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    André Teixeira Jacobina

    Bacharel e Licenciado em História (UFBA), mestre em História Social (PPGH-UFBA) e doutor em saúde Pública (ISC-UFBA)

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    O que a esquerda precisa fazer: unida, ser antissistema

    "Um projeto de radicalização da democracia pode viabilizar a luta contra todas as formas de injustiça

    Protesto em apoio aos palestinos, Roma, 5 de outubro de 2024 (Foto: REUTERS/Yara Nardi )

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    A recente vitória de Donald Trump, e o crescimento da direita e extrema direita no Brasil, nas eleições de 2024, precisam fazer a esquerda compreender melhor as quatro grandes tarefas necessárias para enfrentar a ascensão global do neofascismo. A extrema direita cresce nos escombros de um capitalismo decadente, incapaz de resolver os problemas sociais da maioria da população, e uma esquerda que tem como centro de sua mensagem “defesa das instituições”, “defesa da democracia liberal”. Assim, a esquerda faz o jogo da extrema direita, que quer se colocar como antissistema para uma população revoltada, frustrada, uma população que não compreende as causas do seu empobrecimento, e que é por isso suscetível a aceitar bodes expiatórios em quem colocar a culpa, sejam os mexicanos, os comunistas, ou os mulçumanos, ou seja a “cultura woke”. O capitalismo está afundando, e quem tentar mantê-lo de pé, será afogado primeiro.

    A derrota de Trump para Biden em 2020 e Bolsonaro para Lula em 2022, somente foi possível porque a memória da pandemia estava muito recente na mente das pessoas. Com o tempo, e a diminuição do tempo de atenção como tendência mundial, muitas pessoas não se lembram da gravidade da gestão dessas administrações na pandemia. Claro que o enorme capital político de Lula construído por décadas, especialmente durante as duas gestões anteriores (2003-2010) dele na presidência, quando ocorreu a implementação de ganhos materiais para a população, especialmente para a população mais pobre, foi um fator relevante também. O que, aliás, fortalece a ideia que para inspirar multidões, é necessário implementar políticas que dramaticamente mudem materialmente para melhor a vida das pessoas, o que cria a solidez de uma liderança e fortalece o movimento de mudança social.

    O fracasso do capitalismo precisa ser compreendido como decorrente de um processo acelerado de concentração de riqueza e poder, nas mãos dos bilionários e das grandes corporações empresariais, que tem provocado uma queda significativa de padrão de vida das novas gerações, de modo que os filhos, em geral, estão tendo um padrão de vida pior que os pais. Esse processo leva a frustração, indignação, e se não existir um trabalho social que sensibilize e explique esse processo como o resultado esperado da atual configuração do sistema capitalista, essa frustração pode e tem sido capturada pela extrema direita, a qual, ao chegar ao poder, paradoxalmente, vai exacerbar esses mesmos problemas. O fracasso do capitalismo em atender as necessidades sociais da maioria da população é em si, o sucesso em atender os interesses das classes dominantes do sistema capitalista.

    Nesse cenário, representantes de uma extrema direita que defende, na prática, um endurecimento do capitalismo, uma plutocracia sem limites, se pintam de candidatos da mudança e podem defender valores culturalmente conservadores, mas sua mensagem não é a de conservar instituições, estruturas, a sua mensagem é de destruí-las. Para uma população revoltada, indignada, essa mensagem, com simbologia revolucionária, é uma mensagem sedutora. Quando coloca as pessoas na órbita dessa mensagem, a extrema direita politiza seus seguidores, com a ideologia de Estado Mínimo, do individualismo, e da autossuficiência do cidadão que se auto intitula como “self-made man”. O enriquecimento pessoal é visto como o único parâmetro da prosperidade, e mostrar para os outros os sinais da riqueza pessoal, em redes sociais, passa a ser a única forma de obter reconhecimento social, validação pelo seu sucesso (aqui o exemplo de “Pablo Marçal” vem à mente). Para isso, estas lideranças e seus seguidores usam de poderosas redes sociais, com engajamento em escala muito maior do que a esquerda tem sido capaz de fazer. Tem ao seu lado, o financiamento da classe dominante, o que lhes dá uma vantagem enorme de largada. Mas tem também uma união entre seus líderes, seus influenciadores, e as redes de organizações da extrema direita. É necessário reconhecer que a esquerda não tem essa união, não tem essa coordenação de ações, e não tem uma aliança ampla de fortalecimento dos seus influenciadores, e dos canais de comunicação social.

    Nesse sentido, uma primeira tarefa é unir partidos políticos, movimentos sociais, sindicatos, organizações, canais e redes sociais, que sejam de esquerda, ou seja, orgânicos à classe trabalhadora, em ações coordenadas de fortalecimento no debate público. Uma aliança entre líderes, influenciadores, canais, movimentos sociais, organizações partidárias, ou seja, aproveitar todas as instâncias coletivas já existentes para articular ações em conjunto. Isso não significa anular diferenças, nem negar diferentes prioridades. Mas reconhecer que o momento histórico exige uma ampla aliança do campo de esquerda, a fim de fortalecer ações coordenadas e planejadas, que possam disputar o debate público e disputar os partidos e organizações. Puxando-os mais para esquerda, conectando essas organizações de forma mais orgânica com a classe trabalhadora. Para isso, o trabalho de base precisa ser acompanhado por uma ampliação do alcance de todas as redes sociais do nosso campo.

    Existem diversas formas de fazer isso. Nós já fizemos vídeos, divulgados no canal “A nova máquina do tempo”, como o vídeo “Concurseiro de direita é mais contraditório do que pobre de direita”, que visam justamente dialogar com um segmento específico da população e buscar sua compreensão e seu convencimento, demonstrando com respeito e evidências, a contradição daquele que vota no partido que corta o financiamento dos serviços públicos que ele utiliza, necessários para a garantia de mínimas condições de vida das classes empobrecidas, ou apoia partidos que propõem o corte de concursos que simbolizam seu sonho de um emprego com boa remuneração e estabilidade. Vídeos semelhantes podem ser feitos demonstrando o mesmo em relação a diversos segmentos. Muitas estratégias podem ser tentadas. Mas para ter força e alcance, todas as instituições e organizações de esquerda precisam formar redes de ação coordenadas.

    A segunda tarefa, igualmente importante, e talvez até mais decisiva para o futuro, é se unir em torno de uma agenda que tem um horizonte para além do sistema capitalista. Uma forma de fazer isso é defender o que o economista Richard Wolff chama de democracia nos espaços de trabalho. Ou seja, o cooperativismo verdadeiramente democrático. Essa defesa precisa estar não apenas no discurso, na agenda, mas implementada em prefeituras, em governos de Estados, e em programas nacionais do Governo federal. Fazer a população ver, e parte da população experimentar um espaço de trabalho no qual ela decide o que produzir, como será produzido e o que será feito com o lucro, é fundamental para mostrar uma forma de organização de trabalho que supera a ditadura prevalente nos espaços de trabalho, que são as relações capitalistas tradicionais, em que o poder está amplamente concentrado nos donos dos negócios e é exercido, autoritariamente, pelos gerentes da produção.

    A classe trabalhadora conseguiu suas vitórias somente através da solidariedade, organização e barganha coletiva. É até compreensível, diante das conquistas do passado, que parte do discurso seja manter, seja conservar as conquistas alcançadas. Mas esse discurso não dialoga com a massa de pessoas que não se enxergam como contempladas por essas conquistas. As pessoas querem mais, sendo o capitalismo incapaz de satisfazer seus anseios, elas se voltam para aqueles que pareçam, ao menos na superfície, antissistema. Se a esquerda levar a mensagem de apenas lutar para melhorar o que está aí, os sistemas existentes, ela será identificada como pró-sistema, e a extrema direita irá capturar, como tem feito, a imagem de ser antissistema, uma imagem falsa, mais fake do que qualquer fake news, mas que funciona, pois até mesmo a esquerda acaba colaborando para isso, quando não apresenta uma agenda que questiona o grande sistema, o maior de todos, o sistema capitalista, o sistema que organiza todos os outros sistemas.

    O efeito demonstração é fundamental para essa política de incentivo e fortalecimento da democracia nos espaços de trabalho. Explico: ver em redes sociais, pessoas falando sobre como melhoraram de vida com a criação de cooperativas que governos de esquerda promoveram, em parceria com universidades e trabalhadores, daria um exemplo concreto de ganhos materiais, que teria um efeito multiplicador incalculável. Milhares, quiçá milhões de pessoas, iriam se interessar pelo cooperativismo, iriam se inscrever em programas de cadastramento de trabalhadores que têm interesse em formar empresas cooperadas. Nesse caso, a existência das redes sociais seria uma poderosa aliada para popularizar experiências bem-sucedidas. Nem todas as empresas cooperadas seriam casos de sucesso, mas os fracassos e os sucessos seriam estudados, para que, em novos projetos e investimentos, os fracassos fossem minimizados, e o sucesso de cooperativas pudesse ser maximizado.

    A esquerda precisa assim retornar à chave da mudança, ou seja, ser o movimento que defende a transformação da sociedade, e enquadrar a direita e a extrema direita em seu lugar natural, que é o de defensores do sistema capitalista. Defensores, portanto, de plutocracia, de oligarcas, defensores dos interesses dos super-ricos, das grandes empresas, e, portanto, do sistema dominante no mundo. Eles são, organicamente, os que defendem o maior, mais articulado e poderoso sistema econômico do mundo, que está fracassando em resolver os problemas sociais, e está gerando aumento das desigualdades sociais, pobreza, violência, insegurança, insatisfação e frustração na população. A inteligência artificial, e ampla automação, tende a levar essa frustração a níveis ainda maiores, e não é com pequenas melhorias que essas pessoas frustradas e revoltadas serão inspiradas. A esquerda precisa inspirar, não apenas a votar, mas inspirar uma nova militância a lutar por conquistas ousadas, a forma e o conteúdo do discurso, e nas práticas, têm que ter a direção de transformações que revolucionam a vida das pessoas.

    Uma terceira tarefa para a esquerda é compreender que, embora as lutas chamadas de identitárias, contra o racismo, a homofobia, pelo reconhecimento das necessidades das minorias étnicas e sociais, sejam importantes, elas não podem servir como elemento diferenciador entre a esquerda e a direita. Elas são, isoladamente, incapazes de aglutinar forças contra as injustiças universais produzidas pelo capitalismo. Até por isso, às vezes são abraçadas com tanta ênfase por candidaturas que não são de esquerda, pois servem como uma distinção entre agendas partidárias, sem produzir uma diferença fundamental quando o assunto é a organização econômica e política da sociedade. Laclau e Mouffe sinalizam que não existem conexões essenciais que unam diferentes lutas sociais: o anticapitalismo, antisexismo, o antirracismo, luta ambiental, luta pelos direitos da comunidade LGBT+, etc. Assim sendo, as conexões precisam ser construídas através de uma articulação de equivalências que é justamente o papel da esquerda.

    Dito de outra forma, não se trata de submeter essas lutas a um projeto de radicalização da democracia, mas compreender que um projeto de radicalização da democracia pode viabilizar a luta contra todas as formas de injustiça. As injustiças setoriais, e a luta de movimentos sociais pela garantia de direitos humanos, preservação ambiental e outros temas, precisam ser articulados e unidos a uma luta fundamental contra as injustiças do capitalismo, para que a esquerda dialogue com todos os setores historicamente oprimidos, inclusive aqueles que estão caindo nas mãos do fundamentalismo teocrático, fundamentados na “teologia da prosperidade” e na “teologia do domínio”, como é o caso da expansão das igrejas neopentecostais no Brasil.

    Contra essa ilusão, é necessário resgatar a dimensão moral da luta contra a pobreza, do fortalecimento da classe trabalhadora, a dimensão moral de que uma sociedade em que os trabalhadores sejam os donos dos meios de produção é essencial. A fim de romper as barreiras que são construídas por aqueles que, em organizações religiosas fundamentalistas, oferecem sentimento de acolhimento e comunidade, mas que cobram alinhamento com o sistema capitalista, que mantém os seus súditos em posição de estar a serviço do sistema que, em última instância, é o responsável pela manutenção e reprodução das condições precárias em que vivem, sem poder real de desencadear processos de mudança.

    Por fim, a última grande tarefa para a esquerda é compreender que ela não pode ceder princípios fundamentais para a direita. Quem é mais livre, inclusive para empreender: o trabalhador nos EUA, que tem plano de saúde através de seu trabalho, garantido pela empresa, ou o trabalhador no Canadá, que tem acesso a serviços de saúde, garantidos pelo Estado, como um direito de cidadania? É óbvio que é o canadense, pois esse pode largar o emprego para buscar um emprego melhor, pode empreender, sem ter medo de ficar sem acesso a serviços de saúde, e sem medo de fazer a família perder acesso a serviços de saúde.

    Logo, o sistema capitalista na saúde, na educação, é um sistema que não apenas hierarquiza acesso para quem pode pagar, negando acesso a quem não pode pagar, mas é um sistema que prende e escraviza seus trabalhadores, pois coloca algemas em suas escolhas, lhes priva de sua liberdade. Assim, a garantia de direitos, seja saúde, educação, renda, moradia, segurança... não é uma questão apenas de igualdade de oportunidades, mas uma igualdade de oportunidades que produz liberdade real, não a liberdade ilusória vendida pelos ideólogos do capitalismo, mas a liberdade material, a emancipação de poder escolher sem ter medo de que sua escolha destrua a sua vida e a vida de sua família.

    Inclusive, questões como alternativas de organização das instituições e ações de segurança pública, a exemplo da reabilitação dos presos na Noruega, precisam ser utilizadas para demonstrar que uma visão humanizada no tratamento de pessoas privadas de liberdade é que tem o potencial de reduzir a criminalidade. O modelo da Noruega é baseado em reabilitação e não em punição. Esse foco é responsável por reabilitar mais presos que qualquer país do mundo, com ênfase em progresso educacional, no trabalho dos presos, e em um tratamento humanizado. Se o desejo é, como esperamos que seja, viver em uma sociedade melhor, com menos criminalidade, em que todos tenham chance de se desenvolver, as melhores experiências devem servir de lições de aprendizado, e a esquerda não pode abrir mão de seus princípios, nem muito menos deixar de discutir questões como segurança pública.

    O horizonte para além do capitalismo, a defesa de uma democracia nos espaços de trabalho, uma democracia ampliada, é, em última análise, a fronteira central para a emancipação e transformação da sociedade (inclusive em termos ecológicos), não como um princípio vago, distante da vida material das classes que mais sofrem com o capitalismo, mas como algo que tem o potencial de materializar a liberdade, capaz de construir a mudança no sistema que precisa ser superado.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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