O herói pedetista da luta contra o racismo
Que líderes como ele continuem inspirando gerações. Que a lei que leva seu nome seja cada vez mais cumprida enquanto houver racismo – e que chegue logo o dia em que ela se tornará obsoleta porque não haverá mais necessidade de ser usada
Se hoje o racismo é crime imprescritível e inafiançável; se é proibido, em razão da cor, impedir o acesso de pessoas ao elevador social e a entrada em clubes, estabelecimentos comerciais e instituições de ensino; se é vedado dificultar o casamento ou a convivência familiar e social por causa da raça; se é uma violação penal negar emprego ou pagar salários menores por preconceito – tudo isso deve-se à luta de um pedetista, o grande Carlos Alberto Caó de Oliveira.
Amanhã, 20 de dezembro, ele faria 79 anos. Caó nos deixou precocemente há quase três anos, mas seu legado é imenso. Para mim e para muitos, ele é fonte de inspiração. Neste dia em que completo 68 anos – apenas um dia antes do seu aniversário –, depois de um ano de muitas e intensas batalhas, é momento de refletir sobre os desafios futuros para o país e reverenciar quem veio antes e deixou tanto. Nos tempos irracionais que vivemos, em que a existência do racismo, uma das principais chagas da humanidade, ainda é sistematicamente negada até por autoridades e instituições que deveriam combatê-lo, esta homenagem se faz especialmente necessária.
No Brasil, os homicídios de negros aumentaram 11,5% entre 2008 e 2018, enquanto os assassinatos de não negros diminuíram 12,9% no mesmo período, segundo o Atlas da Violência 2020. A cada 100 pessoas assassinadas em 2017, 75 eram negras, mostra o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. De acordo com o IBGE, dos 13,5 milhões de pessoas que viviam em extrema pobreza em 2018, 75% eram pretos ou pardos; a taxa de analfabetismo entre os negros maiores de 15 anos (9,1%) foi mais que o dobro da taxa dos brancos (3,9%); a taxa de desocupação entre os negros (14,1%) também foi bem maior que a dos brancos (9,5%). Um levantamento do Instituto Ethos revela que os pardos ocupam apenas 4,9% das cadeiras nos Conselhos de Administração das 500 maiores empresas do Brasil – não há nenhum preto nessas posições. Os negros também morrem mais de Covid-19 no Brasil: um estudo da PUC-Rio demonstrou que, até maio, quase 55% dos pacientes graves negros morreram, enquanto entre os brancos esse percentual foi de 38%. A probabilidade de um paciente preto ou pardo analfabeto morrer da doença (76%) é quase quatro vezes maior do que a de um paciente branco com nível superior (19,6%), indica o estudo.
O racismo estrutural é um fato, não é questão de opinião.
Contra esse sistema opressor e profundamente desigual, levantou-se desde cedo Carlos Alberto Oliveira dos Santos, que nasceu em Salvador, filho de uma costureira e um marceneiro. Jovem, militou no movimento estudantil, foi perseguido pela ditadura e chegou a ficar seis meses preso. Formou-se em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar como jornalista, profissão que exerceu com destaque em grandes veículos de comunicação.
Caó também se envolveu com a luta sindical, sendo eleito presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro em 1978 e reeleito em 1981. No mesmo ano, foi convidado por Leonel Brizola a se filiar ao PDT.
Em 1983, foi nomeado secretário de Trabalho e Habitação do primeiro governo Brizola. No cargo, foi responsável pelo programa Cada Família, Um Lote, que regularizou mais de 30 mil lotes de favelas e ocupações, e pela instalação do plano inclinado (bondinho) nas favelas do Pavão Pavãozinho e Cantagalo, melhorando a vida de milhares de pessoas das comunidades.
Na eleição para deputado federal em 1986, foi eleito suplente e assumiu o cargo no ano seguinte. Foi um dos poucos parlamentares negros a participar da Assembleia Nacional Constituinte, que elaborou a nova Constituição. Caó deixou sua marca indelével na Carta de 1988, como responsável pela aprovação do inciso XLII do artigo 5º, que determina que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
Caó também trabalhou pela aprovação do amplo exercício do direito de greve e pela definição da ruptura democrática como crime imprescritível, entre outras contribuições inestimáveis ao país.
Após a promulgação da Constituição, o deputado apresentou um projeto de lei que deu origem à Lei 7.716. Conhecida como Lei Caó, ela tipificou o crime de racismo, estabelecendo penas de prisão e regulamentando o disposto na Carta Magna. Até então, o racismo era apenas uma contravenção penal no Brasil.
Em vigor desde 5 de janeiro de 1989, há quase 31 anos, o alcance da lei foi ampliado mais tarde para punir preconceito contra outros grupos discriminados (por etnia, religião, procedência nacional e, mais recentemente, por decisão do Supremo Tribunal Federal, por homofobia). É um instrumento essencial para combater todo tipo de discurso de ódio, um discurso que mata. E para lutar contra aqueles que negam o racismo e afirmam uma suposta igualdade inexistente na prática, apenas para manter intocado o seu lugar de privilégio e de poder – mas que devem, um dia, ir para a lata de lixo da História.
Além da tragédia da pandemia, este difícil ano de 2020 ficou marcado pelos assassinatos brutais de George Floyd nos Estados Unidos e de Beto Freitas, num Carrefour em Porto Alegre. Mas também será lembrado pela explosão de movimentos de resistência em todo o planeta, como o Black Lives Matter e a Frente Nacional Antirracista, formada por mais de 600 entidades do movimento negro, sem filiação partidária, sem líderes, que propõe uma série de medidas práticas para enfrentar o racismo no Brasil.
Hoje, há milhões de pessoas em todo o mundo que não aceitam mais que o racismo continue provocando mortes e desigualdade. Pessoas de todas as cores, porque a luta é encabeçada pelo movimento negro, mas deve ser apoiada por todos – reconhecendo a existência do racismo, oferecendo oportunidades, valorizando os heróis negros. Pessoas que abrem caminhos e produzem mudanças efetivas na sociedade, como Caó.
Que líderes como ele continuem inspirando gerações. Que a lei que leva seu nome seja cada vez mais cumprida enquanto houver racismo – e que chegue logo o dia em que ela se tornará obsoleta porque não haverá mais necessidade de ser usada. O dia em que, como no sonho do Martin Luther King, as pessoas não sejam mais julgadas pela cor da sua pele, mas sim pelo seu caráter. É o que desejo para o Brasil.
*Antonio Neto é presidente municipal do PDT em São Paulo, presidente da CSB (Central dos Sindicatos Brasileiros) e presidente do Sindpd (Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados e Tecnologia da Informação do Estado de São Paulo). Foi candidato a vice-prefeito de São Paulo na chapa de Márcio França (PSB).
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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