O papel da burguesia no golpe de 2016
"É uma ironia da história: o segmento politicamente mais conservador do capitalismo brasileiro, o grande capital estrangeiro e a burguesia associada, atacou o governo do PT 'pela esquerda'”, escreve o professor de Ciência Polícia da Unicamp Armando Boito
Por Armando Boito
(Publicado no site A Terra é Redonda)
Quem deu o golpe? Este dossiê está reaberto. A pesquisa científica não para e as fronteiras do conhecido avançam. Pesquisas recém concluídas ou ainda em curso têm trazido novidades sobre essa matéria. A questão que colocam é esta: onde estavam e o que fizeram as pequenas e médias empresas na conjuntura do impeachment?
A resposta para a pergunta sobre quem deu o golpe não parte, e não pode partir, apenas e diretamente dos fatos, ao contrário do que supõe o empirismo radical. Tal pesquisa depende também do dispositivo conceitual que o analista mobiliza. Seguindo a tradição marxista, que concebe o processo político como a resultante de um conflito entre classes e frações de classe que, na cena política, organizam-se em partidos e associações diversas, a pergunta sobre o papel da burguesia no golpe de 2016 é fundamental.
Em que pé estava o debate
Não existe entre aqueles que trabalham com o enfoque das classes sociais uma resposta consensual para a questão sobre a autoria do golpe de 2016. Alguns entendem que o golpe do impeachment foi uma ação do conjunto da classe burguesa, concebida como um coletivo sem fissuras, contra a ascensão da luta e das conquistas, ainda que modestas, das classes trabalhadoras. Pensamos que isso é parte da verdade, mas não é a verdade toda. Outros detectam divisões no interior da burguesia, não se satisfazem com a ideia de uma burguesia homogênea.
Uma primeira versão dessa linha de análise, e que é a versão predominante, sem negar que as diferentes frações da classe dominante acabaram em boa medida convergindo, no final de 2015 e no início de 2016, para uma posição favorável à deposição do Governo Dilma, afirmam que se tratou de uma ação dirigida principalmente pelo segmento rentista da classe dominante contra o setor produtivo dessa mesma classe social, setor produtivo que, paradoxalmente, já que também insatisfeito com o Governo Dilma, acabou abandonando-o.
Uma segunda versão da análise que trata das classes, de suas frações e que valoriza analiticamente as divisões no interior da burguesia, versão que desenvolvo em livro que publiquei sobre o tema (Reforma e crise política no Brasil – os conflitos de classe nos governos do PT, Editoras Unicamp e Unesp, 2018), sustenta que a força dirigente do golpe foi a burguesia associada ao capital internacional. A grande burguesia interna, fração ao mesmo tempo dependente e concorrente do capital internacional, e cujos interesses os governo do PT priorizavam, acabou, também devido a insatisfações com o Governo Dilma e com a ascensão do movimento popular, se dividindo – uma parte defendeu Dilma até as vésperas do impeachment, outra permaneceu politicamente neutra e uma terceira parte aderiu ativamente ao golpe.
Novos estudos
Essas análises todas têm os olhos voltados para a grande burguesia. Não têm examinado de perto o comportamento político do segmento da pequena e média empresa que, como é sabido, é o contingente, de longe, majoritário no universo das empresas brasileiras. Esse olhar seletivo, voltado para as grandes empresas, em parte é justificado. O médio capital não tem agido como força social autônoma no processo político brasileiro. Isto é, embora exista como força social distinta, já que tem interesses próprios e tais interesses podem provocar efeitos pertinentes no processo político nacional, não possui programa político próprio, deixando, por causa disso, de contar entre as forças sociais que mais pesam na definição dos rumos da política brasileira.
Porém, os tais efeitos pertinentes podem ser também muito importantes. É o que mostra a ótima dissertação de mestrado de Fernanda Perrin defendida este mês de junho na USP e intitulada “O ovo do pato: uma análise do deslocamento político da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo”. É o que estão mostrando também as pesquisas de Felipe Queiroz Braga sobre a mesma Fiesp e de Octávio Fonseca Del Passo sobre a construção civil [1]. Em todas elas, aparece a importância da presença da média burguesia do setor industrial na política brasileira contemporânea. De certo modo, o tema aparecera também no livro de Danilo Martuscelli intitulado Crises políticas e capitalismo neoliberal no Brasil (Editora CRV, 2015).
Peço licença ao leitor para falar da análise que tenho feito da política brasileira de modo a poder esclarecê-lo sobre esta minha intervenção neste debate. Nessa análise, a fração burguesa que Nicos Poulantzas denominou “burguesia interna”, eu sempre a denominei, para tratar da política brasileira contemporânea, “grande burguesia interna” e considerei essa fração burguesa como a fração hegemônica nos governos encabeçados pelo PT.
Isso quer dizer que as políticas econômica, social e externa desses governos, sem excluir os interesses das demais frações burguesas e inclusive da “burguesia associada” e do próprio capital internacional, priorizaram os interesses daquela fração. Eu combino dois sistemas de fracionamento ao falar de grande burguesia interna. O fracionamento pelo porte do capital – trata-se do grande capital – e o fracionamento pela origem do capital – é o capital nacional, embora não seja uma “burguesia nacional antiimperialista”. Ocorre que, se faz sentido falar em grande burguesia interna, é porque, e somente porque, deve existir uma média burguesia interna.
No primeiro capítulo do meu citado livro, eu formulei a seguinte ideia. A política econômica neoliberal estabelece uma hierarquia no interior do bloco no poder. Ela privilegia, no que respeita à função do capital, o capital financeiro; no que respeita ao porte das empresas, o grande capital; e no que respeita à nacionalidade, o capital estrangeiro e associado. Concluía que no topo da hierarquia desse bloco no poder encontrava-se o capital financeiro internacional, e na sua base, o médio capital produtivo nacional voltado para o mercado interno.
Entre o topo e a base dessa hierarquia distribuíam-se outras combinações desse fracionamento (Reforma e crise política no Brasil, p. 51. Há um médio capital bancário na posição intermediária. O pesquisador Ary Minella, pioneiro no estudo político dos bancos, mostrou que no Governo FHC cerca de 200 bancos de médio e pequeno porte foram à falência. É preciso, como mostra Francisco Farias em um ensaio teórico intitulado “Frações burguesas e bloco no poder”, publicado na revista Crítica Marxista no. 28, chamar a atenção para o fato de que os sistemas de fracionamento – função do capital, seu porte, sua origem e outros – se cruzam e para a complexidade que tal fato impõe à análise do bloco no poder.
Contudo, voltando ao que dizia sobre o meu próprio trabalho, eu não pesquisei o comportamento político desse segmento burguês, a média burguesia interna e ignorava, até pouco tempo, pesquisas mais sistemáticas que o tivessem feito. As pesquisas acima citadas trazem novidades importantes justamente sobre isso e podem exigir da parte de todos os que pesquisamos a política brasileira como o resultado de um conflito de classes e frações de classe e que estudamos a burguesia, acréscimos ou retificações maiores ou menores na nossa análise.
O médio capital no golpe de Estado de 2016
O que mostra a dissertação de Fernanda Perrin? Ela argumenta, e até que novas pesquisas demonstrem o contrário a argumentação é convincente, que a Fiesp sob a gestão de Paulo Skaf está apoiada, fundamentalmente, no médio capital, isto é, nas pequenas e médias empresas industriais que são empresas de capital nacional – explico logo abaixo porque prefiro dizer “está apoiada” e não que “representa” esse médio capital. O argumento de Felipe Queiroz Braga é o mesmo.
Os dois pesquisadores realizaram numerosas entrevistas com diretores da Fiesp, de sindicatos que integram essa federação e com dirigentes de pequenas e médias empresas. Mostraram, inclusive, a insatisfação dos pequenos e médios empresários com aspectos importantes da política econômica dos governos do PT. Em destaque, a insatisfação desses pequenos e médios empresários com a política de financiamento do BNDES focada nos chamados “Campeões Nacionais”, que, como a própria expressão indica, são grandes e poderosas empresas brasileiras. As consequências dessa descoberta são importantes.
O inefável Paulo Skaf quando mobilizou a Fiesp contra o Governo Dilma fazia-o, é o que argumenta Fernanda Perrin na sua dissertação, apoiado – sou eu quem utiliza esse termo – nas pequenas e médias empresas e não na grande burguesia. Os grandes empresários, diferentemente, teriam hesitado muito em aderir à campanha do impeachment, tanto grandes empresários do setor produtivo, quanto grandes empresários do setor bancário. Fernanda Perrin, cuja dissertação logo estará disponível no repositório de teses da USP, mostra isso utilizando reportagens da imprensa e entrevistas que realizou.
André Flores, em dissertação de mestrado defendida na Unicamp (“Divisão e reunificação do capital financeiro – do impeachment ao Governo Temer”), tinha mostrado que o capital bancário nacional manteve o seu apoio ao Governo Dilma até fevereiro de 2016. Temos, então, dois comportamentos políticos distintos num momento crucial da história política do Brasil: o médio capital industrial e nacional, segmento do qual se poderia esperar um comportamento mais progressista, assumiu uma posição mais conservadora que o grande capital produtivo ou bancário nacional. Tal fato enseja muitas reflexões.
Novas indagações
A primeira delas é a seguinte: isso significa, então, que o golpe do impeachment foi uma ação vitoriosa da média burguesia interna contra a grande? Das pequenas empresas brasileiras contra o grande capital nacional ou estrangeiro? A dissertação de Fernanda Perrin sugere essa tese em inúmeras passagens. Na banca de defesa de sua dissertação, ela esclareceu que não era essa a sua intenção. Mas a questão permanece: qual foi o papel do médio capital?
Penso que nesse ponto, que é crucial para entender os interesses envolvidos naquele golpe, devemos fazer intervir os conceitos de força dirigente e de força motriz de um processo político qualquer. Mao Zedong elabora esses conceitos discorrendo sobre os processos revolucionários. A força dirigente é classe social ou a fração de classe que logra impor os objetivos políticos da luta e a força motriz é a classe ou fração que fornece os quadros e os ativistas para tal luta. Mao distingue ainda a força motriz principal que é aquela que fornece a maioria dos quadros e dos ativistas.
Pois bem, tenho para mim – e até segunda ordem porque a pesquisa e as descobertas não param… – que a força dirigente do movimento golpista foi sim o capital estrangeiro e a burguesia associada que procurou, depondo o governo da frente política neodesenvolvimentista capitaneada pela grande burguesia interna, restaurar a hegemonia política que usufruíra na década de 1990. Porém a força motriz desse golpe foi, além das frações abastada e remediada da classe média, organizadas em movimentos como o Vem pra Rua e o Movimento Brasil Livre (MBL), foi, eu dizia, também o médio capital, a julgar pelas pesquisas que estou comentando e que me parecem convincentes. O golpe não representou, portanto, uma vitória do médio contra o grande capital.
Uma questão, ainda relacionada com a questão da força dirigente do golpe, ficou em aberto. Refiro-me ao seguinte. Paulo Skaf apoiou-se no médio capital, mas não apresentou um programa positivo de defesa dos interesses dessa fração burguesa. Esse é também um ponto sobre o qual essas novas e excelentes pesquisas precisariam refletir. Paulo Skaf aliou-se ao vice-presidente Michel Temer e defendeu, junto ao empresariado, o programa do MDB denominado “Uma ponte para o futuro”. Ele poderia ser, de fato, um representante orgânico do médio capital, se tivesse organizado um programa próprio para esse segmento.
Poderia, é verdade, na condição de representante de fato do médio capital ter sido ultrapassado na luta pelo grande capital. Mas não parece que foi isso que aconteceu. Ele, segundo minha avaliação, apenas se apoiou na insatisfação do médio capital. É por isso que estou usando a palavra apoio e não representação. Esse é outro ponto para mais reflexão e pesquisa.
É uma ironia da história: o segmento politicamente mais conservador do capitalismo brasileiro, o grande capital estrangeiro e a burguesia associada, atacou o governo do PT “pela esquerda”. Ou seja, exploraram os privilégios concedidos aos grandes capitalistas para atiçar o médio capital nacional contra o grande, fazendo passar a sua proposta reacionária de mais abertura e mais internacionalização da economia brasileira [2].
Cabe lembrar inclusive que mais de um integrante das equipes governamentais de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, diretores do BNDES e do Banco do Brasil, valeram-se do fato de os governos do PT terem privilegiado o grande capital nacional, para proferirem um discurso demagógico de defesa dos pequenos e médios empresários. Discursaram em defesa “dos pequenos que mais necessitam de crédito” – em defesa do “seu Manoel da padaria” disse um deles – contra os privilegiados “campeões nacionais”. Enquanto faziam esse discurso demagógico vendiam e entregavam o que resta de nacional na economia brasileira.
Podemos verificar que essas novidades introduzem mais um ponto para o balanço dos governos do PT: a esquerda pode sim, penso eu, e de maneiras específicas que não cabe discutir aqui, defender empresas nacionais frente a empresas estrangeiras, mas não pode atrelar-se aos interesses do capital monopolista contra os interesses do médio capital. Esse procedimento inverteu tudo aquilo que o movimento comunista latino-americano e europeu tinha estabelecido sobre a questão das alianças de classe possíveis e desejáveis nas primeiras etapas da revolução.
Notas
[1] Confira também o artigo de André Flores Penha Valle e Octávio F. Del Passo, “Frações burguesas na crise atual” postado no site A Terra é Redonda.
[2] Fiz uma breve análise da hegemonia do capital internacional e da burguesia associada no bloco no poder dos governos Temer e Bolsonaro em artigo postado no site A Terra é Redonda. Ver Armando Boito, “Imperialismo e dependência”.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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