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    Ricardo Berzoini

    Foi ministro da Previdência, das Comunicações e da Articulação Política. Aposentado do Banco do Brasil, ex-deputado federal

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    O Martinelli, Arquitetura, Literatura e Sindicalismo

    Afinal, o que é mesmo o centro antigo de uma cidade? É o útero, é seu parto, seu berço e é o chão onde a história da cidade aprendeu a se por de pé e a caminhar

    Edifício Martinelli (Foto: Reprodução)

    Numa paisagem de concreto e sonhos, o Edifício Martinelli,  ergue-se como uma testemunha silenciosa da história de São Paulo do século 20. Construído entre 1924 e 1934, de ferro e concreto não é apenas um edifício; é um monumento que abarca os sonhos visionários do imigrante italiano, Conde Giuseppe Martinelli, e seu compatriota Conde Ermelino Matarazzo, que desembarcaram em terras brasileiras em 1890, a bordo do vapor "La Bretagne". Esses dois imigrantes possuíam uma acurada visão empreendedora, e o Brasil mostrava-se o campo fértil para as realizações que iriam por muitas décadas acompanhar suas histórias de vida.

    A concepção do Edifício Martinelli foi confiada ao talento do arquiteto húngaro William Fillinger, cujas linhas inovadoras e técnicas revolucionárias, como o uso de concreto armado, resultaram em uma novidade construtiva daquela época. Suas características físicas e peculiares, desde a fachada adornada com detalhes art déco até os corredores que hoje testemunham a passagem do tempo, refletem o desejo de marcar a paisagem do centro da cidade.

    O Martinelli, inaugurado em 1929, com seus 30 andares e 105 metros de altura, não foi apenas o primeiro arranha-céu da América Latina; foi um símbolo inconfundível do crescimento e da modernização paulistana. Dividido em partes distintas - residencial, comercial e hoteleira - o edifício personificava a visão do Conde de criar um símbolo de prestígio que refletisse o espírito ascendente da burguesia da época. Todos que chegavam a São Paulo incluíam em suas andanças pela cidade, aquele momento de poder apreciar a visão da cidade do alto do edifício Martinelli. Júlio Prestes e o Príncipe de Gales, entre outras personalidades, em suas visitas à capital paulista, não deixaram escapar a oportunidade de conhecer o edifício. De certa forma, o Comendador Martinelli, que era mestre-de-obras na Itália, ao conseguir levantar do chão o edifício mais alto da América do Sul, foi bem-sucedido na empreitada de romper com os preconceitos e receios, já que sua obra foi o orgulho da cidade.

    Naquela época era lugar-comum personalidades exaltarem a importância do Martinelli para a cidade de São Paulo, e numa pesquisa aos arquivos de jornais paulistas, penso não ser difícil deparar com crônicas (inclusive policiais), charges, poesias e quadros feitos para celebrar o novo símbolo da cidade, como, por exemplo, o poema de Patrícia Galvão, a Pagu: “Além...muito além do Martinelli... / martinellamente escancarava as cento e cinquenta e quatro güelas... / ... / E Pagu nasceu”.

    Mário de Andrade, um dos ícones da Semana de Arte Moderna de São Paulo (1922) festejou o edifício em suas crônicas, destaco esse trecho: “E agora já posso ver o `Martinelli´, meus olhos buscam a massa cor-de-rosa formidável para justificar a sensação anterior...”

    Porém, a grandiosidade do Martinelli, como muitas histórias na década de 1930, foi ofuscada pela crise econômica resultante da quebra da bolsa de Nova York. A alta sociedade paulistana, outrora frequentadora assídua do edifício, enfrentou perdas financeiras, e o Martinelli, que foi vendido ao governo italiano em 1938, adentrou em um período tumultuado.

    Os anos seguintes viram o Martinelli transformar-se de um símbolo de prestígio em um depósito de armas durante a Segunda Guerra Mundial. O edifício, confiscado pelo governo brasileiro, testemunhou um capítulo sombrio de sua história. Após a guerra, nas mãos de uma empresa privada, o Martinelli decaiu ainda mais, tornando-se um cortiço.

    O Edifício Martinelli, outrora símbolo de prestígio, tornou-se um refúgio para os marginais, um palco de tragédias cotidianas. Os corredores, antes palco de elegância, estavam mergulhados na penumbra, o lixo acumulava-se e a decadência física refletia a decadência social. O Hotel São Bento, que ocupou parte dos andares, outrora símbolo de luxo, decaiu em paralelo com o restante do edifício.

    Na década de 1960, o Martinelli era notícia diária nas crônicas policiais da época. Histórias de assassinatos, prostituição e tragédias tornaram-se parte integrante do folclore urbano de São Paulo. Entrar no Martinelli significava adentrar um ambiente sombrio, onde a realidade mesclava-se com a imaginação. Igrejas, prostíbulos, bares, danceterias e apartamentos improvisados compartilhavam o mesmo espaço, criando uma paisagem multifacetada e complexa.

    No entanto, como em muitas histórias, o Martinelli estava destinado a ter uma reviravolta. Na gestão do prefeito Olavo Setúbal, em 1979, o edifício foi finalmente destinado a uma renovação. Todos os moradores foram despejados, marcando um ponto de transição que, por um lado, ressaltou a problemática da moradia na cidade e, por outro, sinalizou o renascimento do prédio. A reforma transformou o Martinelli de um símbolo de decadência em um farol de renovação. No entanto, essa transformação não foi apenas física; foi também uma metamorfose social.  

    Nos anos 90, o Martinelli tornou-se, por alguns anos, parte da minha vida cotidiana. Eu era secretário-geral do Sindicato dos Bancários de São Paulo, que negociou a aquisição de alguns andares do Martinelli, ajudando a marcar uma virada na história do edifício. A transação, ocorreu sob a liderança do presidente do Sindicato, Gilmar Carneiro dos Santos. Gilmar, à época, orquestrou a visão do sindicato de consolidar sua presença marcante no Centro Velho de São Paulo. Destaque-se que o valor investido pelo sindicato em 1991representou não apenas uma mera transação financeira; mas um investimento que solidificou a presença do sindicato no coração de São Paulo, uma área recheada de agências bancárias e com dezenas de milhares de bancários circulando diariamente em suas ruas.

    Nesse novo capítulo, a renovação do Martinelli não foi apenas um renascimento físico; foi um ressurgimento da identidade paulistana deixando o edifício de ser não apenas um marco arquitetônico da cidade, mas também uma referência sindical, e com efeito, seus andares, corredores e paredes serviram como testemunhas silenciosas e um ponto de convergência para ações sindicais, um símbolo de superação e conquistas trabalhistas. Por alguns anos, foi sede da CUT Brasil, reforçando essa identidade trabalhadora.

    Os escritores brasileiros, atentos a essa obra arquitetônica imponente, teceram o Edifício Martinelli em suas tramas literárias. Assim como os corredores do prédio abrigaram histórias de decadência e ressurgimento, as páginas da literatura brasileira capturaram a essência do Martinelli em narrativas que ecoam a resiliência de São Paulo.

    Em obras de Clarice Lispector e Mário de Andrade, além da já mencionada Pagu, o Edifício Martinelli tornou-se mais do que uma construção de concreto; era um personagem na rica tapeçaria literária brasileira. Esses autores muitas vezes incluíram o Martinelli como um elemento que transcende a arquitetura, refletindo a complexidade e a vitalidade de São Paulo.

    As palavras de Clarice Lispector, por exemplo, capturam a essência do Martinelli como um símbolo de ressurgimento. "No centro da cidade, onde os arranha-céus tocam o céu, o Martinelli permanece não apenas como um edifício, mas como um capítulo vivo da história da cidade", escreveu ela, ecoando a transformação do edifício ao longo dos anos. Mário de Andrade, em suas obras, descreve o Martinelli como uma testemunha da diversidade e complexidade de São Paulo. "Os corredores iluminados agora testemunham não apenas a passagem do tempo, mas a resiliência do próprio edifício", observa o autor, destacando a capacidade do Martinelli de adaptar-se e evoluir.

    Eu tive meu espaço de vivência cotidiana, de 1991 a 1998, quando fui secretário geral e depois presidente do Sindicato, tendo meu local de trabalho no segundo andar do espaço independente, com entrada privativa e elevadores próprios que o Sindicato ocupa até hoje. E sinto a emoção de pertencimento, sempre que visito o prédio a convite da atual diretoria, para falar de temas políticos do nosso país. Alguma coisa acontece no meu coração...

    Mas me entristece a decadência do Centro Velho, o abandono de seus calçadões, agravado pela crise social que levou milhares de pessoas a morarem nas ruas. Pergunto se não é possível uma mobilização de lideranças, entidades, empresas e a cidadania, para restabelecer um ambiente atrativo e acolhedor de teatros, cinemas, bares, restaurantes, bibliotecas, empresas e entidades, como locais de trabalho e lazer.

    Caetano Veloso nos alerta que, em São Paulo, “da força da grana que ergue e destrói coisas belas”, e nós, precisamos aprender que não se resolve o presente negando o passado, nem ficando preso ao seu glamour, mas que juntos podemos conviver com as diferenças e diversidades, irradiando as luzes que iluminarão nosso futuro.

    Há muitos exemplos em centros antigos das cidades do mundo. Afinal, o que é mesmo o centro antigo de uma cidade? É o útero de uma cidade, é o seu parto, o seu berço e é o chão onde a história da cidade aprendeu a se por de pé e a caminhar.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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