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    Ricardo Queiroz Pinheiro

    Bibliotecário e pesquisador, militante do livro e leitura, doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC)

    11 artigos

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    O palavrório oficial

    A luta começa pela linguagem. Quem controla os termos, controla o sentido. Quem aceita o discurso do inimigo, já começou a perder.

    Bandeiras dos EUA (Foto: Reuters)

    O aparato ideológico do capital se organiza como um mecanismo de controle global. Mídia corporativa, think tanks, organismos financeiros, universidades e instituições multilaterais operam como engrenagens dessa máquina. Não são espaços de informação, muito menos de debate. São aparelhos voltados para legitimar a exploração, fabricar consentimento e garantir que o imperialismo continue sua marcha sem resistência significativa.

    O discurso dominante não surge de um processo espontâneo. Ele é meticulosamente arquitetado nos escritórios de Washington, nos conselhos do FMI, nas reuniões da OTAN e nos fóruns empresariais onde a burguesia transnacional decide os rumos da economia e da política global. Jornalistas, acadêmicos e diplomatas apenas replicam as diretrizes recebidas. O resultado é um vocabulário padronizado, uma cartilha de eufemismos e distorções repetida exaustivamente até que pareça verdade.

    Quem se alinha aos interesses do capital vira "aliado estratégico", ainda que comande um regime de terror. Quem impõe limites ao saque imperialista se torna "autocrata", mesmo que tenha ampla legitimidade popular. Se os fantoches de Washington pegam em armas, são "rebeldes pela liberdade". Se resistem à dominação, são "terroristas". Protestos contra governos aliados são "ameaças à estabilidade", mas quando ONGs estrangeiras financiam manifestações em países adversários, são "movimentos pró-democracia".

    A guerra na Ucrânia é um caso clássico. Desde 2014, os EUA e a União Europeia transformaram o país em uma peça no tabuleiro geopolítico contra a Rússia. O golpe de Estado foi vendido como um levante democrático. O avanço da OTAN sobre o Leste Europeu foi tratado como natural. A guerra civil que se seguiu, com o massacre de russófonos no Donbass, foi varrida para debaixo do tapete. Quando Moscou finalmente interveio, o Ocidente apagou sua própria participação na escalada e transformou a Ucrânia em símbolo da “resistência”. Quem pedisse negociação era chamado de "apaziguador". Quem questionasse a militarização do conflito era "agente russo".

    O mesmo expediente se repete na economia. Cortes brutais em serviços públicos? "Responsabilidade fiscal". Destruição de direitos trabalhistas? "Modernização do mercado". Privatizações entreguistas? "Abertura econômica". Quando o modelo neoliberal entra em colapso, a burguesia desloca o discurso para a extrema-direita. O inimigo passa a ser o imigrante, o sindicato, o movimento popular. No Brasil, a reforma trabalhista precarizou milhões, mas foi vendida como "flexibilização". Bolsonaro entregou a economia ao rentismo, mas fez isso em nome da "liberdade de mercado". Na Itália, Meloni joga o mesmo jogo: usa o ultranacionalismo para mascarar a pilhagem do país pelas grandes corporações.

    O discurso do poder precisa parecer natural. O truque é simples: enquadrar os fatos de modo que a exploração soe como desenvolvimento, a pilhagem pareça progresso e a repressão se transforme em estabilidade. Mas cada termo pode e deve ser desmontado. Responsabilidade fiscal? Roubo sistemático da classe trabalhadora para pagar juros a banqueiros. Livre mercado? Domínio absoluto dos monopólios sobre cada aspecto da vida social. Parceria estratégica? Submissão econômica e política a interesses estrangeiros. Economia emergente? Mão de obra barata, sem direitos, pronta para ser explorada por multinacionais. Volatilidade financeira? Especulação desenfreada do capital parasitário. Reforma trabalhista? Escravidão repaginada. Modernização? Devastação social camuflada em linguagem corporativa.

    No plano geopolítico, a lógica se repete. Intervenção humanitária? Bombardeios para garantir contratos bilionários no setor energético e armamentista. Expansão da OTAN? Cerco militar imperialista para forçar a submissão econômica. Rebeldes pela liberdade? Mercenários financiados para desestabilizar governos soberanos. Agressão injustificável? Qualquer ação militar de um inimigo do Ocidente. Operação de paz? Ocupação colonial sob nova roupagem. Líder democrático? Fantoche instalado pelo imperialismo. Ditador perigoso? Governante que não entrega os recursos naturais do país de bandeja.

    O jogo é esse. Um manual de manipulação pronto para ser seguido, repetido, assimilado sem questionamento. Mas cada conceito pode ser desmontado, cada eufemismo pode ser exposto. A luta começa pela linguagem. Quem controla os termos, controla o sentido. Quem aceita o discurso do inimigo, já começou a perder.

    O soft power é o sustentáculo ideológico do imperialismo. Ele prepara a linguagem para que guerras pareçam "missões de paz", golpes se tornem "transições democráticas" e a repressão seja sempre "necessária para manter a ordem". Enquanto aceitarmos os termos do inimigo, estaremos jogando no campo dele.

    E não são apenas os liberais que aderem sem questionar. Parte dos autoproclamados progressistas também repete essa cartilha, seja por oportunismo, seja por covardia intelectual. O imperialismo sabe que precisa de uma esquerda domesticada, uma oposição inofensiva que repita os mesmos enquadramentos, apenas com um verniz social. É essa esquerda que normaliza a destruição de países inteiros sob o pretexto dos "direitos humanos" e que se curva diante da narrativa hegemônica para não parecer "radical".

    Romper com essa estrutura exige muito mais do que denunciar a manipulação. Exige desmontar peça por peça o vocabulário da dominação e não apenas pregar para convertidos, destruir as ilusões do liberalismo e construir uma visão de mundo que não dependa das categorias impostas pelo inimigo de classe.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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