O mundo árabe está em uma encruzilhada: enfrenta desafios ou encontrar-se-á disperso e perdido
"Qualquer governo que dependa verdadeiramente do apoio de seu povo não será abalado por tempestades ou pressões externas"
A nação, os Estados e os povos árabes enfrentam desafios existenciais no início de um novo ano cheio de mudanças. Nenhum país ou região poderá escapar desses desafios, especialmente os mais frágeis e com menor imunidade interna, como a esmagadora maioria dos países árabes. A nova administração que assumirá a Casa Branca no dia 20 deste mês promete ser mais agressiva, arrogante e racista. Se os países árabes não fortalecerem suas estruturas internas e não colaborarem entre si, pagarão um preço elevado e, mais tarde, lamentarão os erros cometidos, pois "chegou a hora do arrependimento".
Desde o fim da Guerra Fria e da hegemonia dos Estados Unidos no cenário internacional por cerca de duas décadas, guerras intra e transfronteiriças se espalharam, as crises internas se agravaram entre os componentes de países individuais, e grandes potências que integravam povos díspares se desintegraram. Além disso, tensões internas explodiram nos países árabes, resultantes do fracasso dos regimes autoritários em elevar o nível de desenvolvimento, reduzir o desemprego, conter a corrupção, refrear os múltiplos aparelhos de opressão e preparar as novas gerações para um futuro sustentável. Esses regimes frequentemente dependem de forças externas para perpetuar seu domínio.
As convulsões da Primavera Árabe já entraram em sua terceira onda, derrubando regimes brutais e corruptos que se sustentavam com apoio externo. Na Síria, por exemplo, o regime de Bashar al-Assad se tornou o sétimo a ser alvo dessas revoltas populares, seguindo os passos de Zine El Abidine Ben Ali, Hosni Mubarak, Muammar Gaddafi, Ali Abdullah Saleh, Omar al-Bashir e Abdelaziz Bouteflika.
Revejo aqui alguns dos desafios enfrentados por países árabes na esperança de que aprendam com o passado, alterem seus rumos e se aproximem das demandas populares. Talvez, assim, consigam enfrentar os desafios com maior imunidade interna, resistindo a pressões externas e evitando o colapso, a fragmentação e o caos.
Palestina - O maior desafio enfrentado pelo povo palestino são os efeitos da guerra genocida em Gaza, a destruição da identidade palestina e os esforços para encerrar a questão palestina como um movimento de libertação nacional contra a sangrenta entidade colonial racista, fundamentada na negação da existência do povo palestino.
Em vez de aproveitar a guerra de extermínio para unir o povo palestino e suas forças nacionais efetivas, com base nas declarações de Argélia, Moscou e Pequim, a liderança de Oslo optou por um confronto sangrento para desmantelar a resistência palestina na Cisjordânia. Como resultado, a divisão dentro da sociedade palestina se aprofundou, e a autoridade tornou-se completamente desconectada das massas palestinas, que sofrem tanto com o genocídio em Gaza quanto com os inúmeros crimes cometidos na Cisjordânia.
Em vez de unir todas as forças nacionais em torno de um programa de luta contra a ocupação, utilizando todos os meios disponíveis, a liderança oficial decidiu seguir os planos da entidade colonial, acreditando que estaria apta a liderar a fase pós-Gaza.
Deixo um alerta: aqueles que abrem mão de seus direitos não encontrarão nada além de desprezo por parte de seus inimigos.
Síria - A Síria, seu povo e o governo de transição enfrentam um vasto conjunto de desafios que, se não forem tratados com extrema cautela, poderão invalidar a amarga experiência vivida pelo povo sírio nos últimos onze anos. Durante esse período, metade da população foi deslocada, e centenas de milhares de pessoas foram mortas ou presas.
O maior desafio enfrentado pelo povo sírio e pelas forças de mudança atuais é como conduzir, de forma segura, a fase de transição para alcançar um estado de estabilidade, o Estado de Direito, a inclusão, o pluralismo e uma constituição aprovada por referendo geral, com eleições livres e periódicas.
A Síria também enfrenta os desafios do cerco econômico, das sanções internacionais e da classificação dos grupos atualmente no poder como terroristas. Há regiões específicas sob o controle dos Estados Unidos e de seus aliados curdos que precisam ser reintegradas ao Estado sírio. Aguarda-se que a Conferência Nacional de Diálogo abranja todas as frentes, redija uma nova constituição e trabalhe para o retorno de refugiados e pessoas deslocadas, além de garantir a segurança do país e desarmar todos os grupos armados – erro cometido pela Líbia.
A Síria precisa de um período de cura, durante o qual serão sanadas as feridas, preenchidas as lacunas e promovidos acordos entre os diversos segmentos da população sobre um programa de recuperação, construção e reconstrução.
Manter relações privilegiadas com a Rússia é essencial por razões estratégicas, de segurança e desenvolvimento. Quanto à entidade sionista, não se espera que a liderança síria declare guerra, mas também não pode ignorar o fato de que as Colinas de Golã estão ocupadas e que a entidade expandiu o território sírio sob sua ocupação.
A liderança síria deve condicionar quaisquer relações com a entidade à retirada total das terras sírias ocupadas, ao desmantelamento dos assentamentos e ao retorno de refugiados e deslocados, tanto os que partiram quanto os que desejam regressar. Além disso, a declaração de apoio da liderança síria ao povo palestino deve ser clara, direta e incondicional.
A questão palestina é uma luta por direito e justiça, e aqueles que defendem esses valores em seu próprio país não devem ser seletivos em suas causas. Não há dúvidas de que a questão palestina é uma parte essencial da identidade síria, profundamente enraizada no povo, presente em cada poro de sua pele, em cada célula de sua mente e em cada batida de seu coração.
O Reino da Arábia Saudita - A Arábia Saudita estará sob enorme pressão durante o próximo período da administração Trump, sendo persuadida a seguir o caminho da normalização com a entidade sionista em troca de algumas promessas vagas e verbais, que supostamente avançariam na direção do estabelecimento de um Estado palestino. Todos sabemos o valor dessas promessas feitas pelos Estados Unidos, especialmente quando não têm a assinatura da entidade sionista.
O caminho mais seguro, em nossa opinião, seria a Arábia Saudita reforçar suas relações estratégicas com a Turquia, o Paquistão, a Indonésia e a Argélia, além de trabalhar com a Turquia para proteger a Síria de cair no abraço americano-sionista, mediado por um Estado do Golfo que representa essa entidade e age como seu padrinho no Sudão, na Líbia e no Iêmen.
Atualmente, a posição da Arábia Saudita é mais forte do que antes. A ameaça iraniana, usada como pretexto para a normalização com a entidade por alguns países do Golfo, praticamente desapareceu. Contudo, qualquer inclinação saudita para a normalização pode representar um golpe fatal à questão palestina, já que a maioria, senão todos, os países árabes provavelmente seguiriam o exemplo saudita, enfraquecendo ainda mais o cenário islâmico.
Egito - O Egito encontra-se à beira de um precipício. Uma economia em colapso, a desvalorização quase completa da libra egípcia, os ataques da Etiópia e de Israel, além de uma guerra civil no Sudão, colocam o país em uma situação alarmante. O Egito está pagando o preço por não ter assumido uma posição firme desde o início, ao apoiar o golpe militar liderado por Abdel Fattah al-Burhan e seu então aliado Ahmed Mohamed Hamdan Dagalo ("Hemedti"), que derrubaram o componente civil do período de transição. Isso resultou na ausência de um governo civil, mesmo que fosse com "poderes limitados", evitando que o movimento popular se consolidasse no poder, como aconteceu na Revolução de 2011 no Egito.
O Egito está prestes a explodir como um vulcão, e precisa ajustar suas posições e adotar uma postura corajosa, especialmente em relação à guerra de extermínio em Gaza. Caso contrário, a onda de destruição iniciada em Gaza poderá varrer diversas forças políticas na região.
Tunísia - A Tunísia não pode continuar suprimindo as liberdades, acusando todos os opositores de traição e restringindo o direito à opinião, à expressão e à reunião. O país enfrenta talvez o pior momento desde sua independência. O presidente Kais Saied age como se fosse o proprietário absoluto da história, mas seus discursos artificiais, linguagem rígida e ideias desconexas não convencerão o povo tunisiano de que qualquer opositor de seu governo é um traidor.
Ainda há tempo para Saied mudar o curso. A reconciliação nacional, o retorno ao pluralismo e a restauração das liberdades fundamentais são a solução. Caso contrário, “aqueles que cometeram erros saberão o caminho que seguirão”.
Reflexão - Qualquer governo que dependa verdadeiramente do apoio de seu povo não será abalado por tempestades ou pressões externas. Vale lembrar o exemplo do golpe de julho de 2016 na Turquia, quando milhões de pessoas se mobilizaram para defender não apenas Erdogan, mas o Estado, a democracia e as instituições constitucionais. Talvez ainda haja quem, em nossos países árabes, aprenda essa lição.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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