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    Maria Luiza Franco Busse

    Jornalista há 47 anos e Semiologa. Professora Universitária aposentada. Graduada em História, Mestre e Doutora em Semiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com dissertação sobre texto jornalístico e tese sobre a China. Pós-doutora em Comunicação e Cultura, também pela UFRJ,com trabalho sobre comunicação e política na China

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    O horror pedagógico e os valores de Abril

    Ao democratizar Portugal, o 25 de Abril pôs fim ao horror que se propunha educativo

    (Foto: Divulgação)

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    De Bangladesh a Gana, incluindo Europa, Américas e Caribe, 58 países estão realizando eleições neste ano 2024. Isso significa que o eleitor vai traçar o rumo da humanidade e do planeta pelo menos nos próximos quatro anos. Portugal e Brasil se incluem nesse mapa em que o voto já não é celebração garantida da vitória da democracia num cotidiano castigado pelas políticas socioeconômicas neoliberais e pelo fundamentalismo religioso.

    Em Portugal, as eleições se realizam em meio ao eco e ressonâncias dos valores da Revolução dos Cravos em que, há 50 anos, militares democratas, anticoloniais e desenvolvimentistas, deram fim a 46 anos de ditadura de viés católico-fascista. Na busca de conexões entre a universalidade das mudanças iniciadas naquele 25 de Abril de 1974 e as atuais lutas que vêm sendo travadas pelas forças progressistas e de esquerda na América Latina contra a ascensão do nazifascismo incarnado na extrema direita, o Instituto Novos Paradigmas, com sede em Porto Alegre e presidido pelo político Tarso Genro, promoveu em Lisboa o Colóquio Internacional Herança Universal de Abril.

    Durante dois dias, intelectuais, militantes, dirigentes políticos e líderes sindicais, de sete países, foram recebidos na Fundação José Saramago por Pilar del Río, a jornalista viúva e curadora da obra do escritor português, com a presença dos  ‘Capitães de Abril’ que estão vivos para contar a história de como fizeram a revolução pacífica de adesão espontânea massiva do povo que não atendeu ao apelo de ficar em casa, saiu às ruas para se juntar aos tanques e fuzis transformando o levante de fardas em um ato cívico-militar, e ganhou os versos da poetisa portuguesa Sofia Breyner: “Essa é a madrugada que eu esperava, o dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio, e livres habitamos a substância do tempo”.

    O colóquio foi inspirado na necessidade de trocas para se entender a desvalorização da democracia liberal, construir frentes de saída e disseminar as conquistas da revolução não só para a democracia portuguesa, mas, também, para a conformação universal do Estado Social no plano das liberdades públicas. Uma emergência, sobretudo para o Brasil onde segue célere a investida da extrema-direita nazifascista para implantar a República Militarizada do Templo de Salomão. 

    No caso brasileiro, o assédio vem se dando por dentro das instituições republicanas desde o golpe de 2016, antecedido pelo ativismo de desmoralização dessas mesmas instituições orquestrado nas manifestações de junho de 2013. Intenso e simultâneo ataque em diversas frentes, emulação cultural da blitzkrieg armada nazista, um dos alvos vem sendo o sistema educacional com a implantação formal das escolas cívico-militares. Tragédia vivida pelo Portugal pré-revolucionário obstinado em produzir crianças e jovens de conhecimento restrito e subjetividade obediente a uma mentalidade moralista ancorada no catolicismo fundamentalista. Antônio Oliveira Salazar, o ditador e ex-ministro das Finanças, entendia a educação moral religiosa-cívico-militarista como pilar do nacionalismo-patriótico antirrepublicano do Estado Novo que libertaria o país dos males da República, razão sistêmica do recorrente descontrole das contas públicas. 

    Para Salazar, a escola era “a sagrada oficina das almas” e, categórico, considerava “mais um mal que um bem, ensinar o povo a ler, sem preparação moral”. Preparação essa de caráter seminarista baseado na consigna ‘Deus, Pátria e Família’, ou seja, devoção a Deus, amor à Pátria e proteção da Família. 

    Na “missão pedagógica’, assim chamada por Salazar, a escola era retirada do lugar de reflexão, diálogo, crítica e mobilidade social, passando à condição de espaço doutrinário de obediência resignada em conformidade com infância e adolescência voltadas para o recato do lar. As diretrizes do projeto entraram na Constituição do Estado Novo institucionalizando práticas de ensino redutor com prioridade na educação moral religiosa, separação entre meninas e meninos, e fim da profissionalização de professores. O objetivo era justificado em discursos do ditador: “Onde está a escola, a sagrada oficina das almas, sobretudo a Universidade, a fábrica espiritual portuguesa que há de educar os homens para governar e serem governados e fazer a própria ciência do governo, para maior glória e progresso da Nação? Onde está?”.

    De volta ao Brasil de hoje, em 2020 o segundo governo fruto do golpe de 2016 deu início à implementação do projeto das escolas cívico-militares que leva para a sala de aula republicana civil e laica os princípios das corporações militares. Os militares irão inspecionar e controlar as normas de convivência, aplicar medidas disciplinares, e interferir no curso pedagógico inserindo atividades curriculares e extracurriculares cívicas, de cidadania, e valores cívico-militares. Isso vem sendo chamado de ‘gestão compartilhada’ entre as secretarias de educação e de segurança pública.

    Em 2022 o país fez opção progressista, mudou o presidente, mas o projeto foi mantido e vem recebendo a adesão de governos estaduais e municipais. Porém em 2023 o governo federal revogou o Manual de funcionamento elaborado pelo Ministério da Educação da gestão passada. Dentre os itens que seriam postos em prática, pode-se destacar: “O comportamento dos alunos será avaliado e classificado na escala de 10 a zero; o cabelo do sexo feminino curto deverá ter comprimento acima da gola do uniforme; o cabelo feminino longo só será permitido preso, com penteado em trança simples ou rabo-de-cavalo; o cabelo do sexo masculino só será permitido curto, cortado de modo a manter nítidos os contornos junto às orelhas e o pescoço, na tonalidade natural e sem adereços”.

    Ao democratizar Portugal, o 25 de Abril pôs fim ao horror que se propunha educativo. Com a recente ofensiva expansionista do movimento nazifascismo, o colóquio promovido pelo Instituto Novos Paradigmas remarcou a importância da herança universal de Abril, sobretudo, mas não só, para as frágeis embora ainda resilientes democracias da América Latina nas quais o Brasil se inclui.

    Portanto, usando a conjunção com a qual as amigas e os amigos portugueses gostam de concluir suas longas dissertações, a atualidade da Revolução dos cravos se confirma no que anda nos becos, nas ruas, praças, avenidas, e na determinação dos renitentes: “Em Portugal e no Brasil, sempre em defesa dos valores do Abril”. E que venham outros 50 anos.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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