O PT no governo
Uma política de conciliação entre entificações sociais inconciliáveis
Por Ricardo Antunes
(Publicado no site A Terra é Redonda)
Em 2002, tudo levava a crer que o Brasil mudaria sua rota. Entretanto, quando venceu as eleições em 2002, elegendo sua principal liderança sindical, Luiz Inácio da Silva (Lula), o PT já não era mais o mesmo. O transformismo, conceitualização ricamente desenvolvida por Antonio Gramsci nos Cadernos do Cárcere (Gramsci, 1989), já havia atingido em profundidade o que de mais forte caracterizava o Partido: sua origem social operária e popular.[1]
Molecularmente, quase sem se dar conta (à exceção de seus críticos de esquerda) o PT abandonava a concepção de partido de classe, que defendia a autonomia e a independência política da classe trabalhadora, para converter-se em um partido “de todos”, “capaz de tomar o poder” sem causar nenhuma contestação da Ordem. Pautado, então, cada vez mais pelos calendários eleitorais, distanciado das lutas da classe trabalhadora, o Partido foi pouco a pouco abandonando, em seus núcleos dirigentes e que definiam suas políticas, quaisquer aspirações anticapitalistas e socialistas.
Estas bandeiras ficaram restritas aos grupamentos marxistas minoritários que existiam no interior do PT e que, entretanto, não encontravam nenhuma possibilidade efetiva de definir e conduzir as ações do Partido. E foi assim que um dos mais importantes partidos operários do Ocidente, que tantas esperanças havia criado na população trabalhadora brasileira, metamorfoseou-se e acabou por se converter em um “Partido da Ordem” (Marx, 2011).
Essa complexa mutação foi a causa fundante das políticas desenvolvidas pelo PT durante a vigência dos governos de Lula (2003-2011) e Dilma (2011-2016). Suas ações, entretanto, quando analisadas em seus fundamentos, foram caracterizadas mais pela continuidade do que pela ruptura em relação ao neoliberalismo, ao menos no que concerne aos seus aspectos mais determinantes.
O que explica, então, o enorme sucesso dos governos de Lula?
Tal sucesso, ocorrido especialmente durante o segundo governo de Lula (2007/11), foi resultado de um crescimento econômico importante, com ênfase na expansão do mercado interno. Sua política econômica deu grande incentivo à produção de commodities para a exportação (ferro, etanol, soja etc.) e concedeu enorme incentivo às indústrias, através redução de tributos para a produção de automóveis, eletrodomésticos e construção civil, além de preservar “criteriosamente” o “superávit primário”, que beneficiava especialmente o capital financeiro. Não foi sem razão que Lula disse, repetidas vezes, que “nunca os bancos lucraram tanto quanto no seu governo”. Ele estava certo ao dizer isso.
Havia, entretanto, uma sutil diferenciação em relação ao neoliberalismo. Ele acrescentou aos elementos macroeconômicos neoliberais acima indicados, elementos de uma política social focalizada e que beneficiou as parcelas mais empobrecidas da população brasileira, aqueles setores que vivenciavam níveis de miserabilidade. Seu programa, denominado Bolsa-Família, foi a maior expressão desta política assistencial e se tornou a proposta mais bem-sucedida de seu governo. Tratava-se de uma ação assistencialista, de grande abrangência, e que minimizava (mas sem jamais eliminar) os elevados níveis de miséria, especialmente nas regiões mais empobrecidas do país. Os pilares estruturantes da miséria brasileira, infelizmente, não foram sequer minimamente enfrentados.[2]
Quando comparado ao governo anterior, de Cardoso, deve-se mencionar ainda que houve sob Lula uma política de valorização salarial (especialmente do salário mínimo brasileiro). Isso porque o Estado, além de garantir, preservar e ampliar os interesses das grandes frações burguesas, exerceu também o papel de incentivador econômico e de ampliar as políticas sociais, o que levou à criação de mais de vinte milhões de empregos em pouco mais de uma década. É por isso que caracterizei seu governo como social-liberal para mostrar a nuance que o diferenciava do neoliberalismo.
Assim, tendo Lula como uma espécie de grande benefactor, o seu governo foi considerado muito exitoso ao implantar uma política policlassista, tendo como fio condutor central a política de conciliação de classes, na qual, ao mesmo tempo em que se preservavam e ampliavam os interesses e lucros das frações burguesas dominantes, favoreciam-se também os setores mais empobrecidos da classe trabalhadora brasileira, especialmente aquela que habita o Nordeste brasileiro.
Foi assim que Lula tornou-se, para as classes burguesas, o um autêntico líder, uma espécie de Bonaparte, no sentido dado por Marx (2011). Ele seguiu rigorosamente seus compromissos com as classes dominantes, fazendo tudo que era possível para aumentar seus já altos níveis de acumulação, garantindo assim o total apoio da burguesia ao seu governo. O apoio da classe trabalhadora Lula já havia obtido desde meados dos anos 1970, quando se consolidou como uma grande liderança sindical e operária ainda sob a ditadura militar. Foi nesta década que aflorou um importante movimento sindical e grevista, a partir da região industrial do ABC paulista, que deu origem à liderança de Lula. Quando terminou seu governo, Lula era figura “adorada” pela maioria esmagadora a população brasileira. E as classes médias conservadoras e as frações burguesas tiveram que se curvar à sua “genialidade política”.
Em 2010, findo o seu governo com níveis altíssimos de apoio da maioria esmagadora da população, Lula escolheu Dilma Rousseff para sucedê-lo. Este foi, por certo, um dos seus maiores erros políticos, dentre outros equívocos cometidos por aquele que fora, nos anos 1970/80, o mais importante líder operário da história brasileira. Como na espetacular tragédia de Frankenstein, o criador veio a decepcionar-se com a sua criatura… Ao invés de ser uma espécie de executora das proposições de Lula, Dilma tinha seu modo próprio, que Lula só veio a conhecer de modo pleno posteriormente.
Em seus dois mandatos (2011-2015, uma vez que o segundo foi interrompido pelo impeachment), Dilma manteve o mesmo receituário econômico implementado por Lula.[3] Enquanto o cenário econômico mundial foi favorável aos governos do PT, o Brasil despontou como uma experiência que ganhou destaque na economia global, merecendo inúmeras referências positivas de apoio do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e organismos assemelhados.
Entretanto, quando a crise estrutural do capital trouxe novo colapso à econômica global, o projeto de governo do PT começou a sua via crucis. Como se sabe, esta nova fase crítica atingiu inicialmente os países capitalistas do Norte (2008/9) e chegou posteriormente ao Brasil (2014).[4]
As rebeliões de junho de 2013 foram os primeiros sinais de que a situação estava se alterando rapidamente. Elas estamparam, em um momento especial do cenário global, marcado por rebeliões em diversos países, causas singulares e particulares da realidade brasileira, como o enorme descontentamento frente à corrupção e aos gastos públicos necessários para a realização Copa das Confederações, que se realizaria em 2014. Celebrada pelo governo do PT como “grande ato” conseguido no governo Lula, a população empobrecida revoltou-se frente aos enormes gastos determinados pela Federação Internacional de Futebol (FIFA) em meio a um momento de ausência de recursos públicos, particularmente para saúde e educação.
As manifestações de rua, vale ressaltar, ocorreram no mesmo momento em que começavam a se intensificar as informações sobre a corrupção nos governos do PT, que já tinham sofrido um enorme abalo em 2005, com a chamada “crise do Mensalão”, que envolveu a Petrobras e quase levou à deposição de Lula ao fim de seu primeiro governo.
Portanto, se os governos do PT (especialmente o de Lula) conseguiram ampliar significativamente o número de postos de trabalho, reduzindo os altos índices de desemprego, eles também não conseguiram eliminar as condições de vulnerabilidade, presentes nos crescentes índices de informalidade e nos altos contingentes de terceirização, que acentuavam a precarização da força de trabalho no Brasil. Assim, parcela significativa dos empregos criados encontravam-se nos call centers e telemarketing, nos trabalhos on line, no comércio, nos hipermercados, na indústria hoteleira, de fast food etc., responsável pela ampliação do novo proletariado de serviços, do infoproletariado, além de um enorme contingente de jovens trabalhadores nas demais empresas de serviços.
Se nas décadas de 1970/80 era relativamente pequeno o número de terceirizados no Brasil, nas décadas posteriores esse número ampliou-se significativamente, gerando uma massa de assalariados frequentemente sem vínculo empregatício, padecendo de altos índices de rotatividade, por vezes à margem da legislação trabalhista, redesenhando a nova morfologia do trabalho no Brasil (Antunes, 2018 e Druck, 1999). E esse amplo universo da classe trabalhadora teve papel de destaque na explosão social que estava por acontecer.
Este é o contexto, então, em que as rebeliões de junho de 2013 se iniciam. Tendo como ponto de irradiação São Paulo, a maior cidade do Brasil, uma enorme massa popular foi tomando as praças públicas, realizando manifestações espontâneas, utilizando-se de práticas plebiscitárias que expressavam forte revolta contra as formas de representação, tanto do parlamento, quanto dos governos estaduais e federais e do Poder Judiciário.
São essas as circunstâncias que, pouco a pouco, acabam por despertar também o ódio das classes médias “tradicionais” e dos amplos setores burgueses, que passam a culpar o PT e sua corrupção por todas as mazelas que se avolumam no Brasil. O apoio da televisão, jornais, rádios etc., enfim, da grande mídia, foi decisivo para a ampliação policlassista e multifacetada dos levantes. Paulatinamente, as manifestações ganharam novos componentes ideológicos, com a inclusão de bandeiras políticas da direita, contra o PT e as esquerdas “vermelhas”. Em seu interior, grupos passaram a defender abertamente a volta da ditadura militar, proposição esta típica das classes médias conservadoras e de amplos setores burgueses que desde então começaram a explicitar descontentamento com a intensificação da crise econômica e, por isso, a dissentir abertamente do governo de Dilma Rousseff.
As consequências políticas foram marcantes, com a rápida politização e ideologização das direitas e, em particular, da extrema-direita. E o mais surpreendente é que elas conseguiram se apropriar das bandeiras anti-institucionais, antiparlamentares e mesmo antissistêmicas, passando a atribuir-lhes um significado ultraconservador.
Esse quadro crítico se ampliou com as eleições presidenciais de 2014, quando vários setores e frações das classes dominantes – que até então apoiavam os governos do PT – começaram a mudar de lado, exigindo um ajuste fiscal mais duro, além de impor uma medida mais clara de combate ao “terrorismo”, medidas estas que foram aceitas por Dilma.
Foi nesta conjuntura de confrontação aberta e de avanço surpreendente da direita que, em 2014, Dilma foi reeleita para o que deveria ser seu segundo mandato. Mas, mesmo que as primeiras ações de seu novo governo atendessem as reivindicações exigidas pelas forças burguesas, o movimento de oposição ao seu novo governo continuou crescendo.
Dilma fez o ajuste fiscal mais duro; do mesmo modo, reduziu direitos trabalhistas como o seguro-desemprego; aumentou os juros bancários, nomeando um representante direto do capital financeiro para implementar o “novo” programa recessivo; anunciou novos planos de privatização etc., mas os descontentamentos seguiam se ampliando. Ao mesmo tempo em que seu governo aceitava estas medidas antipopulares, desmoronava ainda mais seu apoio junto à classe trabalhadora, aos sindicatos e aos movimentos sociais que até então davam sustentação aos governos do PT.[5]
O golpe final se deu com a deflagração da chamada Operação Lava Jato, que foi uma investigação judicial voltada quase exclusivamente para punir os crimes de corrupção praticados pelo PT, o que aumentou ainda mais a impopularidade do Partido e de Dilma. As classes burguesas, incapazes de apresentar um programa regressivo neoliberal capaz de levar a uma vitória eleitoral, acabaram por recorrer à via golpista. Depois de meses de embate político, parlamentar, judicial e midiático, o impeachment de Dilma passou a ser uma questão de tempo.
Desmoralizado, o governo do PT, envolvido em grandes escândalos de corrupção, assistiu ao aumento das taxas de desemprego, momento no qual os grupos economicamente dominantes desencadeiam o golpe. O lócus político encontrado para dar aparência de “legalidade” foi o Parlamento, que até pouco tempo atrás dava um sólido apoio aos governos do PT.
Começava a se consolidar na América latina, então, uma nova modalidade de golpe, que já havia sido praticada em Honduras e no Paraguai, para ficarmos somente com os exemplos latinoamericanos. Através de um ardiloso processo de judicialização da política, que foi também, simultaneamente, uma forma de politização da justiça, o Parlamento sacramentou, em agosto de 2016, o impeachment de Dilma e sua substituição pelo golpista Michel Temer, então vice-presidente, indicado por Lula. Encerrava-se o longo ciclo de governos do PT.
Era chegada a hora de os capitais terem um governo-de-tipo-abertamente-gendarme, independentemente do quão útil para as classes dominantes foram os governos do PT. Encerrava-se definitivamente da era gloriosa da conciliação, que deu lugar a uma nova forma de dominação, a fase funesta da contrarrevolução. A contextualidade política brasileira conferia, então, plausibilidade à formulação de Giorgio Agamben (2004), onde a exceção passa a ser uma característica permanente do “estado de direito”. Assim, o que vimos no Brasil, com o golpe de 2016, pode ser definido como uma nova variante esdrúxula que caracterizamos como “estado de direito de exceção”.
O golpe parlamentar que levou ao impeachment de Dilma Rousseff não apresentou provas judiciais cabais que comprometessem Dilma. Tratou-se, então, de uma deposição política. Foi por esse motivo que Dilma não teve como punição a perda de seus direitos políticos, que seria uma consequência jurídica de sua deposição. Tendo sido uma deposição essencialmente política, foram preservados os seus direitos políticos. Estampava-se uma evidente incongruência jurídica.
Em outras palavras, o mesmo Parlamento que a depôs, reconheceu que ela não cometera nenhum crime político que justificasse a sua inelegibilidade posterior. A farsa se somava à tragédia, em um país que desde sempre esconde suas profundas mazelas e iniquidades sociais ao assumir a aparência de uma interminável comédia.
Parece inevitável, portanto, recordar Marx, ao referir-se Parlamento da França em meados do século XIX. Frente à humilhação do poder que aquela instituição sofria, o Parlamento francês viu desvanecer o resto de respeito de que ainda gozava junto à população francesa (Marx, 2011). O que dizer, então, do Parlamento brasileiro, cuja pragmática política era vista pela população como a mais nefasta de toda a história brasileira republicana?
Desse modo, a eleição, do ex-capitão do Exército, Jair Bolsonaro, em 2018, foi o enfeixamento trágico do processo iniciado com o golpe de 2016. Uma vez mais, o Brasil dava seu contributo ao pífio e ao nefasto.
Esse artigo é uma versão em português de um capítulo do livro Politica della caverna: La controrivoluzione di Bolsonaro (Castelvecchi).
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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