O filme “Retratos fantasmas” de Kleber Mendonça Filho
Retratos Fantasmas, escolhido para representar o Brasil na disputa por uma vaga no Oscar 2024, é digno e bom.
Vi há pouco na Netflix o documentário de Kleber Mendonça Filho. E quando digo documentário, quero apenas dizer: documentário do sentimento.
Retratos Fantasmas, escolhido para representar o Brasil na disputa por uma vaga no Oscar 2024 é digno e bom. Escrevo agora sob o impacto das imagens, e tento escrever como se não fosse um recifense de Água Fria, que pulou no sofá ao ver o que restou do Cine Império, hoje Feira Nova, sem a antiga fachada do cinema. Pois a gente ama até a imagem perdida. Ama o que se foi, ama o que se recupera. Antes dos versos de Drummond
“Amar o perdido
deixa confundido
este coração”,
deveria lembrar Cecília Meireles
“Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou retida
a minha face?”
Pois devo falar como se não fosse um recifense. Como se fosse um extraterrestre que desceu em Nova York. E por isso digo.
O filme recupera tesouros de imagens sobre as quais pisamos, muitas vezes, como se fôssemos novos bárbaros. Às vezes, caminho pela cidade e vejo vários pontos da história dela. “Mas em toda cidade é assim”, me responderia o extraterrestre humanizado. Então, lhe respondo que adoro caminhar pelo Bairro do Recife, pois quando vejo os trilhos do trem, lembro de ter alcançado esses trilhos na minha infância. Para mim, as ruas e as paredes da cidade falam. Muitas vezes, sinto ver os rostos dos jovens que vi. Enquanto caminho, percebo as gerações se repetirem em um outro modo de ser. “Mas isso é de todas as cidades”, me responde o ET.
Então me recolho e lhe devolvo aquela lição inesquecível de Tolstói: “Se queres ser universal, pinta a tua aldeia” . Mas é preciso ser artista, não é? Está explicado. Essa é a razão pela qual o filme de Kleber Mendonça Filho, sendo tão particular do Recife, da nossa amada e rebelde Recife, é universal. Mais de uma pessoa, crítico, jornalista, em todo o mundo se vê nas imagens de “Retratos Fantasmas”. Ele não pinta só um cinema perdido, queimado em incêndio. (No Arruda, lembro agora, havia um “cinema queimado” pela população na segunda guerra mundial, ao saber que seu dono era alemão) Kleber pinta o que lhe fala ao coração do centro do Recife que tanto amou e continua a amar, por mais cosmopolita venha a ser em suas andanças por festivais e mundo. Por mais que o centro do Recife – aquilo que chamávamos de “a cidade”, ou o “centro da cidade”, esteja deserto. Ah, coisas assim, da cidade nua, me lembram “Cidade Vazia” de Baden Powell:
Ninguém recebe mais idade em vão. Há ganhos e perdas nas rugas. Mas na arte os tempos vividos são um passaporte para uma nova pele. Quero dizer, para não escrever bobagem, para não me deixar amolecer como uma velhinha ao ouvir o “Direito de Nascer” no rádio. Isto é, amigos e amigas.
Já na primeira parte, sobre o apartamento da infância de Kleber Mendonça no Setúbal, ele é biográfico, autobiográfico, sem ser mesquinho e irrelevante do seu umbigo, do seu entorno. É bela a recuperação do cachorro que não existe mais a latir na vizinhança do apartamento. “Mas até nisso, senhor?”, me pergunta incrédulo o ET. Um cachorro! Um reles cachorro, que nem dele era. Mas que fez seu, da sua memória.
Entramos então no cerne, nos cinemas que não existem mais. Eu pulei do sofá, repito, ao ver o Cine Império, que teve destruída a fachada para dar lugar a um Feira Nova. O cinema era assim.
Mas agora é isto.
E vamos para o centro do Recife. Para nada dizer, o filme valeria como uma grande história com a entrevista de seu Alexandre, o projetista, ou projecionista, do Art Palácio.
(Lembro que “assistimos” a alguns filmes a partir do quem-me-quer, mureta onde sentávamos à margem do Capibaribe, de frente para o cinema e para os desejos)
As imagens de Retratos Fantasmas são pessoas dentro e fora dos cinemas. São pessoas nos filmes, são pessoas nas ruas, nos prédios, são pessoas no cimento, nas fachadas. E aqui, atinjo o que “Retratos Fantasmas” me revelou: Kleber Mendonça Filho é um historiador do sentimento. Quando o vemos mover-se com propriedade entre arquivos de jornais no Arquivo Público, sentimos um gosto de fruta madura do Recife. Eu também já estive ali por outros motivos, ao recuperar a história de Soledad Barrett, e para o romance “A mais longa duração da juventude”. Eu sei o que aqueles arquivos falam, eu sei como eles respondem a quem os procura com uma história no coração. As pessoas pensam que tudo é memória. É quase tudo. Mas a memória anda e se move ao contato sensual de páginas e fotos dos arquivos. Sensualidade no pó? Não! Sensualidade que passa pelo pó como Cristo sobre as ondas do mar.
E aqui, próximo do fim, ou do intervalo para a próxima sessão, devo dizer o que notei no filme (os meus dedos se dirigem para a palavra “file”, arquivo): Kleber Mendonça Filho faz do acidente uma criação. Sabem o que é isso? É ter o espírito ágil, pronto, para captar o que não estava no roteiro. Um salto. É recuperar o imprevisível. E fazer disso uma nova organicidade da obra começada. Os jazzistas fazem assim. Mas de modo mais claro para o cinema, Charles Chaplin fazia isso, a dupla O Gordo e o Magro fazia isso. Mas eles não eram do Recife. Eles não estavam neste tempo de 2023, 1970, 1980, 1930, 1940. Eles “apenas” eram artistas de gênio. Apenas, A penas. A pensar e agir como numa luta de boxe de Luzes da Cidade.
Cada um é gênio à sua maneira. Assistam a Retratos Fantasmas e embarquem rumo à sua cidade.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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