O Navio-Fantasma do Nord Stream
Os detalhes falsos da estória fictícia da CIA
Artigo de Seymour Hersh originalmente publicado no Substack do autor em 5/4/23. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247
A Agência Central de Inteligência dos EUA (CIA — Central Intelligence Agency) executa constantemente operações clandestinas em todo o mundo, e todas devem ter uma estória fictícia em caso das coisas darem errado — como elas frequentemente o são. Isso é tão importante quanto ter uma explicação quando as coisas andam bem — como elas o foram no Mar Báltico no outono passado. Algumas semanas após a minha reportagem sobre como Joe Biden ordenou a destruição dos gasodutos Nord Stream, a agência produziu uma estória fictícia e encontrou compradores dispostos no New York Times e em duas publicações importantes na Alemanha.
Ao criar uma estória de mergulhadores de águas profundas e uma tripulação que não existiu, a agência estava seguindo o protocolo e a estória teria sido parte dos primeiros dias de planejamento secreto para destruir os gasodutos. O elemento essencial era um iate mítico, ironicamente chamado de Andrômeda — o nome da bela filha de um rei mítico que foi acorrentada a uma pedra, nua. A estória fictícia foi compartilhada e apoiada pelo BND — o serviço federal de inteligência da Alemanha.
A minha reportagem inicial teve cobertura no mundo todo, mas foi ignorada pelos jornais e redes de televisão mais importantes nos EUA. À medida que a estória ganhou tração na Europa e em todos os lugares no exterior, em 7 de março, o New York Times publicou uma reportagem que citava autoridades estadunidenses que afirmavam que a inteligência dos EUA havia acumulado informações sugerindo que um grupo pró-ucraniano havia sabotado os gasodutos. A estória dizia que as autoridades que haviam “revisado” a nova inteligência a retrataram como sendo “um passo adiante para determinar responsabilidades” pela sabotagem dos gasodutos. A estória do Times recebeu atenção mundial, porém nada mais foi ouvido do jornal desde então sobre quem fez o quê. Numa entrevista num podcast do Times, um dos três autores do artigo explicou inadvertidamente que a estória estava morta desde o início. O escritor foi questionado sobre o envolvimento do alegado grupo pró-ucraniano: “O que o leva a pensar que foi isso que ocorreu?” Ele respondeu: “Eu devo ser muito claro que nós realmente sabemos muito pouco. Certo?”
No dia 3 de abril, o Washington Post reportou que alguns investigadores europeus agora duvidavam que o Andromeda poderia ter sabotado os gasodutos sem a ajuda de uma outra embarcação. Algumas pessoas na Europa se perguntavam se o papel do Andrômeda era “algo para distrair, ou era apenas uma parte da cena”. O artigo não sugeria que o governo Biden estava envolvido na destruição dos gasodutos, porém eles citaram um diplomata europeu anônimo que dizia que todos podiam ver que havia um cadáver deitado ali, mas todos estavam fazendo de conta que as coisas eram normais. “É melhor não saber”, disse o diplomata. Nenhuma autoridade estadunidense foi citada pelo Post, sequer anonimamente. O governo Biden tornou-se uma zona ausente de reportagens sobre o Nord Stream.
Marquem um ponto para as várias autoridades da CIA que tem suprido estórias falsas para as mídias aqui [nos EUA] e no exterior, naquilo que tem sido um esforço bem-sucedido de manter o mundo focalizado em quaisquer possíveis suspeitos, com exceção daquele que emergiu como o mais lógico — o presidente dos EUA.
O Times também reportou que um legislador europeu, informado pelas agências de inteligência do seu país, disse que o serviço estava colhendo inteligência sobre cerca de 45 navios cujos transponders não estavam funcionando quando passaram pela área onde os gasodutos foram explodidos. Um dos chamados “navios-fantasmas” poderia ter plantado as minas e depois puxado o gatilho.
Depois que a estória do Times foi publicada online, o Die Zeit, o maior jornal da Alemanha, apressou-se a publicar uma reportagem sobre uma investigação sobre a explosão no Nord Stream que eles estavam pesquisando há meses, em conjunto com uma rede de televisão pública. O semanário tinha algo novo: ele identificou um iate que, ele reporta, foi “alugado de uma empresa na Polônia, aparentemente de propriedade de dois ucranianos”. O grupo que alugou o iate e executou a destruição do gasoduto supostamente incluía um capitão, dois mergulhadores, dois assistentes de mergulho e um médico. Retratados pelo Die Zeit como “assassinos” cujos nomes não foram publicados nem eram conhecidos, o grupo usou passaportes forjados e transportou os explosivos necessários à cena do crime. Se diz que o iate teria navegado próximo à ilha dinamarquesa de Bornholm, que fica próxima do local da sabotagem dos gasodutos.
O jornal reportou que o iate foi devolvido à empresa que o alugou — iates deste tipo podem ser alugados por 2.000 dólares por semana, ou mais — numa “condição não-limpa” que possibilitou aos investigadores alemães de encontrarem traços de um explosivo numa mesa da cabine. Estórias posteriores disseram que os investigadores também encontraram dois passaportes ucranianos fraudulentos abandonados no iate. Uma estória subsequente publicada no Der Spiegel, o semanário alemão, dizia que o iate em questão se chamava Andromeda.
Subsequentemente, eu publiquei uma estória sugerindo que a informação suprida pela polícia federal alemã, tanto para o Die Zeit quanto o Der Spiegel, originava-se da inteligência estadunidense. O autor da reportagem do Die Zeit, Holger Stark — um jornalista experiente que eu conheço desde quando ele trabalhava em Washington há cerca de uma década — fez contato comigo para reclamar sobre a afirmação. Stark me contou que ele tinha excelentes fontes na polícia federal alemã e ficou sabendo disso via estas fontes e não de qualquer agência de inteligência, sejam alemãs ou estadunidenses. Eu acreditei nele e corrigi imediatamente a estória.
Eu reconheço que é difícil para qualquer jornalista escrever sobre um colega jornalista, especialmente um bom jornalista. Mas este caso envolve a aceitação de fatos que devem ser questionados. Por exemplo, eu não perguntei a Stark se ele se perguntou por que nenhum jornal estadunidense, situado a quatro mil milhas de distância, publicaria a mesma alegação sobre um grupo anônimo de ucranianos, os quais não tinham laços com a liderança em Kiev, que as autoridades alemãs disseram estarem caçando. Discutimos sobre um fato que ele mencionou: que as autoridades na Alemanha, na Suécia e na Dinamarca, pouco tempo após as explosões dos gasodutos, decidiram enviar equipes para o local a fim de recuperar a única mina que não explodiu. Ele disse que eles chegaram tarde demais; um navio estadunidense acelerou até o local em um dia ou dois e recuperou a mina e outros materiais. Perguntei a ele por que ele pensou que os estadunidenses foram tão rápidos para chegar ao local, e ele respondeu, com um aceno desdenhoso de mão: “Você sabe como os estadunidenses são. Sempre querendo ser os primeiros”. Havia outra explicação muito óbvia.
O truque de uma boa operação de propaganda é prover os alvos — neste caso, as mídias ocidentais — com aquilo que elas querem ouvir. Um especialista em inteligência me explicou isto mais sucintamente: “Quando você faz uma operação como a dos gasodutos, você precisa planejar uma contra-operação — um arenque vermelho que tem uma lufada de realidade. E ele deve ser tão detalhado quanto possível para ser crível.”
“Hoje em dia, as pessoas esquecem que existe uma coisa como uma paródia”, disse o especialista. “O HMS Pinafore de Gilbert e Sullivan não é uma história da Marinha Real Britânica no século XIX. É uma paródia. A meta da CIA no caso dos gasodutos era de produzir uma paródia que fosse tão boa, que a imprensa acreditasse nela. Porém, por onde começar? Não se pode ter os gasodutos destruídos por uma bomba despejada por um avião, ou por marinheiros num bote de borracha.
O especialista em inteligência listou todos os elementos necessários antes que qualquer indivíduo ou grupo pudesse alugar um iate caro. “Você não pode simplesmente andar na rua com um passaporte falso e alugar um veleiro. Você precisa aceitar um capitão que seja suprido pelo agente ou pelo proprietário do iate, ou ter um capitão que tenha um certificado de competência como o exigido pela lei marítima. Qualquer um que tenha um dia alugado um iate sabe disso”. Uma prova similar de especialidade e competência para fazer mergulhos profundos no mar envolvendo o uso de Nitox — uma mistura especializada de oxigênio e nitrogênio — seria requerida para os mergulhadores e para o médico.
O especialista tinha mais perguntas sobre o alegado iate. “Como é que um veleiro de 15 metros pode encontrar os gasodutos no Mar Báltico? Os gasodutos não são tão grandes e eles não constam das cartas marítimas que vêm com o aluguel do barco. Porque o que se pensava era de pôr dois mergulhadores na água” — não é muito fácil fazer isso de um pequeno iate — “e deixar os mergulhadores procurarem por eles. Por quanto tempo um mergulhador pode ficar lá embaixo nos seus trajes de mergulho? Talvez quinze minutos. O que significa que levaria quatro anos para o mergulhador procurar uma milha náutica quadrada.
“Nenhuma destas perguntas é feita pelas mídias. Então, você tem seis pessoas no iate — dois mergulhadores, dois ajudantes, um médico e um capitão alugando o barco. Está faltando uma coisa — quem vai tripular o iate? Ou cozinhar? O que ocorre com o diário de bordo que a companhia que aluga o barco deve manter, por razões legais?
“Nada disso ocorreu”, o especialista me disse. “Pare de ligar isso à realidade. Isto é uma paródia”.
As estórias publicadas no New York Times e na imprensa europeia não davam indicação alguma de que algum jornalista conseguiu embarcar e examinar fisicamente o iate em questão. Eles tampouco explicam por que algum passageiro de um iate deixaria passaportes, fraudulentos ou não, a bordo depois de um aluguel. Foram publicadas fotografias de um veleiro chamado Andromeda estacionado numa doca seca.Nada disso pode salvar uma estória fictícia ruim, o especialista me explicou. “O esforço para transformar ficção em verdade seguirá adiante para sempre. Agora, há uma foto de um veleiro que aparece após a investigação e que não pode ser rastreado — sem ter um número de licença onde legalmente deveria estar. O Andromeda substituiu o homem de Piltdown (uma fraude) na imprensa”.
O especialista teve um pensamento final: “No mundo dos analistas e operadores profissionais, todos concluirão, universal e corretamente, da sua estória que a diabólica CIA inventou uma contra-operação que obviamente é tão ridícula e infantil, que o verdadeiro propósito dela foi de reforçar a verdade”.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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