O que indica a transição da posição do Brasil sobre a Venezuela
"De país amigo, o Brasil transformou-se em inimigo do governo bolivariano, jogando ao lixo décadas de construção diplomática", diz Mario Vitor Santos
Ao longo do fim de semana, a TV venezuelana noticiou o desmantelamento de um esquema para preparar uma invasão e um golpe. Foram presos dois cidadãos estadunidenses, dois espanhóis, um tcheco e apreendidos 400 fuzis, segundo o ministro do Interior, Diosdado Cabello.
A notícia se segue à revogação, pelo governo venezuelano, da autorização para que o Brasil pudesse cuidar dos negócios da embaixada argentina em Caracas. Havia ali seis venezuelanos colaboradores de Maria Corina Machado, acusados de organizar vandalismos que seriam parte de um golpe contra o resultado das eleições presidenciais.
Um dos efeitos da decisão venezuelana de terminar a gestão brasileira da embaixada argentina é dar fim à atitude ligeira e divertida das mais altas autoridades brasileiras em relação à crise diplomática criada por elas mesmas ao surpreendentemente não reconhecer as eleições no país vizinho.
De país amigo, o Brasil transformou-se em inimigo do governo bolivariano, jogando ao lixo décadas de construção diplomática entre Lula, Hugo Chavez, Dilma Rousseff e Maduro.
O Brasil golpeou o ex-aliado recusando-se a reconhecer o resultado das urnas.
O pior, porém, era a atitude histriônica, olímpica e superior exibida até agora, tanto pelo presidente Lula como pelo seu assessor internacional Celso Amorim em relação ao processo eleitoral e ao resultado do pleito no vizinho.
Agora, o Brasil perde a gestão da embaixada de Milei (que vem de ofender Lula novamente chamando-o de "tirano corrupto") e ainda é acusado de tolerar a existência de planos e tratativas de assassinato de Nicolás Maduro por golpistas venezuelanos de extrema-direita abrigados na representação diplomática argentina.
Os refugiados na embaixada constituem o que há de pior na criminalidade política venezuelana.
Ao assumir a embaixada, o Brasil herdou a missão de evitar que seguissem com suas atividades criminosas.
Como o governo venezuelano não confia mais em Lula, cassou a concessão com uma justificativa que coloca o Brasil no lugar de inimigo, leniente ou partícipe de um plano criminoso.
Será que agora, com a enérgica resposta venezuelana, o governo brasileiro irá considerar o que estava evidente para todos?
É grave não reconhecer eleições em outro país. Mais grave é difundir, com escândalo internacional, desconfianças com relação à lisura do processo eleitoral do vizinho soberano. Ainda mais grave é interferir nos assuntos internos do vizinho. Achar que é possível, por exemplo, declarar, como disseram Lula e Amorim, que o eleito, confirmado pela Justiça, deveria simplesmente abrir mão da vitória nas urnas e submeter-se a novas eleições, como parte de um acordo com o derrotado Edmundo González, de extrema-direita, por quem o governo brasileiro não escondia sua preferência.
O histrionismo brasileiro não era um deslize incomum. Estaria essa mas estava calibrado para mostrar serviço?
Nessa linha, o Brasil se pôs a tentar dar lições e ordens ao mandatário e ex-amigo Nicolás Maduro em atitudes que surpreendem pelo teor de ingerência e arrogância, mas também pelo ridículo.
Ao brincar com fogo nessa reviravolta amadora, o Brasil já se queimou. O vizinho decidiu responder em dobro. Com toda razão, pois defende a soberania de suas eleições, como aliás o Brasil faz em relação a Bolsonaro e sua intentona golpista.
É certo que Venezuela vai seguir escalando a resposta em cada rodada. Quem enfrenta escaramuças do imperialismo há mais de duas décadas não se assusta com verborragia estéril de sócios menores recém-convertidos.
Agora é hora de a Venezuela fazer um pouco de graça. Lá se diz que os Brics vão virar Vrics, com a substituição do B de Brasil pelo V de Venezuela. É diversão com fundo grave, pois reage à ameaça de Amorim de vetar a entrada do país nos Brics.
O governo brasileiro não se envergonhou de dar crédito a Edmundo González e Maria Corina Machado. O primeiro é um bandido fugitivo, que disse ter boletins de urnas que provariam fraudes. Ele não os apresentou à Justiça Eleitoral, mas os que foram obtidos se revelaram fraudes grosseiras. González tinha que ser preso (como se espera que Bolsonaro seja), mas conseguiu um acordo para escapar e se foi à Espanha. Maria Corina, a quem González servia, segue na Venezuela, de onde emite seguidos apoios a Bolsonaro. Ela é a versão venezuelana da extrema-direita furibunda estimulada pela Casa Branca, a quem ela já pediu intervenção militar em seu país.
Agora, com o leite derramado, o presidente Lula declara que vai voltar a exercer diplomacia nos bastidores.
A questão que fica é por que o Brasil se enfiou nesse beco? Por que o país rompeu a tradição brasileira de diplomacia silenciosa com a Venezuela?
Nunca tanta hiperatividade redundou em tantos recuos. Gonzalez, em quem o Brasil apostava numa delirante proposta de acordo para a realização de nova eleição, fugiu.
A nova diplomacia brasileira acreditou em pesquisas que na véspera da eleição davam vitória a González. Depois, deu crédito quando este mostrou a tal apuração fajuta
Quando foi que o profissionalismo de nossa diplomacia deu lugar a essa bocarra chamejante e estridente?
Do ponto de vista do governo Lula, o episódio, lamentável, expõe incoerência entre política interna e externa, entre passado e presente, entre o presidente e boa parte de sua base de apoiadores contrários ao imperialismo estadunidense.
Quem pretende dar sentido ao novo cenário da política externa brasileira depara-se com um tecido sumamente estranho, com lapsos avulsos sem lógica, improvisados na base do preconceito, do achismo e de antipatias pessoais (disse Lula: "Maduro tem que aprender").
A estigmatização do presidente venezuelano (bem como da figura do sandinista Daniel Ortega, presidente da Nicarágua) corresponde à fórmula habitual do imperialismo estadunidense de justificar assassinatos de reputação que resultam em assassinatos físicos. Acontece agora com Putin. Aconteceu com Saddam Hussein, Fidel Castro e Muammar Gadafi, para citar apenas alguns.
São campanhas precedidas por relatórios de supostas violações de direitos humanos que abrem caminho para intervenções.
Impossível querer ignorar o que está evidente aos olhos de todos no comportamento do Brasil. Impossível fazê-lo em nome de uma fidelidade a qualquer custo e em toda linha a líderes brasileiros, sem avaliar o mérito de suas ações.
De repente, na política externa brasileira, estende-se um abismo intransponível. Nunca antes o presente esteve tão distanciado do passado. Este, afinal, nem é tão antigo. É do início deste mandato.
Ao receber Maduro em 2023 e restabelecer relações, o presidente foi unanimemente vilipendiado pela mídia brasileira submissa ao Departamento de Estado. Lula achou que o peso era demasiado e resolveu mudar? Algo, que não está esclarecido, aconteceu entre 2023 e 2024. A mudança pode ter afetado ou ser efeito de um giro não só da posição geopolítica brasileira na América Latina, mas global.
A falsa expulsão do embaixador brasileiro em Manágua, para a qual não existe ato formal, indica que a Venezuela não é um caso isolado. O que está havendo? O Lula de hoje não conversa com o Lula de ontem? Para onde foi a política externa altiva?
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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