prevalecer, agora agarrado à extrema direita no mundo com seu discurso manipulador, tem como um dos principais pilares a redução do Estado ao mínimo, como se fosse um inimigo da economia, com privatização de empresas estatais estratégicas para o desenvolvimento e de serviços públicos: energia, telecomunicações, saneamento, estradas, portos, aeroportos, bancos públicos, enfim, setores para grandes negócios. Reforma fiscal, desde que reduza impostos das grandes empresas, principalmente as transnacionais, a fim de assegurar suas margens de lucro. Evidentemente, redução de tributos e isenções fiscais, quando severa, asfixia o Estado. E mais, a bertura comercial com redução de tarifas alfandegárias, a fim de ampliar exportações e importações; restrição a investimentos do Estado; demissão em massa de funcionários públicos; terceirização do maior número possível de serviços; abolição de leis trabalhistas, precarização do trabalho, redução do valor real dos salários; e corte de investimentos públicos para garantir o pagamento da dívida pública.
Mas, o que se viu nas últimas décadas dos anos 1990 e dos anos 2000, a chamada “era do Consenso de Washington”, foi o agravamento da crise e a insistente sustentação do discurso neoliberal na imprensa e nas bolhas de redes sociais, completamente em dissonância com a realidade econômica global. Por exemplo, segundo relatório do FMI, a participação do PIB dos Estados Unidos no PIB mundial, caiu de 23% em 1980, para pouco acima de 15% em 2015, e ficou abaixo de 15% em 2020. Isso demonstra que a cada ano o peso da influência da economia norte-americana fica menor.
Segundo dados da revista The Economist, a predominância do dólar está ameaçada. Os fluxos de capitais globais entraram numa fase de diversificação monetária nos investimentos e no comércio internacional. As baixas taxas de crescimento econômico tendem a ser o novo normal e o baixo crescimento da renda per capita interrompe a mobilidade social ascendente do passado.
Quando o mundo ainda se recuperava do baque da crise econômica de 2008, num momento de baixa dos investimentos, surgiu a pandemia do Covid-19, deixando graves sequelas na economia mundial. A revista The Economist, a mais influente porta-voz da “Era do Consenso de Washington”, não esconde seu desalento em relação ao desmoronamento da nova ordem. A revista estima as perdas, apenas em 2020 e 2021, em US$ 10,3 trilhões, o que equivale a cerca de 12% do PIB global. Quem está salvando os países da crise pós-pandemia? O Estado. Todos os países estão sendo socorridos com investimentos estatais.
Em 2021, o governo Joe Biden sancionou uma lei destinando mais de US$ 1 trilhão para investimentos na recuperação econômica dos Estados Unidos. Em 2022, o Congresso aprovou mais US$ 858 bilhões. Em 2021, a União Europeia destinou US$ 300 bilhões para investimentos em cinco áreas estratégicas: digital, clima, energia, transporte e saúde. A China, US$ 1,5 trilhão; Reino Unido, 650 bilhões de libras; Alemanha, US$ 190 bilhões. O governo Lula planejou investimentos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), da ordem de R$ 1,7 trilhão na reconstrução do país. Na área social e na infraestrutura, em parceria com o setor privado. Segundo o Gobal Infrastructure Hub, o mundo precisará de US$ 82 trilhões em investimentos até 2040.
Por outro lado, as instituições que sustentam a velha ordem estão perdendo credibilidade. A Organização Mundial do Comércio, o FMI, o Conselho de Segurança da ONU, perderam seu protagonismo. Assim como a Corte Internacional de Justiça, que se rendeu ao assédio político. Ou seja, a velha ordem e suas instituições estão ruindo e não consegue mais viver sem o Estado, mas o discurso neoliberal, sem nenhum compromisso com a verdade, continua.
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