O genial Lan
Se vivo, Lan faria 99 anos. O cartunista italiano era apaixonado pela cidade, pela Portela, pelo Flamengo e, principalmente, pelas nossas mulatas
O cartunista Jaguar sempre admitiu que não sabia fazer caricaturas de pessoas. Quando tinha que fazer a caricatura do Carlos Lacerda, por exemplo, usava a ideia do Lan.
Eu também comecei copiando o Lan. Em um dos encontros que tivemos - quando ele fez 80 anos -, na praia do Leme, disse ao mestre que minha primeira caricatura - do jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues - publicada num jornalzinho do SESI, era uma cópia descarada do seu traço. Ele sorriu e disse: “Começou bem”.
Lanfranco Aldo Ricardo Vaselli Cortellini Rossi Rossini (ufa!), ou simplesmente Lan, é um cartunista italiano, radicado no Rio de Janeiro, apaixonado pela cidade, pela Portela, pelo Flamengo - desde que viu Baltazar, o cabecinha de ouro, fazer um gol de placa - e, principalmente, pelas nossas mulatas.
Em 1945, o caricaturista Lan - ele não gosta do anglicismo cartunista - iniciou nos jornais “Mundo Uruguaio” e “El País” a carreira que o tornaria famoso internacionalmente.
Otélo Caçador, num papo entre eu, ele e os também cartunistas, Jaguar, Ykenga, Ferreth e Leonardo, no bar Degrau, no Leblon, me disse que conheceu Lan em 1951, em Buenos Aires, onde ele trabalhava num jornal chamado “Notícias Gráficas”. Segundo Otélo, uma conversa entre os dois sobre o Rio, mulatas e carnaval fez o chargista decidir vir morar no Brasil, fixando-se na Cidade Maravilhosa.
Lan veio para o Rio em 1952. No Rio, deslumbrou-se com a alegria do povo, com o carnaval e com as mulheres cariocas. Em especial, as mulatas.
Logo que chegou, Samuel Wainer - que sabia tudo de jornalismo - dono do “Ùltima Hora” o convidou para trabalhar no jornal.
No “Última Hora”, criou o desenho mais icônico de sua carreira: o corvo que simbolizava o jornalista Carlos Lacerda, desafeto de Samuel Wainer.
“Pra mim, na verdade, é o pior desenho que já fiz na vida, por causa da pressa. O Samuel me pediu o desenho no fim do expediente. Já estava de saída da redação quando o Samuel me chamou, apontou para uma foto do Carlos Lacerda e disse: Eu quero uma charge sobre esse sacana.
Fiz o corvo porque tinha pressa. Na verdade, eu queria fazer um urubu. Mas eu não sabia desenhar um urubu; tinha que ir ao arquivo para ver como era um urubu. Como eu tinha pressa, resolvi fazer o corvo.
Foi assim que nasceu “o corvo”, epíteto que Lacerda carregaria por toda a vida.
Depois do “Última Hora”, o caricaturista passou pelo “O Globo” e depois pelo “Jornal do Brasil”, onde permaneceu por 33 anos.
Lan, além de grande artista, era querido pelos jornalistas e intelectuais da época. Nos fins de tarde, frequentava o bar Villariño com Rubem Braga, Haroldo Costa, Paulo Mendes Campos, Otélo Caçador, Caymmi, Fernando Pamplona, Sérgio Porto, entre outros.
Era um italiano com alma carioca. Certa vez, acompanhado de um jornalista do “Ùltima Hora”, subiu o morro do Salgueiro carregando um gravador que pesava quase 20 quilos para fazer uma matéria sobre o samba no morro. Foram recebidos pelo Casemiro Calça Larga, sambista famoso no morro, com um litro de Conhaque de Alcatrão São João da Barra, nas mãos. Quarenta graus, na sombra. Lan tomou um porre tão grande que quase não consegue descer o morro com o monstruoso gravador.
Por causa da violência, abandonou o carnaval e a noite carioca: “A gente zanzava pelas ruas, até de madrugada, sem medo de assalto. Hoje não dá mais.
Estamos confinados numa prisão domiciliar.”
Aos 94 anos, completados esse ano, Lan continua desenhando suas mulatas, mas já não faz mais charges políticas: “Se eu continuasse desenhando charges políticas, infelizmente me expulsariam do país. Nas charges, eu esculhambava os dois lados. Era um terrorista light!”
Casado desde 1960 com a ex-passista da Portela, Olívia Marinho, hoje Lan passa os dias no sítio, em Pedro do Rio, município de Petrópolis, onde ouve seus discos, bebe duas garrafas de vinho por dia e recebe a visita de amigos como Ziraldo, Jaguar e Ique.
*Lan faleceu em 4 de novembro de 2020 aos 95 anos, em Pedro do Rio, Petrópolis, Rio de Janeiro.
*Crônica publicada originalmente nos jornais O Dia e O Folha de Minas, em 2020.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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