O muçulmano carioca cuja família luta há um século contra o racismo e a intolerância
Neste momento, é imperativo que reflitamos sobre a islamofobia e que relatemos histórias inspiradoras que nos conduzam à empatia
Em um momento histórico de guerras por interesses econômicos travestidas de “fomos apenas levar a democracia ao Afeganistão”, em um momento de genocídio de povos originários e dos muçulmanos no Oriente Médio, de volta do Talibã e de estereótipos sobre os muçulmanos, é imperativo que reflitamos sobre a islamofobia e que relatemos histórias inspiradoras que nos conduzam à empatia.
Com a volta do Talibã ao poder, intensificaram-se no mundo os relatos de agressões físicas e verbais a mulheres e homens muçulmanos, agressões imorais protagonizadas por falsos cristãos e que me envergonham profundamente como jornalista e cristã.
Muitos pesquisadores da islamofobia costumam citar o 11 de setembro como um turning point para o aumento dessas agressões no mundo todo, mas como jornalista e pesquisadora das três religiões monoteístas há mais de 10 anos, acredito que esse ódio vergonhoso é muito mais antigo e foi construído, tijolo por tijolo, desde as Cruzadas.
Das três Cruzadas, a primeira delas, foi a que nós, os cristãos, ganhamos com extrema violência, matando milhares de muçulmanos antes mesmo de chegarmos ao Oriente Médio, quando atravessávamos os Balcãs, foi também a Cruzada em que, famintos, pobres, sem suprimentos e sem preparo nenhum para enfrentar uma viagem de 2 anos e uma guerra por riquezas e interesses profanos e não pela fé, nossos homens cristãos cometeram estupros, assassinatos e muitos outros crimes contra mulheres e crianças muçulmanas.
Há centenas de relatos dos anos de 1096 a 1400 que comprovam isso. Até mesmo os nossos cronistas cristãos, incumbidos de relatar a Primeira Cruzada Popular, relatar o que viam e enviar aos papas e aos reis, pareciam perplexos diante da carnificina imposta pelos cristãos aos muçulmanos, e se perguntavam quem eram aqueles “violentos francos”. Ao longo do caminho entre a Europa mediterrânea e a Palestina, passando por partes cristãs da Síria e da linda Constantinopla, atual Istambul, os franceses foram matando e estuprando até mesmo mulheres cristãs sírias e palestinas, e essas mulheres relataram aos cronistas terem mais medo dos cristãos europeus do que dos muçulmanos durante as Cruzadas.
A História acabou por dar razão a elas, pois foi um muçulmano, o grande general Saladino, e não um general cristão, o homem que salvaria milhares de mulheres e crianças cristãs durante as Cruzadas. A verdade é que a Europa passava por um momento de completa escuridão, violência e extrema pobreza, com as terras nas mãos de poucos senhores feudais, com uma população de servos famintos e explorados, enquanto os muçulmanos do Oriente Médio viviam o seu momento de maior prosperidade social, cultural e científica, com a fundação de grandes cidades, das primeiras universidades do mundo, com o direito de todos ao voto, e com descobertas científicas que só chegariam à Europa séculos depois. Mas para justificar as Cruzadas e tamanha carnificina contra os muçulmanos, era necessário construir narrativas que desenhassem o muçulmano como malvado, terrorista e selvagem. E é exatamente isso o que, nós cristãos, temos feito nesses últimos 900 anos. Seja no cinema, na literatura, no teatro ou nos telejornais, o muçulmano “ malvado, estuprador ou terrorista” está sempre lá, um personagem construído para nos fazer acreditar que todos os muçulmanos podem ser mortos nas guerras dos EUA por dinheiro ou petróleo pois são apenas “ muçulmanos terroristas” e suas vidas não valem nada.
Essas narrativas matam e são tão mortíferas quanto milhares de mísseis, e é contra elas que venho lutando há anos, narrando histórias inspiradoras de muçulmanos, e usando a única espada que sei manejar, a escrita.
Uma dessas histórias inspiradoras é a de um muçulmano carioca chamado Filipe Karim de Azevedo, um historiador, professor e editor, a quem conheci recentemente, e cuja família luta há mais de um século contra o racismo e contra a intolerância religiosa.
Karim me relata que o pai começou a lhe contar a história de sua família ainda em sua infância, e de forma tão vívida, que imprimiu em sua mente de onde ele vinha, quem era e para onde iria.
Mesmo que, pequeno demais, nem sempre compreendesse todas as palavras que carregavam a poeira dos tempos, esses relatos fizeram com que ele se tornasse um historiador e se graduasse nessa área pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, descobrindo também a história de seus ancestrais muçulmanos vindos da África e se aproximando dessa religião.
“Minha avó Aziata era negra, foi casada três vezes e nas três acabou se tornando viúva. Descobri que seu primeiro marido, Frederico Ramos, era filho de um dos maiores abolicionistas da História do Brasil, João Ramos, o fundador do Clube do Cupim, uma sociedade secreta que, entre 1884 e 1888, se dedicou à libertação de centenas de escravos e por vários meios”, revela. As províncias do Amazonas, Ceará e Rio Grande do Sul haviam abolido a escravidão em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea e o plano dos “cupinzeiros” (como eram chamados) era transportar os escravizados de Pernambuco para as províncias onde a escravidão havia já havia sido abolida, e até mesmo para outros países, como o Uruguai. E eles conseguiram libertar cerca de 500 escravos com suas ações, explica o professor muçulmano.
O professor conta ainda que, de alguma forma, o pai incorporou aqueles princípios abolicionistas, pois ainda marujo e recém entrado na Marinha de Guerra brasileira, ele esteve no Encouraçado Minas Gerais, o principal navio brasileiro a participar da Revolta da Chibata e que foi conduzido pelo líder da Revolta, o próprio João Cândido.
Karim relata que o pai sentia muito orgulho de ter servido no navio onde ainda ecoava a coragem dos que lutaram e ainda se ouviam as histórias sussurradas sobre a Revolta, pois a Ditadura havia proibido que se falasse o nome do “almirante negro” João Cândido.
“A escravidão esteve presente de forma muito forte na minha família, pois minha bisavó nasceu na escravidão, filha de uma africana escravizada, mas os que conviveram com ela falavam de sua imensa altivez e determinação, a mesma altivez que sempre vi em meu pai, Demóstenes. O que me emocionou muito sobre ela foi a descoberta que ela era de uma linhagem de muçulmanos africanos da etnia “fulani”, e seu próprio nome era uma possível corruptela de Assiata, um nome muito comum entre os muçulmanos “fulani” da Guiné, de onde foram traficados muitos negros para o Brasil. De minha bisavó guardo muitos objetos que me ligam aos meus ancestrais, como uma colher que pertenceu a ela, e através desses objetos, sinto-me próximo dos muçulmanos africanos. Minha avó acabou se casando pela terceira vez com Pedro José da Cruz, um negro retinto, culto e cheio de altivez também, que trouxe vários ensinamentos para o meu pai sobre a dignidade do homem negro e dos escravizados que, trazidos como escravos em um navio negreiro, eram muitas vezes mais cultos e mais alfabetizados do que os seus senhores no Brasil, pois o Islã tem como um dos princípios básicos a busca pelo conhecimento. Todo esse peso genealógico que eu carrego é uma inspiração e uma grande responsabilidade, pois a abolição está inacabada. Todos esses fatores contribuíram para a minha conversão à religião islâmica, pois dizem que as pessoas são levadas para um caminho também por seus ancestrais e não apenas pelo que leram. Em meu caso, posso dizer que as duas coisas aconteceram. Pesquisei minhas raízes, mas também li a autobiografia de Malcolm X, e isso me marcou muito não só pela sua trajetória, mas principalmente pela sua personalidade, que trazia em si todos os ensinamentos dos meus ancestrais que lutaram por justiça, contra a escravidão e contra a desigualdade. Ao resgatar minhas origens e depois de ler muito, decidi procurar uma mesquita, e lá, fui apresentado à história do homem que definitivamente foi o grande responsável pela minha conversão, Muhammad ibn Abdullah, o Profeta.
Desde essa época, Karim foi se aproximando da tradição islâmica praticada na região da África ocidental, mesmo sem saber ainda que era dali que vinham seus ancestrais muçulmanos.
Pouco depois de sua conversão, ele foi iniciado em uma tariqa sufi que, no século 19, teve a adesão dos “fulanis” , e que foi fundada pelo sheikh Ahmad Tijani, cuja biografia ele agora irá traduzir. “Hoje me inspiro em muitos líderes muçulmanos que lutaram por paz e justiça, como também o sheikh Ibrahim Niasse, um dos maiores eruditos islâmicos do século 20, respeitado em todo o mundo hoje”.
O historiador e muçulmano carioca tem continuado a luta histórica de seus antepassados.
Tornou-se há alguns anos um dos membros mais ativos da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do estado do Rio de Janeiro que, desde 2008, promove a Caminhada pela Liberdade Religiosa. Além disso, membros como Karim organizam ações que visam denunciar a intolerância religiosa e promover a tolerância e a paz. À frente da Comissão está o Professor e babalawo Ivanir dos Santos, que há décadas denuncia o racismo contra a população negra e a discriminação contra as religiões de matrizes africanas. Karim é também membro dos Comitês Islâmicos de Solidariedade (CIS), que reúne muçulmanos e muçulmanas de todo o Brasil comprometidos com a causa da justiça social.
O movimento lançou um manifesto histórico em 2021, o "Manifesto de Muçulmanas e Muçulmanos em Defesa da Vida", onde fazem importantes reivindicações e pedem a investigação de Jair Bolsonaro pelo Tribunal Penal Internacional. Um documento histórico porque desde a Revolta dos Malês, a Revolta ocorrida na Bahia e que abriu o caminho de fato para o fim da Escravidão, a comunidade islâmica brasileira não se manifestava publicamente contra as ações de um governo.
“Hoje eu não saberia mais viver sem lutar contra a intolerância religiosa ou contra o racismo. Foram muitas descobertas. Descobri recentemente que minha bisavó materna foi escravizada em Santana do Livramento, Rio Grande do Sul, e se chamava Protestata Maciel. Há três anos, e para felicidade da minha mãe, a dra. Vera, descobri que naquela região existia um grande quilombo em que viviam famílias de escravos que foram alforriados e receberam terras, entre eles, os Maciel. Ter uma origem quilombola é mais um motivo de orgulho, mas procuro sempre me lembrar também da luta diária que travamos contra nós mesmos, contra o nosso ego, a jihad de que nos fala o Alcorão, a luta por sermos pessoas melhores a cada dia e por tudo aquilo que acreditamos”, conclui Filipe Karim.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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