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    Lelê Teles

    Jornalista, publicitário e roteirista

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    O Marco Temporal e a Colonialidade do Poder

    De todas as nações que se livraram da desgraça do colonialismo, nenhuma delas conseguiu se livrar das amarras da colonialidade

    Povos indígenas de diversas etnias montam acampamento em Brasília para mobilização contra o Marco Temporal (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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    “Vai pois, agora, e fere a amaleque, e destrói totalmente tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas e desde os camelos até aos jumentos” (samuel 15:3)

    Os bugreiros, que perseguiam e matavam indígenas na região sul do brasil, que espetavam crianças na ponta da faca e cortavam as cabeças dos adultos xokleng, estão hoje representados pelo projeto de lei 490/07 que nasceu de uma demanda naquelas terras.

    É o projeto colonial redivivo.

    De todas as nações que se livraram da desgraça do colonialismo, nenhuma delas conseguiu se livrar das amarras da colonialidade.

    Eles se foram, mas permanecem aqui.

    Seus descendentes são os guardiões destas atávicas maquinações, são fiéis seguidores e impositores das tradições herdadas, mimetizadores das condutas dos avós sanguinários, genocidas, estupradores e saqueadores.

    Chamam-se, desavergonhadamente, de conservadores.

    Eles conservam as dores dos povos que oprimiram e oprimem por meio da colonialidade do poder¹.

    A colonialidade do poder é uma armadilha ardilosa, eficiente e muito bem estruturada.

    Configura-se como uma grande episteme² que rege o nosso pensamento, formata a nossa cognição, domina a nossa mente, estrutura a nossa vida, dita e determina as nossas ações cotidianas.

    Ubíqua e perene, ela está presente no nosso sistema educacional, no sistema de justiça, na religião de prestígio e de poder, no campo da linguagem, circunscreve-se nos esportes e nas artes (como no cinema, no teatro, na literatura e nas artes plásticas), vai se imiscuindo na vida familiar, na educação dos filhos, na resenha de beira de campo, na fofoca da cozinha, nos segredos de alcova, na moral, nos costumes…

    Na cultura, em uma palavra.

    O racismo, o poder patriarcal de alto impacto³, a servidão desumanizadora, o binarismo ontológico, o patrimonialismo…

    Todas as partes que constituem esse monstrengo continuam entranhadas na estrutura de todas as nossas instituições.

    Todos estamos, inexoravelmente, aprisionados pela colonialidade do poder, essa força poderosa contra a qual temos feito muito pouco para nos livrarmos.

    Os povos originários, as feministas negras, o movimento negro em geral e a comunidade lgbtqia+ são os verdadeiros inimigos dessa estrutura.

    Foram estas pessoas que desmontaram a máquina de enlouquecer gente e mostraram como ela funciona por dentro.

    Por isso, são tão odiadas!

    Ou odiades, como diria o mussum.

    O macho branco e a mulher branca, que vez ou outra sugerem alguns ajustes na máquina desumanizadora, chamam essa transvaloração4 de identitarismo.

    Sugerem, os eurocentrados, uma suposta libertação pela tal luta de classes.

    Mas nenhum deles consegue dizer a que classe pertence o ianomâmi.

    Nem um deles consegue enxergar que vini jr, rico e cheio de prestígio, foi tratado como um touro de arena pelos selvagens espanhóis descendentes de escravizadores.

    Eles não conseguiram enxergar que a mentalidade colonial continua forte e poderosa.

    Não tem nada a ver com classe, mas com cor, com gênero/raça, e com a heteronormatividade antropofálica.

    Os imperadores incas e astecas foram passados no fio da espada, reis e rainhas do continente africano foram despudoradamente escravizados, porque eles eram, ao fim e ao cabo, vistos como gente não humana; incivilizados e incivilizáveis.

    A luta é contra a colonialidade, não é contra uma classe, é contra uma estrutura.

    O projeto de lei descarado, provocador e inconstitucional que a câmara dos deputados acaba de votar, que pretende dar aos povos originários o status similar aos dos sem-teto das grandes cidades, é um cabo-de-guerra, uma queda-de-braço, uma demonstração de força e de poder.

    Os deputados, muitos deles capangas de latifundiários e alguns, mesmo, donos de latifúndios, fizeram um sinal de fumaça para os seus irmãos de cor, que responderam em coro: “praquê índio quer tanta terra?”

    Os donos dos jornais, dos portais e das televisões, todos eles machos e brancos, nos enviam de forma cifrada a mesma interrogação.

    E são eles mesmos que incitam a idolatria e a celebrização de um sujeito que diz ser dono de mais de 200 mil cabeças de gado.

    Um cabra que, sozinho, meteu cerca de arame farpado em um terreno equivalente à metade da cidade de são paulo, que abriga 12 milhões de habitantes!

    Praquê esse único sujeito quer tanta terra?

    Ora, o patrimonialismo, o utilitarismo e o destino manifesto explicam.

    O macho branco quer ser dono das florestas, ele tem uma tara por cercas, enxerga cifrões por onde suas vistas alcançam, tudo pode virar dinheiro.

    Por isso ele invade, grila, cerca, toma posse; manda e desmanda, mata e desmata.

    É certo que os indígenas não são donos desta terra.

    Mesmo porque os povos tradicionais nunca tiveram com a terra essa relação patrimonial.

    A terra não é deles, eles é que são dela.

    Para os indígenas, nas terras habitam os seres animados e inanimados, os seres vivos encarnados e os seres eternos encantados.

    Tudo é vida!

    E toda vida deve ser reverenciada e respeitada.

    Por isso mesmo, os povos originários mantêm, há milênios, uma relação harmoniosa com o que passamos a chamar de natureza.

    Na verdade, a natureza é, ela mesma, uma invenção colonial.

    Porque quando digo natureza, eu digo o que está lá fora, falo de árvores, de aves, de rios.

    Há uma separação conceitual entre humanos e natureza, que é onde a fauna aflora.

    Onde o branco diz “meio ambiente”, o não branco diz: “meu ambiente”.

    O processo de catequização e evangelização, trata-se menos de uma conversão do espírito e mais de um freio epistêmico.

    É preciso domesticar e silenciar uma certa visão de mundo, é necessário sufocar certos saberes para que projeto colonial permaneça de pé.

    Os colonizadores, assim, no masculino, determinaram, logo após a sua chegada, que a posse da terra era um direito exclusivo do macho branco.

    Os seus descendentes, os descendentes de escravizadores, quando “se livraram” dos escravizados, porque não eram mais úteis, negaram a eles a posse de terras, e o fizeram por força da lei.

    E logo trataram de chamar os seus irmãos de cor, d’além mar, para ocuparem as terras que ainda não tinham cercas.

    Deixando claro que terras só nas mãos dos brancos.

    Os territórios ocupados pelos povos originários, bem como os territórios ocupados por quilombolas, estão em constante assédio do macho branco.

    É preciso cercar tudo e transformar isso em um grande fazendão, para produzir comida para seus irmãos de cor europeus.

    É preciso escarafunchar a terra e arrancar tudo o que tenha valor monetário, tudo o que tenha preço.

    Potosí é aqui.

    Essa gente odeia quilombolas e indígenas porque estes querem “afagar a terra”; querem “conhecer os desejos da terra”.

    Esses camaradas sabem que um quilombo não é só um pedaço de terra ocupado por agricultores pretos, a quilombagem é uma episteme.

    Uma terra demarcada, para pretos e para indígenas, é um local sagrado que preserva sabores e saberes que vão de encontro à ideologia colonial.

    O projeto é passar todo mundo no fio da espada, ou deixá-los à míngua, para que a fome complete o trabalho.

    É a filosofia canina do quinca borba5, o humanitismo, a doutrina do cachorro louco.

    A primeira coisa que se apropriaram foi da linguagem, impuseram um idioma aos povos colonizados e, adâmicamente, (re)nomearam tudo.

    Aves, árvores, gentes…

    Nomear, ensinou deus ao seu primeiro filho, é um ato de poder, é uma forma de tomar posse.

    O colonizador repete adão.

    O projeto colonial antropofálico segue o deus que é um cara, um pai, o que desceu dos céus pra falar só com homens, e que fez da mulher um símbolo de maldição e de pecado.

    O colonizador segue aquele livro que ensina como tomar posse de terras (josué 11:23), como o escravo deve obedecer o seu senhor (pedro 2:18), como a curiosidade pode custar caro pra uma mulher (gênesis 3:16).

    Os guardiões da palavra impressa, em nome de deus, mandaram queimar mulheres, intelectuais, livros; ensinaram que devem ir à fornalha todos os que pensam diferente.

    O fogo do inferno está sempre sendo alimentado com a madeira arrancada ilegalmente das nossas florestas.

    Os mesmos caras que deram aos povos originários o nome de índios, agora dizem que eles não são mais índios, porque usam telefone.

    O macho branco é o grande senhor do mundo, ele nomeia e desnomeia, faz da epiderme um significante, determina o comportamento sexual das pessoas, coloca cada um no seu lugar e, assim, toma conta de tudo.

    E transforma tudo em mercadoria.

    É preciso ter pretos e pretas, negros e negras, indígenas e travestis, transsexuais e assexuais… toda essa gente tem que ocupar o poder.

    Só essa gente é capaz de nos libertar.

    Todos os outros estão comprometidos, todos os outros querem conservar os seus privilégios, alguns deles querem apenas fazer alguns ajustes na máquina, mas querem que ela continue a funcionar.

    É chegada a hora do ludismo epistêmico.

    É tempo de destruir a máquina colonial.

    Palavra da salvação.

    ¹Aníbal quijano

    ² “… é o conjunto das relações que podem ser descobertas para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas no nível das regularidades discursivas.” FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 217 -218

    3Rita Segato

    4Nietzsch

    5 Machado de Assis

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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