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    Eugênio Trivinho

    Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

    11 artigos

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    O ethos irredutível da resistência

    Contribuição axiológica a convicções políticas indispensáveis em tempos de desvario bizantino da extrema direita no Brasil | Alegoria e evocação

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    Para Silvia Gaban

    I

    O pensamento de oposição política, cultural e ética às tendências do status quo no Brasil acumulou, nos últimos anos, inúmeras vicissitudes e paradoxos.

    Em particular, após 2018, os esforços para afastar o hóspede do Palácio do Planalto tornaram-se tão cruciais quanto lidar com o seu considerável espólio institucional e armado – militares de várias patentes, estratos fardados subalternos (inclusive nas Polícias Federal, Militar e Civil), agrupamentos milicianos, asseclas palacianos e parlamentares, além de milhões de fundamentalistas afocinhados, seguidores a tiracolo e simpatizantes úteis.

    A cabeça da bufonaria é tão relevante quanto a rede que a sustenta (e com ela se diverte), sem preocupação programática e consistente com a posteridade brasileira. O país pode continuar sem projeto de bem-estar coletivo a médio e longo prazos, desde que nenhuma dialética perturbadora impeça a reprodução social-histórica dos privilégios correntes. Esse feixe multilateral de poder – extensa rede belicocêntrica e odienta que a visão republicana não se cansa de tomar como aviltante, em gume tanto legal quanto paraestatal – abarca empresários graúdos ultraconservadores, "classes médias" ambivalentes e oportunistas, fantasmas concretos do tal "mercado", frações majoritárias do sistema financeiro e media de massa hegemónicos e corporativos.

    Afastar a onça doméstica da principal cadeira da República projeta para o assento ganâncias simuladas – um saliente problema político (fardado ou não) que, seja como for, não invalida a primeira ação, digamos, sociozoológica (de ejeção executiva) – para valorar o humor como crítica à gravidade histórica da situação. Sua motivação lateja justiça axiológica: renova, na urgência, uma questão de honra – ética em tudo: justa e necessária – em prol da salubridade republicana e democrática, das liberdades civis e dos direitos sociais no Brasil. Seu cumprimento contribui para a preservação mínima da saúde constitucional possível na região geopolítica inteira da América Latina.

    Pelo tamanho do estrago causado nos últimos dois anos (em âmbito material, simbólico e imaginário da sociedade) pela extrema direita bolsonarista (civil e militar), a mencionada batalha de oposição – hoje enquadrada por osmose no desvario de uma "guerra cultural" aplanada desde Richmond, Estados Unidos – deve se estender por todas as décadas do século. Escolas civis estão sendo militarizadas aos poucos. Cada criança educada no bizantino arco positivista da segurança nacional (interna como externa) representa de duas a sete décadas de influência direta nas relações sociais (a partir dos laços familiares). Os desdobramentos desse obtuso processo são imprevisíveis.

    Serpentina, progressiva e silenciosa, tal reprodução social valida preocupações intensas com as bases econômicas e políticas do neofascismo especialmente no estrato das mentalidades tuteladas pelo senso comum, reféns vulneráveis – jamais vítimas – da espiral populista de fake news, mentiras estapafúrdias e promessas enganadoras.

    II

    A questão implica, obviamente, a condição pandêmica atual.

    A criminosa banalização da morte pelo bolsonarismo – aliás, na esteira de banalização similar pela produção mediática de massa há décadas – anestesia as dores psicológicas de qualquer medo virótico.

    O negacionismo contraocidental, que a isso se soma como corruptela anticientífica lastimável, cauciona tanto a autoexposição desproblematizada à COVID-19 – "existe o vírus?" –, quanto o genocídio alheio, sem remorso ou culpa. Para todos os efeitos, não há "exposição" nem "genocídio" – há, antes, "a vida como ela é". Tudo o mais, para essa extrema direita, é "ideologia" – o "verdadeiro problema", conforme papagaiam ao modo bovídeo, "a ser erradicado". Para ficar apenas no trecho histórico da modernidade política, somente a inacreditável inteligência de culto a proto-führer (no plural), típica de homo quadrupedis, pode supor que algo assim como "a vida como ela é" não encerra ideologia.

    O caráter autoritário dessa velha confusão naturalizadora (de si própria, antes de tudo, e) do processo social inteiro se evidencia na arrogância antiliberal com que risca o estilete à queima-roupa do espaço individual alheio: a dissuasão, ignara desde os pressupostos, estimula aglomerações macabras que, cedo ou tarde, podem alcançar quem, por sanidade protetiva, considera descuidos higiênicos grosseiros tão irresponsáveis quanto assassinos.

    III

    Épocas similares à nossa guardam testemunhos indeléveis: aqueles que, eternamente firmes sobre suas pedras tumulares, padeceram das mesmas dores, no diverso segmento político de esquerda, não cessam de solicitar que estratégias cerebrinas caminhem solidárias com indignações cardíacas, ambas mescladas em intensidade uníssona na longa estrada adiante.

    No miolo dessa frequência coesa (a começar pelo âmbito da própria individualidade), qualquer sentimento de impotência ressoa, no fundo e per se, como autoanulatório. Faz apenas os rigores do aparente: onde há uma pulsão singular de recalcitrância qualificada já existe trabalho político crucial – e ninguém, querendo passar por cima dele, sairá impune da leviandade. A latência dessa pulsão equivale à dinâmica do pensar e do sentir: eles já são um ethos no mundo e, portanto, também um saber-fazer – um saber-resistir, fronteira inultrapassável. O eixo desse pomo axiomático tem escala inimaginável: dezenas de milhões de pessoas vivem as mesmas circunstâncias social-históricas – base fundamental da barreira de proteção contra qualquer projeto de devastação ilimitada. Nem as duas ditaduras do período republicano destruíram essa fronteira no Brasil. No coração do povo, sobretudo se ou quando indignado, ela é indevassável. Os dois períodos escabrosos infelicitaram tanto e por tanto tempo o país que, sem êxito integral no delírio de "fechamento" autoritário e asséptico, os sátrapas tropicais tiveram que devolver o ouro civil assacado e bater em debandada (na primeira, de forma repentina e trágica; na segunda, paulatina e seca), como saída honrosa no quadro de uma ambiguidade indecorosa e irredimível. A vasta horda se refez e re-emergiu, é verdade, com orgulho mais arrogante e até vingativo. O ciclo atual cede ao dissabor indigesto. A roda-viva, porém, na fortuna do acaso, não desmente o verbete: como ciclo, tudo tende a passar novamente, dure o que durar, anos ou décadas. O tempo histórico exige de cada qual, se dignificado no incômodo individual profundo, que a respiração se redobre sobre o próprio fôlego, para aprumar a paciência na escala do ritmo requerido.

    IV

    Notícias mais recentes e espalhadas dão conta de que rasgos no campo da direita emparelham com o caráter fragmentário das esquerdas. O espectro reacionário, no entanto, tem levado a melhor atualmente – em processos eleitorais, em ambientes parlamentares, nas redes sociais e, obviamente, na influência sobre o governo federal e sobre as tendências estaduais e municipais. O desvario bolsonarista, que sempre exasperou as mesmas rotinas nesse largo estrato conservador, manipulando decisões e rumos com factoides de robótica online, insuflada por fake news, está nas mãos chantageadoras do algar camarário conhecido como "Centrão". A flacidez fatal dos joelhos palacianos se deu após o comprometimento de verba bilionária do erário público para agradar fidelidades nulas e comprar as mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.O nepotismo, o fisiologismo e o clientelismo dessa direita-leilão, desprovida de ideologia (como forma de ter uma), tanto quanto a paciência estratégica da farda de alta patente e os graves processos judiciais contra a família-mor miliciana, podem engolir as garras semiatiçadas da onça-pater, apavonado no vão desejo de poderes ilimitados. Um entendimento extenso da concepção maquiavélica da política lembra, na secura da obviedade histórica, que inexiste guilhotina que prescinda de respectivas sobras. A lógica da chantagem do Centrão sequer permitiu que o Brasil fizesse decolar uma social-democracia autêntica e duradoura, ancorada num Estado de Bem-Estar Social à altura. As poucas experiências políticas realizadas nesse sentido, no diapasão conservador de um precário presidencialismo de coalizão, decaíram, de uma forma ou outra, em simulação republicana. O Partido dos Trabalhadores (PT), sob a necessidade de amplas alianças federais para garantir a governabilidade do país, lutou, como exceção à regra, para escapar, o quanto pôde, do ramerrão pragmático de barganhas as mais sórdidas (de políticos a empresários), bem como para avançar na consolidação do modelo de República prevista na Constituição 1988. A sapiência proverbial reza limite para tudo: embora com sucesso incomparável em matéria de políticas públicas, de notável exemplo internacional, o partido não deixou de amargar vicissitudes intragáveis e intransponíveis – que dirá o conjunto de experiências presidenciais do espectro nativo e oportunista de centro-direita. Mal matematizando, os compêndios de interpretação histórica, mesmo os selados por mãos independentes, não conseguirão reunir sequer 10% de informação sobre o viscoso húmus que nutre os tugúrios consuetudinários da vileza institucionalizada.

    Enquanto o campo político das esquerdas não orquestrar, em operação uníssona com forças aliadas e confiáveis ao centro, a ruptura da hegemonia chantageadora da camarilha reacionária e venal que vitima o país, as vicissitudes convenientes de governança nacional continuarão arruinando as tentativas de salto republicano, em total desfavor das camadas pobres e segregadas da população.

    V

    O excurso anterior patenteia, reposiciona e otimiza o destino irredutível das instâncias sociais e subjetividades de contradito às tendências do status quo. Como se sabe, a colaboração política, cultural e ética para o pensamento de oposição, doravante cachimbado compulsoriamente no meio da densa fumaceira da extrema direita, pode assumir diversos matizes. Um deles, em especial, é justamente nunca abrir mão do princípio da resistência – vale dizer, o jamais ser condutor da iniquidade, de seja qual viés autoritário for, neofascista ou quejando. Essa recalcitrância qualificada, manifesta em ações agora inteiramente rastreadas por tecnologias e redes digitais a serviço do próprio status quo, soma importante fio de meada para épocas vindouras. Não sem paradoxo axiológico, tal resistência deixa rastros e lastros espalhados na direção contrária. Por certo, ela pode ser insuficiente do ponto de vista de uma articulação e mobilização programática e integrada, mas já é, em seu modus vivendi, um fazer político, ali onde nenhum poder totalitário consegue tocar. O restante equivale, por assim dizer, a consequências – essenciais por igual, expressas no jogo bruto e trivial, institucional ou não, das interações disputativas de poder nas relações políticas, culturais e sociais, nas ruas e nas redes digitais, dentro e fora dos partidos.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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